As defesas
do ego “dependem do desenvolvimento moral, intelectual” e espiritual.
Como cada
sujeito compreende seu funcionamento mental, é algo que pertence a sua
subjetividade. Se seu superego lhe permite uma reflexão mais criteriosa sobre
si mesmo, então se aproximará da “verdade” de sua essência. Por certo que os
fatos traumáticos da vida de uma pessoa irão repercutir como uma onda sonora
durante toda sua vida. A neurose histérica, tão afastada dos diagnósticos de
saúde mental na atualidade, principalmente diante da complexidade da vida, vai
aumentando as dificuldades, não só em relação ao sujeito, mas aos profissionais
de saúde mental de articularem um diagnóstico diferencial para a neurose
histérica. Há também a questão do modismo e dos interesses mercadológicos dos
medicamentos e produtos voltados a determinados grupos sociais. Nesse sentido o
DSM a cada período redefine “doença mental”, muitas vezes alinhado às demandas
“econômicas” e “sociais”. Em toda anamnese as causas que sustentam a
neurose histérica, são complexas e muitas vezes difíceis de encontrar um “fio
condutor”. Da “predisposição hereditária derivada de seus antepassados”, a
infinidade de marcas mnêmicas, esse trecho do artigo de Freud é elucidador no
sentido da investigação da história do sujeito:
“Imaginemos
que um explorador chega a uma região pouco conhecida onde seu interesse é
despertado por uma extensa área de ruínas, com restos de paredes, fragmentos de
colunas e lápides com inscrições meio apagadas e ilegíveis. Pode contentar-se
em inspecionar o que está visível, em interrogar os habitantes que moram nas
imediações — talvez uma população semibárbara — sobre o que a tradição lhes diz
a respeito da história e do significado desses resíduos arqueológicos, e em
anotar o que eles lhe comunicarem — e então seguir viagem. Mas pode agir de
modo diferente. Pode ter levado consigo picaretas, pás e enxadas, e colocar os
habitantes para trabalhar com esses instrumentos. Junto com eles, pode partir
para as ruínas, remover o lixo e, começando dos resíduos visíveis, descobrir o
que está enterrado. Se seu trabalho for coroado de êxito, as descobertas se
explicarão por si mesmas: as paredes tombadas são parte das muralhas de um
palácio ou de um depósito de tesouro; os fragmentos de colunas podem reconstituir
um templo; as numerosas inscrições, que, por um lance de sorte, talvez sejam
bilíngues, revelam um alfabeto e uma linguagem que, uma vez decifrados e
traduzidos, fornecem informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais
remoto passado em cuja homenagem os monumentos foram erigidos. Saxa loquuntur!
(As pedras falam). (p.190)
O trabalho
psíquico, de autoconhecimento, de revelação das “causas últimas”, da essência,
é de certa forma um trabalho arqueológico que não é possível mensurar no tempo.
A complexidade dos símbolos mnêmicos remonta a experiências traumáticas de
longo tempo. O que determinou o sintoma, quando e onde e de qual forma, é a
questão a si defrontar, com a força das cenas traumáticas, ou seja, a
quantidade de economia, de energia psíquica para manter o equilíbrio. Encontrar
o caminho de volta à lembrança, ou as lembranças que desencadeiam os sintomas
histéricos, é como percorrer um caminho que vai se desdobrando em diversas
direções até encontrar uma lembrança que se articula com o sintoma. É a cadeia
de associações que funcionam como transições na reprodução dos traumas vividos.
É como seguir por fios que possuem sequencias em direções diversas onde em
algum ponto estará à lembrança ou uma lembrança que dará significado ao sintoma,
possibilitando o encadeamento a outras lembranças que dê um significado mais
profundo aos sintomas. Como os escombros de uma escavação a cadeia de
associações possui vários elos, que se ramificam e se interligam. Assim a cada
experiência somam-se lembranças inconscientes, fazendo com que o sintoma esteja
ligado a experiências adormecidas e que são despertas na cadeia de associações
que as novas experiências vinculam.
