1 de março de 2015

2 - HISTERIA – “As pedras falam”

As defesas do ego “dependem do desenvolvimento moral, intelectual” e espiritual.

Como cada sujeito compreende seu funcionamento mental, é algo que pertence a sua subjetividade. Se seu superego lhe permite uma reflexão mais criteriosa sobre si mesmo, então se aproximará da “verdade” de sua essência. Por certo que os fatos traumáticos da vida de uma pessoa irão repercutir como uma onda sonora durante toda sua vida. A neurose histérica, tão afastada dos diagnósticos de saúde mental na atualidade, principalmente diante da complexidade da vida, vai aumentando as dificuldades, não só em relação ao sujeito, mas aos profissionais de saúde mental de articularem um diagnóstico diferencial para a neurose histérica. Há também a questão do modismo e dos interesses mercadológicos dos medicamentos e produtos voltados a determinados grupos sociais. Nesse sentido o DSM a cada período redefine “doença mental”, muitas vezes alinhado às demandas  “econômicas” e “sociais”. Em toda anamnese as causas que sustentam a neurose histérica, são complexas e muitas vezes difíceis de encontrar um “fio condutor”. Da “predisposição hereditária derivada de seus antepassados”, a infinidade de marcas mnêmicas, esse trecho do artigo de Freud é elucidador no sentido da investigação da história do sujeito:

“Imaginemos que um explorador chega a uma região pouco conhecida onde seu interesse é despertado por uma extensa área de ruínas, com restos de paredes, fragmentos de colunas e lápides com inscrições meio apagadas e ilegíveis. Pode contentar-se em inspecionar o que está visível, em interrogar os habitantes que moram nas imediações — talvez uma população semibárbara — sobre o que a tradição lhes diz a respeito da história e do significado desses resíduos arqueológicos, e em anotar o que eles lhe comunicarem — e então seguir viagem. Mas pode agir de modo diferente. Pode ter levado consigo picaretas, pás e enxadas, e colocar os habitantes para trabalhar com esses instrumentos. Junto com eles, pode partir para as ruínas, remover o lixo e, começando dos resíduos visíveis, descobrir o que está enterrado. Se seu trabalho for coroado de êxito, as descobertas se explicarão por si mesmas: as paredes tombadas são parte das muralhas de um palácio ou de um depósito de tesouro; os fragmentos de colunas podem reconstituir um templo; as numerosas inscrições, que, por um lance de sorte, talvez sejam bilíngues, revelam um alfabeto e uma linguagem que, uma vez decifrados e traduzidos, fornecem informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais remoto passado em cuja homenagem os monumentos foram erigidos. Saxa loquuntur! (As pedras falam). (p.190)

O trabalho psíquico, de autoconhecimento, de revelação das “causas últimas”, da essência, é de certa forma um trabalho arqueológico que não é possível mensurar no tempo. A complexidade dos símbolos mnêmicos remonta a experiências traumáticas de longo tempo. O que determinou o sintoma, quando e onde e de qual forma, é a questão a si defrontar, com a força das cenas traumáticas, ou seja, a quantidade de economia, de energia psíquica para manter o equilíbrio. Encontrar o caminho de volta à lembrança, ou as lembranças que desencadeiam os sintomas histéricos, é como percorrer um caminho que vai se desdobrando em diversas direções até encontrar uma lembrança que se articula com o sintoma. É a cadeia de associações que funcionam como transições na reprodução dos traumas vividos. É como seguir por fios que possuem sequencias em direções diversas onde em algum ponto estará à lembrança ou uma lembrança que dará significado ao sintoma, possibilitando o encadeamento a outras lembranças que dê um significado mais profundo aos sintomas. Como os escombros de uma escavação a cadeia de associações possui vários elos, que se ramificam e se interligam. Assim a cada experiência somam-se lembranças inconscientes, fazendo com que o sintoma esteja ligado a experiências adormecidas e que são despertas na cadeia de associações que as novas experiências vinculam.

