1 de dezembro de 2013

Espírito e "Vida Moderna"

“A alma animista reúne propriedades de ambos os lados. Sua qualidade móvel e volátil, seu poder de abandonar o corpo e tomar posse, temporária ou permanentemente, de outro corpo – são características que nos fazem lembrar de maneira inequívoca a natureza da consciência. Mas a maneira como ela permanece oculta por trás da personalidade manifesta faz lembrar o inconsciente; a imutabilidade e a indestrutibilidade são qualidades que já não atribuímos aos processos conscientes, e sim aos inconscientes, e encaramos estes como o verdadeiro veículo da atividade mental” (Freud, [1913-1914] p.104).

Quando falamos sobre http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/11/o-sagrado-e-o-tabu-na-atualidade_8.html nos referimos a semelhança entre as proibições dos tabus e as proibições morais e que as formações culturais estão relacionadas a elementos que fazem parte dos instintos, principalmente de autopreservação. É fato que o percurso de nossa civilização deixou marcas mnêmicas que retornam e se repetem em nossa vivência diária, em nossos hábitos, muitos dos quais não nos damos conta. As ciências que tratam da mente, do psiquismo, inevitavelmente irão se deparar sejam por quais caminhos forem com o animismo. “O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais em real” (Freud, p.87). Em toda a história da humanidade, e há sempre que nos referirmos a ela, pois os objetos antigos, chamados de antiguidades são profundamente valiosos em seu caráter material e subjetivos, para as pessoas e povos. Desnecessário lembrar aqui as bibliotecas mundiais, os patrimônios históricos, às  construções antigas. Assim a compreensão da natureza e do universo desde os povos primitivos a nossa atualidade povoam “o mundo com inumeráveis seres espirituais”, que são a causa de inúmeros fenômenos. A crença de que não apenas os seres vivos possuem uma alma, mas que os objetos inanimados são dotados de certos poderes estão desde a origem do homem seja pelo totemismo, ou expressões mais antigas, que não são objetos dessas reflexões. Assim como Freud começou sua autoanálise pelo estudo dos sonhos, ele supõe que os homens primitivos observando seu sono e sonhos e principalmente a morte, que até hoje desperta os mais variados interesses, desenvolveram a visão alma-corpo, que se mantém até hoje de forma muito forte em nossas vidas, constituindo em certa medida sua base. É assim o sentido dessa fala de Freud:

O animismo é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista único. A raça humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três desses sistemas de pensamento — três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. Destas, o animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma explicação verdadeiramente total da natureza do universo. A primeira Weltanschauung humana é uma teoria psicológica. Iria mais além de nossos atuais objetivos demonstrar como grande parte dela persiste na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja como a base viva de nossa fala, nossas crenças e nossas filosofias” (Freud - 1913 – 1914 - p.89).

Na antiguidade a concepção animista era utilizada como forma de obter sobre o outro, como através da telepatia, por exemplo, ou de rituais que se pudesse obter, poder sobre os fenômenos da natureza. Da mesma forma a importância atribuída aos nomes, pois saber o nome de um espírito era uma forma de poder. Muitas dessas concepções herdamos nos tempos civilizados, principalmente no que diz respeito às pesquisas com telepatia e as experiências aproximadas com neurônios espelhos. Muitas são as formas utilizadas através da história do homem para obter poder sobre o outro. Com o canibalismo acreditava-se que se alimentando de parte do corpo de outra pessoa adquiria-se as suas qualidades. Talvez no futuro olhemos para o presente e veremos na doação de órgãos uma forma de se obter o mesmo poder, que é o poder da vida. Se o que movia a crença dos homens primitivos era a força dos seus desejos, essa é uma questão que não mudou no mundo atual, sejam por quais crenças ou estruturas psíquicas fluem, uma vez que os atos psíquicos estão sujeitos ao desejo.

É Dessa forma que uma valorização do pensamento e a ênfase de que tudo o que “for feito às ideias inevitavelmente acontecerá também com as coisas”. Para isso Freud adota a expressão “onipotência dos pensamentos”, e argumentará que é na neurose obsessiva que essa forma de pensamento encontra eco.

