11 de maio de 2014

Jung e Freud - “Estou a caminho, é verdade, mas ainda não cheguei ao destino”...

Burgholzli-Zurique, 29 de dezembro de 1906
Caro Professor Freud,

Com toda a sinceridade lamento que seja eu, justamente eu, quem lhe causa um aborrecimento. Compreendo muito bem que o senhor só possa estar insatisfeito com meu livro, já que ele é por demais implacável ao tratar de suas pesquisas. Tenho perfeita consciência disso. O principio fundamental que me guiou ao escrevê-lo foi: consideração pelo publico acadêmico alemão. Se não nos dermos ao trabalho de apresentar a esse monstro de sete cabeças todo o alimento servido com bom gosto numa bandeja de prata, ele não mordera como vimos em incontáveis ocasiões anteriores. Por conseguinte e de perfeito interesse para nossa causa dar atenção a todos os fatores potencialmente capazes de estimular-lhe o apetite. No momento atual, infelizmente, ai se incluem certa reserva e a insinuação de um julgamento independente em relação as suas pesquisas. Foi isso que determinou o teor geral de meu livro. As reformulações especificas de seus enfoques procedem do fato de não haver entre nós uma concordância absoluta quanto a certos pontos. E talvez isso se deva a que: I - o material de que disponho é totalmente diferente do seu. Trabalho em condições extremamente difíceis, quase sempre com pacientes insanos sem instrução, e ainda por cima com as evidencias invulgarmente ardilosas da Demência precoce. II - minha educação, meu ambiente e minhas premissas cientificas são radicalmente diferentes dos seus. III - minha experiência, comparada a sua, e mínima. IV - quer em quantidade, quer em qualidade de talento psicanalítico, a balança pende distintamente em seu favor. V. há de pesar muito na balança a ausência de contato pessoal com o senhor, uma falha lamentável em minha formação preparatória. Por todas essas razoes considero provisórias e meramente introdutórias as formulações contidas em meu livro. Sou-lhe, portanto extraordinariamente grato por qualquer tipo de critica, mesmo as desagradáveis, pois o que mais necessito é de oposição, uma oposição, evidentemente, que se justifique. Lamento muito que sua interessante carta tenha sido interrompida de modo tão brusco.
O senhor acertou em cheio nos pontos fracos da minha analise do sonho. De fato conheço os dados e os pensamentos do sonho bem melhor do que disse. Conheço intimamente o sonhador — que sou eu. O “fracasso do casamento rico” refere-se a algo essencial que indubitavelmente esta contido no sonho, mas não do modo que o senhor pensa. Minha mulher é rica. Por varias razoes fui recusado, da primeira vez que lhe pedi a mão; mais tarde fui aceito e me casei. Sob todos os aspectos sou feliz com minha mulher (não por mero otimismo), embora, naturalmente, isso não seja suficiente para impedir tais sonhos. Portanto nunca houve um fracasso sexual; mais provável seria existir um fracasso social. A explicação racionalista “restrição sexual” e, como eu disse, um simples anteparo conveniente posto em primeiro plano e que oculta uma vontade sexual ilegítima, que não deveria ver a luz do dia. Um determinante do pequeno cavaleiro, que em minha analise em principio evoca a ideia de meu chefe, e a vontade de ter um menino (temos duas meninas). O fato de ter dois filhos homens o condiciona totalmente meu chefe. Fui incapaz de descobrir uma raiz infantil em qualquer parte. Tenho também a impressão de que o “fardo” não foi suficientemente esclarecido. Mas não consigo chegar a uma interpretação. Apesar de o sonho não ter sido completamente analisado, julguei que poderia usa-lo como um exemplo de simbolismo onírico. A analise e o uso de nossos próprios sonhos é, na melhor das hipóteses, uma empresa arriscada; por mais objetivos que pensamos ser, sucumbimos repetidamente às inibições que emanam do sonho.
Quanto ao conceito de “indistinção”, compreendo perfeitamente que ele pareça bem desagradável de seu ponto de vista. Não é a ultima palavra, decerto, e como conceito não presume muita coisa. Mas em minha opinião tem as vantagens de: I. ligar-se a psicologia de Wundt e II. proporcionar uma imagem visual que torna acessíveis, a compreensão humana ordinária, as ideias vagas a ela associadas. A meu ver esse conceito explica apenas que a imagem onírica e suscetível de substituição, falhando em explicar a procedência e destino. Em lugar de uma ideia “indistinta”, poder-se-ia igualmente dizer uma ideia “pobre em associações”. Mas prefiro “indistinta”. Não sei se um erro de principio se oculta na obscuridade. No momento só o senhor pode decidir. Mas não se deixe levar pela impressão de que estou loucamente disposto a diferençar-me do senhor pela maior divergência de opinião possível. Falo das coisas como as compreendo e como as julgo certas. Qualquer diferenciação, de resto, chegaria tarde, posto que as sumidades da psiquiatria já me deram por perdido.
Basta-lhes ler, num informe, que assumi a defesa de sua posição. O estudo de Aschaffenburg ergueu uma onda de protesto contra o senhor. Diante dessas dificuldades terríveis não ha provavelmente outra alternativa senão a dosis refracta e uma nova forma de medicação.
Atenciosamente, Jung

