23 de dezembro de 2013

“Retorno” do Totemismo na Infância

“A família tem seus fundamentos no relacionamento entre marido e mulher. O laço que mantém a família unida é a fidelidade e a perseverança da mulher. A posição dela é no interior... e a posição dele, no exterior... O fato de o homem e a mulher ocuparem o lugar que lhes corresponde está de acordo com as grandes leis da natureza. Na família uma firme autoridade é necessária; isto é representado pelos pais. Quando o pai é realmente um pai e o filho um filho, quando o irmão mais velho preenche sua função como irmão mais velho, e o mais moço a que lhe é própria, quando o esposo é realmente esposo e a esposa uma esposa, então a família está em ordem. Quando a família está em ordem, todos os relacionamentos sociais da humanidade também estão em ordem. Das cinco relações sociais, três são encontradas no interior da família: a relação entre pai e filho, que é a do amor; entre o marido e a mulher, que é a do recato; entre o irmão mais velho e o irmão mais moço, que é a da correção. O afetuoso respeito do filho é então transferido ao príncipe, (Governante) como lealdade ao dever. A correção e o afeto existentes entre os irmãos são aplicados ao amigo como lealdade e aos superiores como deferência. A família é a célula que dá origem à sociedade, o solo nativo em que o exercício dos deveres morais é facilitado pela natural afeição. Nesse pequeno círculo são criados os princípios éticos que mais tarde serão ampliados às relações humanas em geral”. ( Wilhelm, Richard - I Ching – o livro das mutações, p.123).

Ao “concluirmos” as reflexões sobre Totem e Tabu, nesses últimos meses de 2013, cabe lembrar os sábios escritos de Lao Tsé e Confúcio, pois, o que está colocado é a construção e constituição da família, enquanto espaço de vivência, aprendizado e resinificação.

“a pressuposição de uma mente coletiva, que torna possível negligenciar as interrupções dos atos mentais causadas pela extinção do indivíduo..., que os processos psíquicos sejam continuados de uma geração para outra, ou seja, se cada geração fosse obrigada a adquirir novamente sua atitude para com a vida, não existiria progresso neste campo e quase nenhuma evolução. Isso dá origem a duas outras questões: quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na sequência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?... Uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real” (p. 159-160).

Quando começamos a pensar no tema do VI Congresso Brasileiro de Psicanálise, neste ano de 2013; Ser Contemporâneo: Medo e paixão e nos 100 anos da obra Totem e Tabu, nos interrogamos sobre esse Contemporâneo, esse Medo e essa Paixão. Ao refletirmos sobre isso nos textos: Incesto, O Sagrado e o Tabu na Atualidade, Espírito e Vida Moderna, e nesse momento O Retorno do Totemismo na Infância, podemos compreender que o Contemporâneo é de algo que retorna com Medo e Paixão, ou seja, demanda elaboração, cura, acolhimento, apaziguamento e porque não dizer um perdoar a si mesmo:  nosso trajeto no planeta. 

A primeira questão é porque o totemismo retorna na infância? Retorna não só porque demanda cura, como também resinificação no sentido de construir os enlaces necessários ao equilíbrio psíquico. É certo que os atos e estruturas psíquicas da infância não compreendem a religião de forma abstrata e sim na concretude que compõe o real. Se o catecismo da religião totêmica como diz Freud compõe:

“Certos animais não podem ser mortos nem comidos e exemplares de sua espécie são criados e cuidados por seres humanos”. Vemos isso atualmente em relação a diversos animais. “Um animal que tenha morrido de morte acidental é pranteado e enterrado com as mesmas honras que um membro do clã”. É comum os animais criados pelos homens, principalmente pelas crianças vivenciarem essa crença. “Quando um dos animais que são geralmente poupados tem de ser morto por força da necessidade, se lhe pedem desculpas e, por meio de diversos artifícios e subterfúgios, faz-se uma tentativa de mitigar a violação do tabu, isto é, a morte”. É comum vermos essa prática, quando um animal tem que ser sacrificado por problemas de saúde. “Muitos clãs utilizam representações de animais em suas insígnias e armas; os homens costumam pintar ou tatuar figuras de animais no corpo”. O que é muito frequente, também, no mundo moderno.

Ou seja, o totem protege o homem, porque é uma classe de objetos animados. Assim a criança em seu mundo de fantasia designa os objetos, e pessoas de forma que os nomes de animais e vegetais estão presentes. Consideramos desnecessário para as reflexões em curso adentramos as teorias nominalistas, sociológicas sobre o totemismo. Por certo que a forma como as crianças nominam o mundo em que vivem tem muito da herança totêmica. Os filhos seguiam o nome do clã, que em geral era o nome de um animal. O totem é em geral a representação de um grupo. A crença na importância do nome era e é pelas crianças, “significativos e essenciais”. “O nome de um homem é um componente principal de sua personalidade, talvez mesmo uma parte de sua alma” (Freud, p. 118). A representação do nome do animal, como um nome próprio, faz parte do sistema totêmico de forma transcendental, como tendo o homem um elo com todos os seres da natureza.