Muitos povos, culturas acreditam que os pensamentos são livres e que a expressão deles implica em sua realização. A intenção é manter afastadas as “expectativas de desgraça”, que é a morte. Embora nesse artigo Freud distinga a fase animista, a fase religiosa e a fase científica como excludentes, vemos  que no fluir da vida subjetiva de cada um, essas fases se interpõem e apenas por motivos políticos e acadêmicos separam-se. Assim como as fases do desenvolvimento humano se interdependem e não se extingue jamais. Se assim não fosse não poderíamos observar o narcisismo ao longo da evolução do sujeito. “ a condição de apaixonado, que é psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo” (Freud, p.99). E exatamente como ele afirma que ainda não se descobriu nenhuma raça que não possua o conceito de espíritos. Como a morte é o grande enigma da exigência humana, que confronta os sujeitos com suas crenças gerando conflitos muitas vezes insolúveis.
  
Se a primeira criação teórica dos homens foram os espíritos, é porque ser sobrevivente possui um significado, angustiante e em muitos momentos desagregador. Remete a angústia do existir, da qual mínguem está isento. Mas de qual sobrevivência se estar falando se o enigma permanece mesmo nas pesquisas da física quântica, mecânica, da astrofísica? Então o sobrevivente não possui mais o poder que lhe é atribuído.

“Quando nós, não menos que o homem primitivo, projetamos algo para a realidade externa, o que acontece certamente deve ser o seguinte: estamos reconhecendo a existência de dois estados — um em que algo é diretamente fornecido aos sentidos e à consciência (ou seja, está presente neles) e, ao lado deste, outro, em que a mesma coisa é latente, mas capaz de reaparecer. Em resumo, estamos reconhecendo a coexistência da percepção e da memória, ou, em termos mais gerais, a existência de processos mentais inconscientes ao lado dos conscientes. Poder-se-ia dizer que, em última análise, o ‘espírito’ das pessoas ou das coisas reduz-se à sua capacidade de serem lembradas e imaginadas após a percepção delas haver cessado”. (Freud - 1913 – 1914 - p. 103- 104)

É possível que o fenômeno psíquico da crença nos espíritos teve que passar pela fé, pela prece, onde se dá a piedade em ação e só assim o homem apazigua seus temores da sobrevivência, da ansiedade de fontes inconscientes, de um futuro incerto e assim do “pavor da própria consciência”. Importante ressaltar que esses conteúdos surgem também nos sonhos,  nos pensamentos oníricos. Através dos sonhos grande parte desse material se expressa, como também “através das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios”. É o que constitui grande parte dos sintomas, em “determinantes ocultos”, e o que leva esses sintomas a possuírem “formas tão variadas e contraditórias nas diferentes pessoas”. Se para a psicanálise adentrar a essas construções é difícil, sem cair na superficialidade ou no “senso comum”, é porque muito há que pesquisar e compreender. Um exemplo é quando as mulheres selvagens (e as atuais) estão com limitações durante a menstruação “são devidos a um horror supersticioso ao sangue e, sem dúvida, isto constitui um de seus determinantes. Mas seria errado menosprezar a possibilidade de que neste caso o horror ao sangue sirva também a propósitos estéticos e higiênicos, que, em todo caso, são obrigados a ocultar-se atrás de motivos mágicos” (Freud, p. 107).

Se o animismo sobrevive com força em nossa sociedade moderna, é porque muito sobre a vida mental há que nos interrogarmos. Essa é uma questão abordada por diversas áreas da ciência, mas com muito pré-conceito por psicanalistas. São inúmeros os exemplos que Freud cita nesse artigo, mas fiquemos apenas com um para nosso estudo e reflexão: “cita uma superstição alemã segundo a qual uma faca não deve ser deixada com o fio para cima, por temor que Deus e os anjos possam se machucar nela. Não poderemos identificar nesse tabu uma advertência premonitória contra possíveis ‘atos sintomáticos’ em cuja execução uma arma afiada poderia ser empregada por impulsos maldosos e inconscientes?” (Freud -1913 – 1914 - p. 108). Desnecessário enumerar várias práticas de vida em seu dia a dia que trata da vida animista onde confluem com as religiões, crenças e pesquisas científicas. Assim no caminho de “conclusão” das reflexões sobre Totem e Tabu – Ser Contemporâneo: Medo e Paixão - tomemos o rumo com a interrogação porque o totemismo retorna na infância.

Referências
FREUD, S.  – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS (1913 – 1914),  Obras Completas de Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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