Os ciclos da vida são intermináveis. Há tempo de plantar e de colher, de aumento e diminuição, de esperar e de realizar, de se aproximar e de se afastar, de ser forte e de ser suave, de falar e de calar... A transitoriedade da vida é inexorável. Tudo “passa”, tudo caminha para “frente”, com seu cordão ligado ao “passado”, pois o tempo é uma noção de organização da vida na terra e da história de cada pessoa. A transitoriedade é desagregadora, pois nos dá a noção do fim e ao mesmo tempo da continuidade da vida, pois o enigma da sobrevivência da alma não foi “resolvido” pela ciência. Há que transpor a concepção materialista da vida e retomar a metapsicologia da alma. A relação dialética entre nascer e morrer é infinitesimal. A todo instante bilhões de células nascem e morrem e diversos processos químicos se refazem dentro de nós e em nosso mundo. Nosso psiquismo trabalha velozmente em seus diversos sintomas em sua rede de condensações e conexões. Na relação especular com o outro, vários ecos múltiplos e marcas mnêmicas encontram afinidades ou diferenças, que diz respeito ao amor por si mesmo, que é o amor pelo outro e ao que idealizamos do outro, que “corresponde” ao que idealizamos de nós mesmos. Assim tudo que acolhemos ao longo da vida teremos que doar, nos acalma, pois não nos pertence, sendo o único caminho que pode esmaecer o sentimento de culpa na relação com o outro, é o saber o dever cumprido. E o que é o dever cumprido? É aquilo ao qual nos remete a Kant, que é o dever por amor.
Na
reflexão do existencialismo “Ter” e “Ser” parecem inconciliáveis e de certa
forma são, se o “Ter” não estiver a serviço do “Ser”. Na sequência de tempo que
nos acompanha os ganhos, alegrias, gozos são na sociedade de consumo em que
vivemos um “direito”, como se fosse possível vivermos no hedonismo, sem a lei.
Como se o sofrimento e a falta, não nos estruturasse. Assim a perda que é a
essência de nossa vida, pois trata do desapego e da renúncia, nos remete a
falta, ao vazio que pertence a cada existência, seja pela implicação na lei
interna, ou na ausência de um ser querido, nas identificações regressivas que
representa, de um tempo e um lugar, que não mais existe. Isso define quem
somos, porque representa o destino que damos às provações da vida. A perda nos
remete as abstrações de toda uma ordem de significados e significantes, que são
desagregados, resinificados, pois é necessário um afastamento dos
representantes que alimentam as lembranças. Assim os sentimentos de desânimo,
perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, diminuição
dos sentimentos de autoestima, e quando surge reflexões sobre o afeto que não
foi correspondido para com o objeto de perda, surge auto-recriminação e
mecanismos de punição que podem sofrer conversão.
Desde que
nascemos caminhamos ao longo da vida acumulando vitórias e perdas, que nos
estruturam. As vitórias ficaram no passado e as perdas terão que ser
“superadas” pelo luto. São fáceis as lembranças da vitória, mas as lembranças
das perdas são difíceis, porque remete a nossa finitude e fragilidade. A
devoção às situações de luto demonstra como é difícil substituir um objeto de
amor. A dor psíquica expressa na dor física diz respeito à quantidade de
energia investida que é liberada na perda. Esse é o teste de realidade a exigir
que a energia investida seja resinificada. É assim que o apego ao objeto de
amor pode significar uma oposição à substituição do mesmo, pois as lembranças e
expectativas são carregadas de energia psíquica, de emoções fortes, que
fragmenta o processo de economia de energia. O sentimento de dor e profunda
tristeza na perda por morte ou separação são muito semelhantes. Sabe-se quem se
perdeu, mas nem sempre o que perdeu. O objeto de amor ocupa sempre um lugar nos
significantes conscientes e inconscientes de uma pessoa. O luto pode trazer uma
imensa melancolia e a melancolia sempre traz o luto de algo, que nem sempre é
possível saber. Há que haver "muito tempo" para o saber do que se perdeu. A questão é que a capacidade de amar, a energia, é rebaixada,
pois necessita ser refeita. A vida parece perder o sentido, a insônia, a
dificuldade em alimentar-se são sintomas que esvazia a energia investida.
Em cada
experiência da vida, seja em que aspecto for o sentimento de “dever” por amor,
constitui-se como o único acalentar nossas dores. Diante da perda a momentânea
incapacidade para amar deve levar o sujeito ao processo de autoconhecimento.