As
lembranças podem contribuir na compreensão e interpretação dos sintomas
histéricos. Nos estudos do inconsciente, na civilização em que vivemos, não é
possível esgotar a cadeia de lembranças, até onde se estendem e quais
significam uma repetição. Grande parte daquilo que é a essência do humano diz
respeito a uma repetição, que dificilmente se localizará no tempo e em qual
período de vida. A cadeia de lembranças ramificada, se articula para proteger o
psiquismo de sofrimentos, assim ao mesmo tempo em que regride, avança,
revelando-se. As ramificações podem estar ligadas a cadeia principal ou pode,
devido a circunstancias vir a se constituir em uma cadeia principal, como
também uma lembrança pode revelar-se em diversas formas dificultando a
identificação da cena “primeira”, que é circunstancial. A ordem cronológica
aqui é diferente no sentido arqueológico, pois enquanto essa é material, aqui é
subjetiva e organizada pelo psiquismo de acordo com uma sequência que
corresponde à razão. Como as cadeias associativas de lembranças podem
convergir, encontramos uma enxaqueca e uma taquicardia sendo desencadeada por
um grande aborrecimento, da mesma forma que um grande aborrecimento pode
ligar-se a dor no peito e enxaqueca de uma outra experiência no tempo.
Os traumas sejam banais ou graves afetam o sujeito com seus
sintomas no corpo ou no psiquismo, nas diversas reações que produz. Sem a
cooperação das lembranças os sintomas histéricos emergem, mas são de difícil
compreensão. Retroceder a memória levará a causas que geralmente envolvem as
pulsões mais primitivas do humano sendo satisfeitas no grupo familiar ou por
pessoas próximas: essas pulsões dizem respeito ao assedio, sedução sexual ou
relações sexuais entre crianças, adolescentes e estes e os adultos e o destino
que essas crianças ou adolescentes direcionam essas experiências, delineará o
funcionamento psíquico do sujeito. Uma vez esquecidas, necessitam vir à
consciência para serem reelaboradas. O esquecimento necessário à sobrevivência
psíquica tem sua função na dor, que uma revelação provoca. Articular sintomas
tais como: controle excessivo de situações, pessoas, objetos, higiene, limpeza,
rebaixamento do pudor sexual, exposição excessiva do corpo, exacerbação da
necessidade sexual, cuidado excessivo com a aparência física, delírios de
grandeza, são alguns dos sintomas que se evidenciam. Os dados do Ministério da
saúde revelam a extensão dessas experiências para crianças e adolescentes:
“A violência sexual em crianças de 0 a 9 anos de idade é o
segundo maior tipo de violência mais característico nessa faixa etária, ficando
pouco atrás apenas para as notificações de negligência e abandono. A conclusão
é de um levantamento inédito do Ministério da Saúde. A pesquisa mostra que, em
2011, foram registrados 14.625 notificações de violência doméstica, sexual,
física e outras agressões contra crianças menores de dez anos. A violência
sexual contra crianças até os 9 anos representa 35% das notificações. Já a
negligência e o abandono tem 36% dos registros”.
“A maior parte das agressões ocorreram na residência da criança
(64,5%). Em relação ao meio utilizado para agressão, a força corporal e
espancamento foi o meio mais apontado (22,2%), atingindo mais meninos (23%) do
que meninas (21,6%). Em 45,6% dos casos o provável autor da violência era do
sexo masculino. Grande parte dos agressores são pais e outros familiares, ou
alguém do convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e
vizinhos”.
Os danos
mnêmicos resultantes dessa realidade requer um acolhimento especial, uma vez
que desperta prematuramente a libido. As experiências que representaram
sofrimento na infância repetem-se ao longo da existência. O sexo tem a função
de procriação e de liberação de uma energia pulsional, que se expressa pela
sexualidade. Quando essas relações são vivenciadas na infância, onde o
desenvolvimento psicofísico ainda não ocorreu em sua plenitude, às experiências
tornam-se traumáticas, principalmente porque a maioria ocorre no meio familiar.
Então o sujeito que sofre o abuso tende a repetir esse abuso quando adulto até
como um sintoma. Assim “Haverá
a constituição hereditária e pessoal do sujeito, a importância intrínseca das
experiências sexuais infantis e, acima de tudo, seu número — um relacionamento
breve com um garoto estranho, que depois se torna indiferente, deixará um
efeito menos poderoso numa menina do que relações sexuais íntimas mantidas por
vários anos com seu próprio irmão.” Ou
mesmo com o pai, mãe, padrasto, madrasta, tios, avós.