Algumas tribos acreditavam na reencarnação e o local em que a criança foi concebida era importante, pois poderia ser um lugar que algum espírito esperasse para a reencarnação e assim penetraria no corpo da mãe. Dessa forma havia uma negação da paternidade em benefício de honrar a alma dos antepassados. Na construção do totem está o espírito “guardião de um antepassado”. Para relações tão intrínsecas é possível que uma saída às regras do totemismo tenha sido a exogamia, cujo destino era a prevenção do incesto entre irmãos e irmãs e filhos e pai e mãe, vindo a se constituir as “classes matrimoniais”. Na sociedade atual vemos que essas proibições devem ser compreendidas dentro não só da lei jurídica, mas na lei que compõe a estrutura interna de cada sujeito, e que a transgressão geralmente leva a infortúnios e sofrimentos difíceis de serem acalentados. Ou seja, os instintos humanos mais profundos devem caminhar no sentido de inserção na lei. O fato de que “as mais precoces excitações sexuais dos seres humanos muito novos, são invariavelmente de caráter incestuoso e que tais impulsos, quando reprimidos, desempenham um papel que pode ser seguramente considerado — sem que isso implique uma superestima — como forças motivadoras de neuroses, na vida posterior” (Freud, p.129-130), revela que a semelhança entre as relações das crianças com os animais não é permeada por uma “arrogância”, mas uma amorosidade. E quando não é possível essa amorosidade há que pensarmos nos sintomas que ai se revelam.

As crianças possuem uma relação com os animais como se fizessem parte da mesma natureza, como iguais. Essa identificação, que não deixa de ser uma preservação do totemismo, hoje com grande ênfase na sociedade entre adultos, pelas mais diversas razões, embora a mais explícita é designada por “animais de companhia”. Na relação com os animais há um deslocamento afetivo, importante no desenvolvimento infantil e no bem-estar de adultos e idosos. Mas pode ocorrer muitas vezes de forma invertida, e as experiências vivenciadas com animais  conduzir a diversos caminhos ambivalentes. O importante é compreender os deslocamentos realizados e seus sintomas, pois sobre o animal totêmico, tão presente nos dias atuais, recai as proibições do tabu: não matar o totem e não ter relações sexuais com ele, ou seja, com sua representação; “cuja repressão insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses”. Aquilo que não é vivenciado simbolicamente pode assumir diversos destinos, sintomatologias, passagem ao ato. Assim vemos na domesticação de animais um deslocamento da forma primitiva de totemismo. Nesse percurso há uma mudança de objetos totêmicos e da passagem  ao ato seja dos sacrifícios expiatórios com animais, ou seres humanos. Na simbolização da relação com os animais vai-se sublimando as provações da vida e afastando-se da passagem pelo ato. 

Ao refletirmos sobre o totemismo na infância, é necessário lembrar sobre os animais considerados sagrados dos tempos primeiros até a época atual, e sua característica ambivalente. O totem tanto nos tempos chamados primitivos, primeiros e em sua continuidade no curso da evolução humana colocou-se como um substituto dos desejos reprimidos, que os apazigua e se uma vez infringidos resultam em sofrimentos obscuros. Importante ressaltar que apesar de nos tempos primeiros existir uma demanda por um controle dos instintos e que o totemismo teve e tem sua função, vemos nessa sequencia de tempo que das tragédias humanas foram surgindo sentimentos fraternos, solidários, a “santificação do laço de sangue”, possibilitando relações de harmonia e equilíbrio, deixando as leis de serem aplicadas apenas ao clã, para estender-se à sociedade, ou seja, teremos o “Não matarás”. Embora o sentimento de culpa, resultante da passagem ao ato, envolva particularidades, que formará o arcabouço de determinadas sintomatologias, ele só pode ser aliviado pelo sentimento de solidariedade. Que esse tenha sido o percurso para o conceito de Deus, “a psicanálise recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de ancestral tribal” (Freud, p.150).

Os substitutos utilizados na infância segue a vida do homem como pontes que vão ligando as etapas de sua vida. A saber, a representação da expiação pelo sacrifício animal ou humano é complexo e requer a compreensão de suas particularidades na história humana. Assim segue-se que o luto é uma expressão de apaziguamento com aquele que morreu. O que vemos no totemismo na infância é o complexo do pai. Essa relação dos filhos para como o pai, a lei, está na subjetividade de cada pessoa, mas os fios que ligam os processos coletivos da mente, sucessivos nas gerações, revelam dificuldades que, para serem superadas exige um trabalho interior de renúncia, aceitação, incorporação da lei, do lugar na concepção que Lacan designa por nó borromeano (a fantasia, o simbólico e o real). A superação, elaboração dos sentimentos primitivos, como o ciúme, a inveja, a disputa, a relação de poder material, requer uma ação trabalhosa, como a de um artesão de diamantes. Mas a compreensão de que esse artesão simbólico vai de geração a geração através da arquitetura psíquica interpretando, “desfazendo deformações”, dogmas, costumes, refazendo a herança psíquica é um caminho possível, de reencontro com a essência que habita cada ser humano, que não deixa de ser a mesma luz do diamante.

Referências
FREUD, S.  – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS (1913 – 1914),  Obras Completas de Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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