1 de janeiro de 1907
Caro colega,

O senhor incorre em grave erro supondo que seu livro sobre a demência precoce não me tenha entusiasmado. Ora, nem pense nisso. O simples fato de eu ter proposto uma critica deve bastar para convencê-lo. Fosse outra minha opinião, a solução seria utilizar meios diplomáticos para disfarçá-la, pois seria sobremodo imprudente ofender o colaborador mais capaz, ate agora, de se ligar a mim. Na verdade considero seu ensaio sobre D. pr. como a mais rica e significativa contribuição aos meus esforços de que já tive noticia, e entre meus alunos de Viena, que levam sobre o senhor a vantagem talvez questionável de um contato pessoal comigo, sei de apenas um cuja compreensão pode ser igualada a sua; nenhum porem se mostra tão capacitado e disposto a fazer pela causa o mesmo que o senhor. Eu pretendia escrever uma carta mais longa; fiquei a meio caminho por motivos alheios, mas também porque o palpite sobre a autoria do sonho, que o senhor confirma, recomendava que me mantivesse em silencio. Achei apenas que, sem se trair, o senhor poderia ter chegado a acentuar a interpretação tora = pênis e o galope “alternativo”, cavalo – carreira, sabendo que foi por simples precaução diplomática que deixou de demonstrar o primeiro ponto. O único ponto que me pareceu incorreto foi sua identificação do desejo realizado no sonho, que, como não ignora, só pode vir à luz ao termino da analise, mas que por razoes teóricas fundamentais deve diferir do que o senhor afirma. Caso não leve a mal uma tentativa de influencia-lo, gostaria de lhe sugerir que desse menos atenção a oposição que nos enfrenta e não a deixasse afeta-lo tanto em seus escritos. As “sumidades” da psiquiatria na realidade não contam muito; o futuro nos pertence, a nós e as nossas ideias, e as gerações mais novas — ao que tudo indica por toda parte — enfileiram-se ativamente conosco. Vejo isso em Viena, onde como sabe sou sistematicamente ignorado pelos colegas e periodicamente aniquilado por um escriba qualquer, mas onde minhas aulas, apesar disso, atraem quarenta ouvintes atentos vindos de todas as faculdades. Agora que o senhor, Bleuler e de certo modo Lowenfeld conseguiram arranjar-me uma audiência entre os leitores de livros científicos, o movimento em favor de nossas novas ideias continuará irresistivelmente, malgrado todos os esforços das autoridades moribundas. Creio que seria uma boa politica dividirmos o trabalho de acordo com o caráter e a posição de cada um de nós, que o senhor e seu chefe tentassem agir como mediadores enquanto eu continuo a fazer o papel do dogmatista intransigente que espera que o publico engula essa pílula amarga. Mas peco-lhe que nada sacrifique de essencial ao tato pedagógico, a afabilidade, e que não se desvie muito de mim, quando na realidade esta tão perto, pois se o fizer poderemos um dia ser jogados um contra o outro. Estou firmemente convencido, no intimo, de que nas circunstancias especiais em que atuamos nossa melhor diplomacia e a absoluta franqueza. Inclino-me a tratar os colegas que oferecem resistência exatamente como tratamos pacientes na mesma situação. Muito poderia ser dito acerca da “indistinção” que supostamente torna supérflua grande parte do trabalho habitual sobre sonhos; mas não cabe numa carta. Talvez lhe seja possível dar um pulo a Viena antes de sua ida a América (não falta muito). Eu teria imenso prazer em passar algumas horas discutindo essas questões com o senhor. Se nada escrevi sobre parte considerável de seu livro é porque estou inteiramente de acordo; ou melhor, cumpre-me apenas aceitar sem discussão suas explicações. (Ainda assim acredito que meu caso deva ser diagnosticado como autentica paranoia.) Mas também aprendi muita coisa nova. Por algum tempo preocupei-me a fundo com o “problema da escolha da neurose”, que como diz acertadamente não é esclarecido adequadamente em minhas observações. Errei por completo na primeira tentativa de explicação e desde então passei a ter mais cautela. Estou a caminho, e verdade, mas ainda não cheguei ao destino. Quanto a sua inclinação de recorrer, a proposito disso, as toxinas, permito-me observar a omissão de um fator ao qual, sei muito bem, atribuo muito mais importância que o senhor, no presente momento; refiro-me, como já ha de ter notado, a + + + sexualidade. O senhor a põe de lado, ao tratar do problema, enquanto eu me sirvo dela, mas não chego a uma solução; nada surpreendente assim que nenhum de nós saiba algo a respeito. “Nemo me impune lacessit”, que aprendi na escola, ecoa ainda em meus ouvidos. Os antigos sabiam que Eros é um deus inexorável. Meus melhores votos pelo Ano Novo. Espero que continuemos a trabalhar juntos e não permitamos que mal-entendidos se interponham entre nós.
Cordialmente, Dr. Freud