Essas
experiências geram conflitos psíquicos, que são recalcados, guardados no mais
profundo inconsciente, desencadeando sintomas de neurose histérica. A lógica da
defesa é pressionar os conteúdos do inconsciente a romperem a barreira do
superego para serem “curadas”. Como o sofrimento da “revelação” é doloroso,
torna-se difícil a eclosão das lembranças inconscientes. As defesas do ego
dependem do desenvolvimento moral, intelectual e espiritual do sujeito. Cada
sintoma vai se constituindo ao longo da vida nas diversas experiências
conflituosas vivenciadas, fruto de experiências sexuais prematuras. Essas
experiências encontrarão seus representantes, que possuem uma conexão
associativa através de elos com a lembrança das experiências passada. Freud em
1986 ao falar de um tema que é tão atual, descreveu a questão do abuso sexual
infantil e das experiências sexuais prematuras da seguinte forma:
“E isso
porque a ideia dessas cenas sexuais infantis é muito repelente para os
sentimentos de um indivíduo sexualmente normal; elas incluem todos os abusos
conhecidos pelas pessoas depravadas e impotentes, entre as quais a cavidade bucal
e o reto são indevidamente usados para fins sexuais. Nos médicos, o espanto
diante disso logo cede lugar a um entendimento completo. Das pessoas que não
hesitam em satisfazer seus desejos sexuais com crianças não se pode esperar que
relutem ante nuanças mais sutis dos métodos para obter essa satisfação; e a
impotência sexual inerente às crianças força-as inevitavelmente às mesmas ações
substitutivas a que se rebaixam os adultos quando se tornam impotentes. Todas
as singulares condições em que esse par inadequado conduz suas relações
amorosas — de um lado, o adulto que não consegue escapar de sua parcela na
dependência mútua necessariamente implicada por uma relação sexual, mas que,
apesar disso, está munido de completa autoridade e do direito de punir, e que
pode inverter esses papéis para a satisfação irrestrita de seus caprichos; e de
outro lado, a criança, que em seu desamparo fica à mercê dessa vontade
arbitrária, que é prematuramente despertada para todo tipo de sensibilidade e
exposta a toda sorte de desapontamentos, e cujo desempenho das atividades
sexuais que lhe são atribuídas é frequentemente interrompido pelo controle
imperfeito de suas necessidades naturais —, todas essa incongruências
grotescas, mas trágicas, mostram-se impressas no desenvolvimento posterior do
indivíduo e de sua neurose, em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser
delineados nos mínimos detalhes. Quando a relação se dá entre duas crianças, o
caráter das cenas sexuais não é de espécie menos repulsiva, já que todo relacionamento
dessa natureza entre crianças pressupõe a sedução prévia de uma delas por um
adulto. As consequências psíquicas dessas relações entre crianças são
extraordinariamente abrangentes; os dois indivíduos permanecem ligados por um
elo invisível durante toda a vida.”(p.210)
Os
sintomas histéricos assim desencadeados vão reproduzindo-se em uma escala de
associação, que vão se superpondo. “Escavar” as camadas e encontrar os
fragmentos das representações é caminho terapêutico de autoconhecimento, pois
isso supõe compreender o choro, o desespero, a tentativa de suicídio, as
“pequenas” ofensas que desencadeias as lembranças das grandes ofensas, ou
ofensas que nunca foram superadas.
O
despertar de uma lembrança ocorre quando se interroga um ponto do psiquismo,
que causa sofrimento ou quando este é fonte de um conflito. Há que lembrarmos
que possui um papel importante a resistência, a relação de transferência, e os
recursos psíquicos que o sujeito possui para lidar com suas “verdades”. Ao
discursar sobre “essas verdades” muitas vezes o que se revela é, “falsas ligações entre a causa mais
recente, da qual estão conscientes, e o efeito, que depende de inúmeros elos
intermediários”. As experiências
que desagregaram o ego continuam gerando estímulos, que causam sofrimento.
Então, diante de uma experiência atual, o mesmo estímulo do passado continua
atuando, pois está ligado na cadeia de associações. No sentido de adaptar seus
conflitos que trazem uma carga de culpa e remorso, é realizado um discurso
delirante, distorcido, em que as implicações necessárias são abolidas. O que
influenciará a forma de defesa é o abuso sexual na infância ser experimentado
com prazer ou desprazer. Muito há que se estudar, pesquisar e desenvolver uma
escuta “fina”, novas técnicas, no sentido de compreender os fatores na
“escolha” das neuropsicoses de defesa e de como possibilitar a revelação de
conteúdos que são “inadmissíveis à consciência”. As “pedras falam” em seus
significados e significantes, que nem sempre são visíveis.
Referências
FREUD,
S. – A
ETIOLOGIA DA HISTERIA (1896), Obras Completas de Psicanálise - volume III.
Rio de Janeiro, Imago - 1996.