Quanto maior o autoconhecimento supõe-se que maiores recursos encontrará o
sujeito de lidar com sua perda e menor será a perda em seu ego. A autocrítica
diante da perda é extremamente difícil, pois em geral todos acreditam terem
cumprido seu “dever” para com o outro, mas quando conflitos que precedem a
perda não estão colocados em seu devido lugar, surge o sentimento de remorso e
arrependimento. Há uma luta interna para apaziguar conflitos, cujo objeto não
mais existe enquanto real. O que se revela é que esses conflitos dizem respeito
ao sujeito, que necessita se implicar, o que requer esforço psíquico, gasto de
energia, autoconhecimento e renuncia. Essa consciência requer uma compaixão para
consigo próprio e um contato com a realidade de forma equilibrada. Mas é
possível que emoções primitivas como ambição, egoísmo, arrogância, poder,
enfraqueça ou elimine a tristeza, o luto, pois a ênfase recai na garantia
dessas emoções, ou lugares que o sujeito ocupa ou gostaria de ocupar. Uma
pessoa que diante da perda de um ente querido ressalta aos gritos seu afeto
pode estar imbuída de forte sentimento de culpa e remorso. Bem como tudo o que
expressa de críticas de si próprio, podem ser em relação ao outro e o que
expressa de crítica em relação ao outro pode ser em relação a si próprio,
estando assim longe de uma atitude de humildade e de equilíbrio ou uma auto punição irreconciliável a curto tempo.
Nesses
ciclos intermináveis quando alguém que se ama parte, fica o amor, e na
sequência do tempo as marcas, as sombras de um amor pelo outro. O deslocamento
desse amor para outro sujeito, não “resolve” o sentimento de vazio, da ausência
de um amor que não mais se vê. Embora o sujeito se interrogue quanto a seu
destino, ante a perda de alguém querido, os deslocamentos patológicos,
narcísicos são possíveis. Assim os possíveis conflitos existentes são
compensados por uma conversão narcísica, onde ocorre uma enfática comiseração.
A regressão da energia que foi investida em determinado objeto, seja ele qual for:
um amor, uma pessoa, um trabalho, uma concepção filosófica, política de mundo,
faz parte do processo de luto, que ameniza conflitos de ambivalência muito
angustiantes. Adoecer é algo relacionado à imagem que cada pessoa tem de si
mesmo e nessa imagem existem diversos mecanismos que levam a formação de
sintomas, sejam porque já existia uma predisposição ou por uma ambivalência de
sentimentos, difíceis de serem conciliados. É assim que a regressão se
estabelece, como uma forma de retorno a um tempo que só foi possível na
fantasia. Toda perda de objeto amado há que se haver com a estrutura de
funcionamento psíquico. A luta vida-morte-vida... diz respeito ao funcionamento
da vida e desejos, que muitas vezes são difíceis de serem apaziguados,
principalmente quando existem sentimentos opostos como amor e ódio.
O amor
enquanto essência não pode ser renunciado, mas a renuncia ao objeto de amor
pode levar a uma satisfação sádica com o próprio sofrimento, que é constitutivo
do sujeito, estendendo a todos os aspectos de sua vida. Punir objetos amados
com o próprio sofrimento pertence ao sadismo como forma de evitar a tendência à
depressão e ao suicídio. No fundo aqui estamos com o medo de destruição do ego,
cuja defesa é a autopunição ou punição do outro seja pelo sadismo ou pelo
suicídio, que são formas diferentes de domínio do ego. A perda deixará sempre
sua marca mnêmica, que interrogará a identidade do sujeito colocando-o sempre
diante do teste de realidade se os recursos psíquicos de que dispõe o sujeito
forem escassos. No mecanismo de economia de energia, a depressão pode ser
compensada por um estado de mania, gerando um funcionamento psíquico modular,
embora o conteúdo possa ser o mesmo, apenas a forma de expressão é diferente.
No
contraponto dos estados de depressão estão os estados de mania, e essas
ondulações visam o equilíbrio psíquico e são difíceis de serem equalizadas,
dependendo do quanto de energia possa existir em cada movimento. A depressão ou
exaltação requer movimentos de energia em sentidos opostos, muitas delas
tóxicas. Enquanto persiste o luto, este absorve as energias do ego, pois está
sempre sendo confrontado pela realidade e se interrogando sobre seu destino e
dessa forma pode optar por viver ou morrer. Para viver há que renunciar ao
objeto amado. A ambivalência na relação com o objeto e os conflitos existentes
com este, é constitucional. Os sentimentos de amor e ódio lutam no inconsciente
e só fragmento desses vem à consciência. Dessa forma a dor psíquica e física é
reduzida, o amor escapa à extinção, a vida prevalece e as feridas são
acalentadas. Então ficamos com o comentário de Confúcio: "Que necessidade tem a
natureza de pensamentos e preocupações? Na natureza, todas as coisas retornam à
origem comum e se distribuem pelos diferentes caminhos. Através de uma única
ação, os frutos de uma centena de pensamentos se realizam. Que necessidade tem
a natureza de pensamentos, de preocupações?".
FREUD,
S. – LUTO E MELANCOLIA
(1917[1915]), Obras Completas de
Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago - 1996.