As lembranças podem contribuir na compreensão e interpretação dos sintomas histéricos. Nos estudos do inconsciente, na civilização em que vivemos, não é possível esgotar a cadeia de lembranças, até onde se estendem e quais significam uma repetição. Grande parte daquilo que é a essência do humano diz respeito a uma repetição, que dificilmente se localizará no tempo e em qual período de vida. A cadeia de lembranças ramificada, se articula para proteger o psiquismo de sofrimentos, assim ao mesmo tempo em que regride, avança, revelando-se. As ramificações podem estar ligadas a cadeia principal ou pode, devido a circunstancias vir a se constituir em uma cadeia principal, como também uma lembrança pode revelar-se em diversas formas dificultando a identificação da cena “primeira”, que é circunstancial. A ordem cronológica aqui é diferente no sentido arqueológico, pois enquanto essa é material, aqui é subjetiva e organizada pelo psiquismo de acordo com uma sequência que corresponde à razão. Como as cadeias associativas de lembranças podem convergir, encontramos uma enxaqueca e uma taquicardia sendo desencadeada por um grande aborrecimento, da mesma forma que um grande aborrecimento pode ligar-se a dor no peito e enxaqueca de uma outra experiência no tempo. 

Os traumas sejam banais ou graves afetam o sujeito com seus sintomas no corpo ou no psiquismo, nas diversas reações que produz. Sem a cooperação das lembranças os sintomas histéricos emergem, mas são de difícil compreensão. Retroceder a memória levará a causas que geralmente envolvem as pulsões mais primitivas do humano sendo satisfeitas no grupo familiar ou por pessoas próximas: essas pulsões dizem respeito ao assedio, sedução sexual ou relações sexuais entre crianças, adolescentes e estes e os adultos e o destino que essas crianças ou adolescentes direcionam essas experiências, delineará o funcionamento psíquico do sujeito. Uma vez esquecidas, necessitam vir à consciência para serem reelaboradas. O esquecimento necessário à sobrevivência psíquica tem sua função na dor, que uma revelação provoca. Articular sintomas tais como: controle excessivo de situações, pessoas, objetos, higiene, limpeza, rebaixamento do pudor sexual, exposição excessiva do corpo, exacerbação da necessidade sexual, cuidado excessivo com a aparência física, delírios de grandeza, são alguns dos sintomas que se evidenciam. Os dados do Ministério da saúde revelam a extensão dessas experiências para crianças e adolescentes:

 “A violência sexual em crianças de 0 a 9 anos de idade é o segundo maior tipo de violência mais característico nessa faixa etária, ficando pouco atrás apenas para as notificações de negligência e abandono. A conclusão é de um levantamento inédito do Ministério da Saúde. A pesquisa mostra que, em 2011, foram registrados 14.625 notificações de violência doméstica, sexual, física e outras agressões contra crianças menores de dez anos. A violência sexual contra crianças até os 9 anos representa 35% das notificações. Já a negligência e o abandono tem 36% dos registros”. 
“A maior parte das agressões ocorreram na residência da criança (64,5%). Em relação ao meio utilizado para agressão, a força corporal e espancamento foi o meio mais apontado (22,2%), atingindo mais meninos (23%) do que meninas (21,6%). Em 45,6% dos casos o provável autor da violência era do sexo masculino. Grande parte dos agressores são pais e outros familiares, ou alguém do convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e vizinhos”.

Os danos mnêmicos resultantes dessa realidade requer um acolhimento especial, uma vez que desperta prematuramente a libido. As experiências que representaram sofrimento na infância repetem-se ao longo da existência. O sexo tem a função de procriação e de liberação de uma energia pulsional, que se expressa pela sexualidade. Quando essas relações são vivenciadas na infância, onde o desenvolvimento psicofísico ainda não ocorreu em sua plenitude, às experiências tornam-se traumáticas, principalmente porque a maioria ocorre no meio familiar. Então o sujeito que sofre o abuso tende a repetir esse abuso quando adulto até como um sintoma. Assim “Haverá a constituição hereditária e pessoal do sujeito, a importância intrínseca das experiências sexuais infantis e, acima de tudo, seu número — um relacionamento breve com um garoto estranho, que depois se torna indiferente, deixará um efeito menos poderoso numa menina do que relações sexuais íntimas mantidas por vários anos com seu próprio irmão.” Ou mesmo com o pai, mãe, padrasto, madrasta, tios, avós.