C.G.Jung - Sigmund Freud – CARTAS - (p. 56-60)

Maravilhosas preciosidades de dois grandes estudiosos e suas interrogações. Desde as condições de trabalho de cada um, o estudo sobre os sonhos, os conceitos de “indistinção” e “associações”. O respeito, afetividade, e aproximações teóricas existente entre eles, as oposições e divergências e dificuldades, principalmente ao que Freud refere-se a “escolha da neurose”. E não poderíamos deixar de lembrar, aquilo que “as sumidades” construíram como uma oposição ou divergência fica a frase: “Espero que continuemos a trabalhar juntos e não permitamos que mal-entendidos se interponham entre nós”. E assim interrogamos: quantos mal-entendidos são construídos por questões egoicas.

10 de maio de 2014

“Escolha” e Defesa

É possível supor que quando falamos de escolha temos alternativas, caminhos, ou formas de existir. Nem sempre as escolhas são possíveis, pois quando há um rompimento com a lei, o que fica diz respeito ao compulsório, obrigatório, ou seja, um retorno à lei. Assim quando falamos da escolha da neurose ou da estrutura é mais complexo, porque nos vem a imagem de várias possibilidades de estrutura diante de um sujeito em desenvolvimento e ele, por razões enigmáticas “escolhe” uma em detrimento da outra.  Freud pensou o que ele denominou de “a escolha da neurose”, em diversas formas, indo e vindo, mas permanecendo o enigma da “escolha”. Da passagem pela questão da hereditariedade ou às etapas do desenvolvimento cronológico do ser humano, do período em que ocorreu uma experiência traumática, e que o único recurso foi  determinada defesa. Embora a questão da gênese situa-se “na mais remota infância”, assim como os conteúdos recalcados.

A onda pulsional, de energia, que cerca o desenvolvimento do ser humano irá possibilitar ou não a repressão, algo que deveria ser experimentado como repugnância, é experimentado como prazer. A sexualidade na constituição do humano e sua provação na triangulação familiar, acrescido do enigma que habita cada um, desde que é gerado, há muito de complexo nos caminhos que percorre. Se da neurose histérica, obsessiva, as psicoses e perversões, os traços que se intercruzam são “arestas” “depurações” a serem percorridas por cada indivíduo. Se na histeria há uma identificação com a pessoa amada, nas psicoses e perversões  é desfeita a identificação, para figuras exteriores, mas os traços existentes do narcisismo deixa obscuro esse rompimento, pois algo de amor existiu e permanece, sendo difícil identificar em que tempo.

