13 de janeiro de 2014

A “Construção” da História do Sujeito

“Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio de suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se defronta o arqueólogo é notoriamente, a determinação da idade relativa de seus achados, e se um objeto faz seu aparecimento em determinado nível, frequentemente resta decidir se ele pertence a esse nível ou se foi carregado para o mesmo devido a alguma perturbação subsequente. É fácil imaginar as dúvidas correspondentes que surgem no caso das construções analíticas” (Freud 1937 – p.277)

É corrente em psicanálise falar-se de interpretações e pouco de construções. Em seu percurso Freud construiu várias histórias de seus pacientes, que tornaram célebres e muito contribuíram para a compreensão dos sofrimentos humanos. Assim, refletir sobre construções, tão distanciada da atual clínica de saúde mental, seja pela ausência de prontuários narrativos, articulados, ou pela própria dificuldade teórica de articulá-los, ficando mais fácil a denominação ou diagnóstico nominal. Não vamos aqui tão pouco falar de DSM – uma nominação do sofrimento psíquico - Começamos então pelo final do artigo de Freud “Construções em Análise”: “Se considerarmos a humanidade como um todo e substituirmos o indivíduo humano isolado por ela, descobriremos que também ela desenvolveu delírios que são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da repressão do passado esquecido e primevo” (Freud 1937, p.287).  É certo que somente esse trecho daria um imenso artigo. Não só pelas possibilidades que coloca, como pela construção coletiva que as sociedades fazem e influenciam a subjetividade e individualidade. Constituindo “valores” a serem seguidos no sentido de manter a estrutura psíquica dos sujeitos, como são as concepções de beleza, poder, riqueza e segurança, onde para se sentir-se seguro é “necessário ter uma arma”. 

A questão a seguir é a construção ou reconstrução da história que o sujeito faz em análise. Ao analista cabe inserir uma interpretação que contribua na construção, reconstrução de um caminho, um destino. Mas é necessário construir a história, não só enquanto direção clínica, mas como algo que se vai “tecendo a quatro mãos”. Sabemos que não é fácil vencer as repressões primitivas do desenvolvimento humano, principalmente, quando envolve grandes sofrimentos, e aos poucos sendo substituídas por reações mais maduras. Como o fundamental está esquecido, trancado pelo superego, Freud interroga: Que tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para colocá-lo no caminho da recuperação das lembranças perdidas?” E na sequencia irá nos sinalizar que pela associação livre irá se revelar experiências afetivas, aflitivas, reprimidas e seus sintomas.  

O analista, como o arqueólogo está sempre à procura de algo, que é a “sequencia” de fatos, dos primeiros tempos de existência, que venha a fazer sentido em suas conexões e sintomas. Recordar, lembrar algo que foi vivenciado com intenso sofrimento, e, portanto esquecido, reprimido, não é tarefa fácil. A tarefa do analista não é menos árdua, pois há que “completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo”. Algo que está vivo e demanda cura, acolhimento, escuta, acalento. Difícil precisar no tempo e no espaço. O que é facilitador são as repetições dos tempos, sejam quais forem e que facilita a reconstrução. Podemos até dizer, que algo há que se repetir, para que seja reconstruído. Como estamos lidando com algo vivo o essencial dos fatos, vivências, estão preservados em algum lugar inacessível, mas que retorna como sintoma. Há que identifica-los, para além dos sintomas. Algo da estrutura psíquica está sempre preservada. Sobrevive em seus escombros. O mistério que ainda cerca o psiquismo humano em sua estrutura mais refinada atesta o insuficiente conhecimento que temos hoje, para afirmações e verdades absolutas. Não deixam de serem as afirmações e verdades que um momento histórico conseguiu produzir. Há que refinar a escuta, a pesquisa, o estudo.

Se a construção é um trabalho preliminar, o que nos espera? Nos espera a ação do sujeito nessa construção e reconstrução de forma que os novos elementos inseridos possam produzir raízes de uma nova construção, aonde cada fragmento vai se juntando a outro e compondo algo que foi necessário ser fragmentado para sobreviver. Assim construção’ é de longe a descrição mais apropriada. ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação”. A palavra e o silêncio do sujeito e do analista  intermedia a construção.

Por certo muitas das lembranças são tão enigmáticas, desfocada dos eventos em questão, que poderão ecoar como delírio, alucinação, pela  forma incompreensível que se apresenta, e que independe da estrutura clínica. Como todo o reprimido está submetido a um forte “impulso ascendente”, pois os traços mnêmicos lá estão redirecionando-o para outros objetos “algo que a criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia falar e que agora força o seu caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à operação de forças que se opõem a esse retorno” (Freud 1937, p.285). Como essas lembranças que “não colam” ao processo de construção, estão também submetidas ao “impulso ascendente”, há que cuidar se essa lembrança “afastada” da realidade em questão é apenas uma forma de se inserir na construção ou reconstrução, à medida que as resistências vão sendo vencidas e as novas construções vão se fortalecendo e amadurecendo. Se há um passado de verdades históricas da humanidade, essa causação é complexa, habita todos os seres humanos e cabe a cada um libertar seus fragmentos de verdades históricas em sua complexidade, na sua vida presente, “revelar suas conexões íntimas”, com esperança de construção de um futuro mais assertivo, menos sofrido, mais apaziguado.
Referência

FREUD, S.  – CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE (1937),  Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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