Essas experiências geram conflitos psíquicos, que são recalcados, guardados no mais profundo inconsciente, desencadeando sintomas de neurose histérica. A lógica da defesa é pressionar os conteúdos do inconsciente a romperem a barreira do superego para serem “curadas”. Como o sofrimento da “revelação” é doloroso, torna-se difícil a eclosão das lembranças inconscientes. As defesas do ego dependem do desenvolvimento moral, intelectual e espiritual do sujeito. Cada sintoma vai se constituindo ao longo da vida nas diversas experiências conflituosas vivenciadas, fruto de experiências sexuais prematuras. Essas experiências encontrarão seus representantes, que possuem uma conexão associativa através de elos com a lembrança das experiências passada. Freud em 1986 ao falar de um tema que é tão atual, descreveu a questão do abuso sexual infantil e das experiências sexuais prematuras da seguinte forma:

“E isso porque a ideia dessas cenas sexuais infantis é muito repelente para os sentimentos de um indivíduo sexualmente normal; elas incluem todos os abusos conhecidos pelas pessoas depravadas e impotentes, entre as quais a cavidade bucal e o reto são indevidamente usados para fins sexuais. Nos médicos, o espanto diante disso logo cede lugar a um entendimento completo. Das pessoas que não hesitam em satisfazer seus desejos sexuais com crianças não se pode esperar que relutem ante nuanças mais sutis dos métodos para obter essa satisfação; e a impotência sexual inerente às crianças força-as inevitavelmente às mesmas ações substitutivas a que se rebaixam os adultos quando se tornam impotentes. Todas as singulares condições em que esse par inadequado conduz suas relações amorosas — de um lado, o adulto que não consegue escapar de sua parcela na dependência mútua necessariamente implicada por uma relação sexual, mas que, apesar disso, está munido de completa autoridade e do direito de punir, e que pode inverter esses papéis para a satisfação irrestrita de seus caprichos; e de outro lado, a criança, que em seu desamparo fica à mercê dessa vontade arbitrária, que é prematuramente despertada para todo tipo de sensibilidade e exposta a toda sorte de desapontamentos, e cujo desempenho das atividades sexuais que lhe são atribuídas é frequentemente interrompido pelo controle imperfeito de suas necessidades naturais —, todas essa incongruências grotescas, mas trágicas, mostram-se impressas no desenvolvimento posterior do indivíduo e de sua neurose, em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser delineados nos mínimos detalhes. Quando a relação se dá entre duas crianças, o caráter das cenas sexuais não é de espécie menos repulsiva, já que todo relacionamento dessa natureza entre crianças pressupõe a sedução prévia de uma delas por um adulto. As consequências psíquicas dessas relações entre crianças são extraordinariamente abrangentes; os dois indivíduos permanecem ligados por um elo invisível durante toda a vida.”(p.210)

Os sintomas histéricos assim desencadeados vão reproduzindo-se em uma escala de associação, que vão se superpondo. “Escavar” as camadas e encontrar os fragmentos das representações é caminho terapêutico de autoconhecimento, pois isso supõe compreender o choro, o desespero, a tentativa de suicídio, as “pequenas” ofensas que desencadeias as lembranças das grandes ofensas, ou ofensas que nunca foram superadas.

O despertar de uma lembrança ocorre quando se interroga um ponto do psiquismo, que causa sofrimento ou quando este é fonte de um conflito. Há que lembrarmos que possui um papel importante a resistência, a relação de transferência, e os recursos psíquicos que o sujeito possui para lidar com suas “verdades”. Ao discursar sobre “essas verdades” muitas vezes o que se revela é, “falsas ligações entre a causa mais recente, da qual estão conscientes, e o efeito, que depende de inúmeros elos intermediários”. As experiências que desagregaram o ego continuam gerando estímulos, que causam sofrimento. Então, diante de uma experiência atual, o mesmo estímulo do passado continua atuando, pois está ligado na cadeia de associações. No sentido de adaptar seus conflitos que trazem uma carga de culpa e remorso, é realizado um discurso delirante, distorcido, em que as implicações necessárias são abolidas. O que influenciará a forma de defesa é o abuso sexual na infância ser experimentado com prazer ou desprazer. Muito há que se estudar, pesquisar e desenvolver uma escuta “fina”, novas técnicas, no sentido de compreender os fatores na “escolha” das neuropsicoses de defesa e de como possibilitar a revelação de conteúdos que são “inadmissíveis à consciência”. As “pedras falam” em seus significados e significantes, que nem sempre são visíveis.

Referências
FREUD, S.  – A ETIOLOGIA DA HISTERIA (1896), Obras Completas de Psicanálise - volume III. Rio de Janeiro, Imago - 1996.

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