“Mas assim
como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que
permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões
no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos
encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas
inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do
comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a
reconstruir por meio de suplementação e da combinação dos restos que
sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e
fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se defronta o arqueólogo
é notoriamente, a determinação da idade relativa de seus achados, e se um
objeto faz seu aparecimento em determinado nível, frequentemente resta decidir
se ele pertence a esse nível ou se foi carregado para o mesmo devido a alguma
perturbação subsequente. É fácil imaginar as dúvidas correspondentes que surgem
no caso das construções analíticas” (Freud 1937 – p.277)
É corrente em psicanálise falar-se de interpretações e pouco de
construções. Em seu percurso Freud construiu várias histórias de seus
pacientes, que tornaram célebres e muito contribuíram para a compreensão dos
sofrimentos humanos. Assim, refletir sobre construções, tão distanciada da
atual clínica de saúde mental, seja pela ausência de prontuários narrativos,
articulados, ou pela própria dificuldade teórica de articulá-los, ficando mais
fácil a denominação ou diagnóstico nominal. Não vamos aqui tão pouco falar de
DSM – uma nominação do sofrimento psíquico - Começamos então pelo final do
artigo de Freud “Construções em Análise”:
“Se considerarmos a humanidade como um todo e substituirmos o indivíduo
humano isolado por ela, descobriremos que também ela desenvolveu delírios que
são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, apesar
disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os
homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo
isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à
tona a partir da repressão do passado esquecido e primevo” (Freud 1937, p.287).
É certo que somente esse trecho daria um
imenso artigo. Não só pelas possibilidades que coloca, como pela construção
coletiva que as sociedades fazem e influenciam a subjetividade e
individualidade. Constituindo “valores” a serem seguidos no sentido de manter a
estrutura psíquica dos sujeitos, como são as concepções de beleza, poder,
riqueza e segurança, onde para se sentir-se seguro é “necessário ter uma arma”.
A questão a seguir
é a construção ou reconstrução da história que o sujeito faz em análise. Ao
analista cabe inserir uma interpretação que contribua na construção,
reconstrução de um caminho, um destino. Mas é necessário construir a história,
não só enquanto direção clínica, mas como algo que se vai “tecendo a quatro
mãos”. Sabemos que não é fácil vencer as repressões primitivas do
desenvolvimento humano, principalmente, quando envolve grandes sofrimentos, e
aos poucos sendo substituídas por reações mais maduras. Como o fundamental está
esquecido, trancado pelo superego, Freud interroga: “Que tipo de material
põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para colocá-lo no caminho
da recuperação das lembranças perdidas?” E
na sequencia irá nos sinalizar que pela associação livre irá se revelar
experiências afetivas, aflitivas, reprimidas e seus sintomas.
O analista, como o
arqueólogo está sempre à procura de algo, que é a “sequencia” de fatos, dos
primeiros tempos de existência, que venha a fazer sentido em suas conexões e
sintomas. Recordar, lembrar algo que foi vivenciado com intenso sofrimento, e,
portanto esquecido, reprimido, não é tarefa fácil. A tarefa do analista não é
menos árdua, pois há que “completar
aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais
corretamente, construí-lo”. Algo que está vivo e demanda cura,
acolhimento, escuta, acalento. Difícil precisar no tempo e no espaço. O que é
facilitador são as repetições dos tempos, sejam quais forem e que facilita a
reconstrução. Podemos até dizer, que algo há que se repetir, para que seja
reconstruído. Como estamos lidando com algo vivo o essencial dos fatos, vivências,
estão preservados em algum lugar inacessível, mas que retorna como sintoma. Há
que identifica-los, para além dos sintomas. Algo da estrutura psíquica está
sempre preservada. Sobrevive em seus escombros. O mistério que ainda cerca o
psiquismo humano em sua estrutura mais refinada atesta o insuficiente
conhecimento que temos hoje, para afirmações e verdades absolutas. Não deixam
de serem as afirmações e verdades que um momento histórico conseguiu produzir.
Há que refinar a escuta, a pesquisa, o estudo.
Se a construção é um trabalho preliminar, o que nos espera? Nos espera
a ação do sujeito nessa construção e reconstrução de forma que os novos
elementos inseridos possam produzir raízes de uma nova construção, aonde cada
fragmento vai se juntando a outro e compondo algo que foi necessário ser
fragmentado para sobreviver. Assim “construção’
é de longe a descrição mais apropriada. ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se
faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação”. A palavra e o silêncio do sujeito e do
analista intermedia a
construção.
Por certo muitas das lembranças são tão enigmáticas, desfocada dos
eventos em questão, que poderão ecoar como delírio, alucinação, pela forma incompreensível que se
apresenta, e que independe da estrutura clínica. Como todo o reprimido está
submetido a um forte “impulso ascendente”, pois os traços mnêmicos lá estão
redirecionando-o para outros objetos “algo
que a criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia falar e que agora
força o seu caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido
à operação de forças que se opõem a esse retorno” (Freud 1937, p.285). Como essas lembranças que “não colam”
ao processo de construção, estão também submetidas ao “impulso ascendente”, há
que cuidar se essa lembrança “afastada” da realidade em questão é apenas uma
forma de se inserir na construção ou reconstrução, à medida que as resistências
vão sendo vencidas e as novas construções vão se fortalecendo e amadurecendo.
Se há um passado de verdades históricas da humanidade, essa causação é
complexa, habita todos os seres humanos e cabe a cada um libertar seus
fragmentos de verdades históricas em sua complexidade, na sua vida presente,
“revelar suas conexões íntimas”, com esperança de construção de um futuro mais
assertivo, menos sofrido, mais apaziguado.
Referência
FREUD, S. – CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE (1937), Obras
Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.