É certo que a ciência há que avançar no estudo do psiquismo humano, fora do materialismo, aproximando-se de outras áreas do conhecimento. Como diz Freud: “O problema de saber por que e como uma pessoa pode ficar doente de uma neurose acha-se certamente entre aqueles aos quais a psicanálise deveria oferecer uma solução” (p.341). É o que remete a “escolha” do funcionamento psíquico. Todos trazem ou não disposições ao nascer de determinantes patogênicos, assim como as circunstancias da vida constitui provações de “escolhas” de caminhos, defesas, que vão inserindo o constitucional. Todas as funções psíquicas sejam a função intelectual, sexual, emoções, sentimentos, raciocínios de juízo de valor, ou capacidade de julgamento racional imparcial, sublimações, passam por um longo e complicado desenvolvimento, por caminhos tortuosos, que demandam muito discernimento. Nesses caminhos tortuosos do desenvolvimento, é possível que algumas funções fixem-se em determinadas etapas, que pode evoluir ou regredir em função de circunstancias internas ou externas.

As interrogações sobre a “escolha” do funcionamento psíquico, não deve ficar como um problema para a pesquisa biológica. É fato que algumas pré-disposições para desenvolver estarão vinculadas a eventos que venham pulsioná-las a repetição, desde a gestação. Seu aparecimento tardio revela a cronificação de fixações e disposições primitivas. Complexo identificar em que ponto ocorreu inibições de uma ou mais função psíquica. Todos os fatores envolvidos estão marcados no inconsciente e num processo de livre associação “todos possuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem interpretar as elocuções do inconsciente das outras pessoas” (p.344), na medida em que se desenvolve o autoconhecimento e um distanciamento “crítico”, onde o afeto não se configura como um véu a encobrir a essência dos seres, que se inter-relacionam.

É possível dizer que na dialética história do sujeito o objeto de escolha, suas determinações, devem se possível, em um desenvolvimento saudável está mais distante do ego, possibilitando um acalento de sua ferida narcísica, de sua vaidade, arrogância e egoísmo. As sutilezas e particularidades da escolha do objeto de identificação são complexas e no que diz respeito ao psiquismo há que analisar cada caso. A disposição a determinado funcionamento psíquico pode seguir um curso crônico estável, como pode também passar por variadas oscilações, como uma onda. A antítese masculina e feminina, o ativo e o passivo, estão presentes desde o início da gestação, vindo a se constituir em significado e significantes diante das vicissitudes da vida, que vão se modelando e remodelando através dos instintos e suas sublimações.

Ao interrogarmos sobre “escolhas” de funcionamento, estruturas psíquicas, há que pensarmos no que diz respeito ao desenvolvimento do caráter. “As mesmas forças instituais” que estão em operação nos recursos de funcionamento e defesa, estão presentes na formação do caráter. Aqui um fracasso da repressão e o retorno do reprimido seguem livre curso no sentido das sublimações ou do sadismo, num percurso de experiências primitivas, em que a “passagem ao ato” é desprovido de emoções como compaixão, empatia e o outro assume a característica de objeto de pesquisa, conhecimento e não de afeto. É certo que “os estádios de desenvolvimento dos instintos do ego” ainda necessitam, no presente, de muitos estudos. A aceleração ou retardamento desse ou daquele instinto, sejam por quais circunstancias forem, podem ser facilitadores para o desenvolvimento da neurose histérica, obsessiva, psicoses ou perversões. Se todas as intervenções na vida buscam relações amorosas sublimadas no sentido daquilo que podemos falar como cura, há que supormos que “escolha” está mais para procura, evolução e cura do que para uma opção.

Referências
FREUD, S.  – A DISPOSIÇÃO À NEUROSE OBSESSIVA - UMA CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE (1913), Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago - 1996.
FREUD, S.  – RASCUNHO K, Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

2 de maio de 2014

O Caminhar do Sábio


O Grande Caminho é vasto
Pode ser encontrado na esquerda e na direita
Os dez mil seres dele dependem para viver
E ele não os rechaça
Conclui a obra sem mostrar a sua existência
É o manto que cobre os dez mil seres, sem agir como senhor
Podendo ser chamado de pequeno
Os dez mil seres voltam para ele, sem que aja como senhor
Podendo ser chamado de grande
Assim o Homem Sagrado nunca age como grande
Por isso pode atingir sua grandeza

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng