“A família tem seus fundamentos no relacionamento
entre marido e mulher. O laço que mantém a família unida é a fidelidade e a
perseverança da mulher. A posição dela é no interior... e a posição dele, no
exterior... O fato de o homem e a mulher ocuparem o lugar que lhes corresponde
está de acordo com as grandes leis da natureza. Na família uma firme autoridade
é necessária; isto é representado pelos pais. Quando o pai é realmente um pai e
o filho um filho, quando o irmão mais velho preenche sua função como irmão mais
velho, e o mais moço a que lhe é própria, quando o esposo é realmente esposo e
a esposa uma esposa, então a família está em ordem. Quando a família está em
ordem, todos os relacionamentos sociais da humanidade também estão em ordem.
Das cinco relações sociais, três são encontradas no interior da família: a
relação entre pai e filho, que é a do amor; entre o marido e a mulher, que é a
do recato; entre o irmão mais velho e o irmão mais moço, que é a da correção. O
afetuoso respeito do filho é então transferido ao príncipe, (Governante) como
lealdade ao dever. A correção e o afeto existentes entre os irmãos são
aplicados ao amigo como lealdade e aos superiores como deferência. A família é
a célula que dá origem à sociedade, o solo nativo em que o exercício dos
deveres morais é facilitado pela natural afeição. Nesse pequeno círculo são
criados os princípios éticos que mais tarde serão ampliados às relações humanas
em geral”. ( Wilhelm, Richard - I Ching – o livro das mutações, p.123).
Ao
“concluirmos” as reflexões sobre Totem e Tabu, nesses últimos meses de 2013,
cabe lembrar os sábios escritos de Lao Tsé e Confúcio, pois, o que está
colocado é a construção e constituição da família, enquanto espaço de vivência,
aprendizado e resinificação.
“a
pressuposição de uma mente coletiva, que torna possível negligenciar as
interrupções dos atos mentais causadas pela extinção do indivíduo..., que os
processos psíquicos sejam continuados de uma geração para outra, ou seja, se
cada geração fosse obrigada a adquirir novamente sua atitude para com a vida,
não existiria progresso neste campo e quase nenhuma evolução. Isso dá origem a
duas outras questões: quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na
sequência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por
determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?...
Uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições
psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida
do indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real” (p.
159-160).
Quando
começamos a pensar no tema do VI Congresso Brasileiro de Psicanálise, neste ano
de 2013; Ser Contemporâneo: Medo e paixão e nos 100 anos da obra Totem e Tabu,
nos interrogamos sobre esse Contemporâneo, esse Medo e essa Paixão. Ao
refletirmos sobre isso nos textos: Incesto, O Sagrado e o Tabu na Atualidade,
Espírito e Vida Moderna, e nesse momento O Retorno do Totemismo na
Infância, podemos compreender que o Contemporâneo é de algo que retorna com
Medo e Paixão, ou seja, demanda elaboração, cura, acolhimento, apaziguamento e
porque não dizer um perdoar a si mesmo: nosso trajeto no planeta.
A primeira
questão é porque o totemismo retorna na infância? Retorna não só porque demanda
cura, como também resinificação no sentido de construir os enlaces necessários ao equilíbrio psíquico. É certo que os atos e estruturas psíquicas
da infância não compreendem a religião de forma abstrata e sim na concretude
que compõe o real. Se o catecismo da religião totêmica como diz Freud compõe:
“Certos
animais não podem ser mortos nem comidos e exemplares de sua espécie são
criados e cuidados por seres humanos”. Vemos isso atualmente em relação a diversos
animais. “Um animal
que tenha morrido de morte acidental é pranteado e enterrado com as mesmas
honras que um membro do clã”. É comum os
animais criados pelos homens, principalmente pelas crianças vivenciarem essa
crença. “Quando um
dos animais que são geralmente poupados tem de ser morto por força da
necessidade, se lhe pedem desculpas e, por meio de diversos artifícios e
subterfúgios, faz-se uma tentativa de mitigar a violação do tabu, isto é, a
morte”. É comum
vermos essa prática, quando um animal tem que ser sacrificado por problemas de
saúde. “Muitos clãs
utilizam representações de animais em suas insígnias e armas; os homens
costumam pintar ou tatuar figuras de animais no corpo”. O que é muito frequente, também,
no mundo moderno.
Ou seja, o
totem protege o homem, porque é uma classe de objetos animados. Assim a criança
em seu mundo de fantasia designa os objetos, e pessoas de forma que os nomes de
animais e vegetais estão presentes. Consideramos desnecessário para as
reflexões em curso adentramos as teorias nominalistas, sociológicas sobre o
totemismo. Por certo que a forma como as crianças nominam o mundo em que vivem
tem muito da herança totêmica. Os filhos seguiam o nome do clã, que em geral
era o nome de um animal. O totem é em geral a representação de um grupo. A
crença na importância do nome era e é pelas crianças, “significativos e
essenciais”. “O nome de um homem é
um componente principal de sua personalidade, talvez mesmo uma parte de sua
alma” (Freud, p. 118).
A representação do nome do animal, como um nome próprio, faz parte do sistema
totêmico de forma transcendental, como tendo o homem um elo com todos os seres
da natureza.
Algumas
tribos acreditavam na reencarnação e o local em que a criança foi concebida era
importante, pois poderia ser um lugar que algum espírito esperasse para a
reencarnação e assim penetraria no corpo da mãe. Dessa forma havia uma negação da
paternidade em benefício de honrar a alma dos antepassados. Na construção do
totem está o espírito “guardião de um antepassado”. Para relações tão
intrínsecas é possível que uma saída às regras do totemismo tenha sido a
exogamia, cujo destino era a prevenção do incesto entre irmãos e irmãs e filhos
e pai e mãe, vindo a se constituir as “classes matrimoniais”. Na sociedade
atual vemos que essas proibições devem ser compreendidas dentro não só da lei
jurídica, mas na lei que compõe a estrutura interna de cada sujeito, e que a
transgressão geralmente leva a infortúnios e sofrimentos difíceis de serem
acalentados. Ou seja, os instintos humanos mais profundos devem caminhar no
sentido de inserção na lei. O fato de que “as mais precoces
excitações sexuais dos seres humanos muito novos, são invariavelmente de
caráter incestuoso e que tais impulsos, quando reprimidos, desempenham um papel
que pode ser seguramente considerado — sem que isso implique uma superestima —
como forças motivadoras de neuroses, na vida posterior” (Freud, p.129-130), revela que a semelhança entre as
relações das crianças com os animais não é permeada por uma “arrogância”, mas
uma amorosidade. E quando não é possível essa amorosidade há que pensarmos nos
sintomas que ai se revelam.
As
crianças possuem uma relação com os animais como se fizessem parte da mesma
natureza, como iguais. Essa identificação, que não deixa de ser uma preservação
do totemismo, hoje com grande ênfase na sociedade entre adultos, pelas mais
diversas razões, embora a mais explícita é designada por “animais de
companhia”. Na relação com os animais há um deslocamento afetivo, importante no
desenvolvimento infantil e no bem-estar de adultos e idosos. Mas pode ocorrer
muitas vezes de forma invertida, e as experiências vivenciadas com animais conduzir a diversos caminhos
ambivalentes. O importante é compreender os deslocamentos realizados e seus
sintomas, pois sobre o animal totêmico, tão presente nos dias atuais, recai as
proibições do tabu: não matar o totem e não ter relações sexuais com ele, ou
seja, com sua representação; “cuja repressão
insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses”. Aquilo que não é vivenciado
simbolicamente pode assumir diversos destinos, sintomatologias, passagem ao
ato. Assim vemos na domesticação de animais um deslocamento da forma primitiva
de totemismo. Nesse percurso há uma mudança de objetos totêmicos e da passagem ao ato seja dos sacrifícios
expiatórios com animais, ou seres humanos. Na simbolização da relação com os
animais vai-se sublimando as provações da vida e afastando-se da passagem pelo
ato.
Ao
refletirmos sobre o totemismo na infância, é necessário lembrar sobre os
animais considerados sagrados dos tempos primeiros até a época atual, e sua
característica ambivalente. O totem tanto nos tempos chamados primitivos,
primeiros e em sua continuidade no curso da evolução humana colocou-se como um
substituto dos desejos reprimidos, que os apazigua e se uma vez infringidos
resultam em sofrimentos obscuros. Importante ressaltar que apesar de nos tempos
primeiros existir uma demanda por um controle dos instintos e que o totemismo
teve e tem sua função, vemos nessa sequencia de tempo que das tragédias humanas
foram surgindo sentimentos fraternos, solidários, a “santificação do laço de
sangue”, possibilitando relações de harmonia e equilíbrio, deixando as leis de
serem aplicadas apenas ao clã, para estender-se à sociedade, ou seja, teremos o
“Não matarás”. Embora o sentimento de culpa, resultante da passagem ao ato,
envolva particularidades, que formará o arcabouço de determinadas
sintomatologias, ele só pode ser aliviado pelo sentimento de solidariedade. Que
esse tenha sido o percurso para o conceito de Deus, “a psicanálise
recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem
era chamado de ancestral tribal” (Freud, p.150).
Os
substitutos utilizados na infância segue a vida do homem como pontes que vão
ligando as etapas de sua vida. A saber, a representação da expiação pelo
sacrifício animal ou humano é complexo e requer a compreensão de suas
particularidades na história humana. Assim segue-se que o luto é uma expressão
de apaziguamento com aquele que morreu. O que vemos no totemismo na infância é
o complexo do pai. Essa relação dos filhos para como o pai, a lei, está na subjetividade
de cada pessoa, mas os fios que ligam os processos coletivos da mente,
sucessivos nas gerações, revelam dificuldades que, para serem superadas exige
um trabalho interior de renúncia, aceitação, incorporação da lei, do lugar na
concepção que Lacan designa por nó borromeano (a
fantasia, o simbólico e o real). A superação, elaboração dos sentimentos
primitivos, como o ciúme, a inveja, a disputa, a relação de poder material,
requer uma ação trabalhosa, como a de um artesão de diamantes. Mas a compreensão
de que esse artesão simbólico vai de geração a geração através da arquitetura
psíquica interpretando, “desfazendo deformações”, dogmas, costumes, refazendo a
herança psíquica é um caminho possível, de reencontro com a essência que habita
cada ser humano, que não deixa de ser a mesma luz do diamante.
Referências
FREUD,
S. – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS (1913 – 1914), Obras
Completas de Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
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