É natural
na psicanálise, quando se fala de Kant a interrogação: E o texto de Lacan: Kant
com Sade? Refere-se como duas leituras excludentes. Talvez até por desconhecer
que Freud frequentava os círculos Kantianos de Viena, o se interrogar por uma
escolha. Importante advertir que Kant trata da questão da razão
prática e a liberdade. Então o agir por dever é o modo de
conferir à ação o valor moral; mas, a perfeição moral só pode ser
atingida por uma vontade livre. Kant causa desconforto ao discurso de relativização
da moral, da lei. O que incomodou Lacan não foi Kant, foi a impossibilidade de
um discurso livre sobre Sade, de escrever um prefácio para “A filosofia da
alcova” de Sade “sem” Kant, pois este, discorre sobre a razão estruturada na
lei, que é ignorada em Sade. Que o lugar da ética vem sendo retificado para que
possa abarcar a ciência ou justificá-la é fato. Essa via deste as mais remotas
academias possui um caminho decisivo em Kant, e continua incomodando, mesmo
mais de 200 anos depois de sua morte. O princípio do prazer está em Kant como
instinto sublimado, excluído do patológico.
A primeira
interrogação é porque “com”?
Porque ler Kant sem Sade é da ordem da falta, mas o sujeito só se estrutura
como Ser faltante. Mas Lacan só consegue ler Kant com Sade, ou seja, sem a
falta e necessita da falta para ler Sade. O que tanto encanta Lacan em Sade? o
que é insuportável em Kant para Lacan é a falta. É certo que Sade não antecipa
Freud tão pouco “prepara-se a
ciência retificando a posição da ética”. Quando
Freud enunciou a tese do princípio do prazer, o que estava em discussão no que
diz respeito à ética, era e é a ética pela vida. O prazer iguala-se a vida e o
desprazer à morte, e essa é a luta pela vida. Isso, ao contrário do que diz
Lacan, não diz respeito a “felicidade no mal”. Então dizer que a “filosofia” da
alcova fornece a verdade da Crítica da Razão Prática é algo da ordem de uma
profunda divergência pela incompreensão da obra de Kant. O que Kant irá
delinear na Crítica da Razão Prática é que a razão pura é prática e desta forma
imanente, ou seja, ela se realiza, sendo vinculada á consciência de sua
necessidade. Então sem a imortalidade da alma, qual a “finalidade” da
perpetuidade obrigatória do esforço moral? Como é possível então Lacan
argumentar que a questão da imortalidade abordada por Kant é um “álibi” para
que o bem justifique o bem, pois a subversão que Lacan propõe é “que fiquemos bem no mal, ou, se
preferirmos, que o eterno feminino não eleve às alturas”, porque uma vez subvertido o feminino,
toda a subversão masculina está justificada.
Se a
vontade inteiramente boa é independente de todas as influências das
contingências, que a experiência possa dar então ao contrário do que diz Lacan: “Não se pode enunciar nenhuma lei:
fenômeno pode prevalecer-se de uma relação constante com o prazer”, não é verdadeira. Por que para
Lacan se constitui em um problema “a
investigação do bem seria um impasse, se ele não renascesse – das Gute, o bem
que é objeto da lei moral. Ele nos é apontado pela experiência que temos de
ouvir dentro de nós ordens cujo imperativo se apresenta como categórico, ou
seja, incondicional” (Lacan -
p.777). Se a liberdade real se manifesta por meio da lei moral; e se não
conhecemos nem penetramos a possibilidade de realidade, mas a realidade é a
aplicação da condição da vontade, a seu objeto facultado a priori, assim o bem
não exclui pulsão ou sentimento como afirma Lacan. Se o bem arrefece os
instintos primitivos e é constitutivo do amor-próprio, então não há razão de
ser denominado como arrogância por Lacan. A questão é o que tanto incomoda
Lacan em Kant e o que tanto o encanta em Sade?
O incomodo
que Lacan demonstra em relação à questão da liberdade na Crítica é porque a
liberdade real se manifesta por meio da lei moral, que para ele deveria está
desvinculada, então ele resolve esse paradoxo pela “filosofia” da alcova.
Quanto à questão da lei moral, nenhuma intuição oferecer a um objeto
fenomênico, devemos citar Kant: “Vida é a faculdade que possui um ser de
agir segundo as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a
faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da
realidade dos objetos dessas representações”. Então
se Lacan não percebeu a questão da intuição nas representações é porque através
da lei moral ele não as encontraria. Qual a intenção de Lacan de estabelecer um
suposto elo entre a obra de Kant e o panfleto da “filosofia” da alcova? A
suposta crítica política pelo sadismo das relações sexuais não passa de uma
mistificação anarquista, onde não cabe nenhuma comparação com as máximas da lei
moral em Kant. A máxima que Lacan enuncia: “Tenho
o direito de gozar de tu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse
direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê
gosto de nele saciar”. Nessa
questão o humor serve para revelar a verdade escondida no real. Deseja ele que
essa máxima se constitua enquanto imperativo categórico? Mas esse discurso do
“direito” é da ordem do perverso. Não é o imperativo da lei moral que exerce
influencia à demanda ao "direito" ao gozo? Assim como diz Kant na
Crítica “a liberdade é
indubitavelmente a ratio essendi da lei moral, mas a lei moral é a ratio
cognoscendi da liberdade...” então
o vínculo entre liberdade e lei moral é
indissociável em qualquer sociedade, que se constitui culturalmente.
Essa
reciprocidade, a qual Lacan contestará, pois sugere que a moral não pode ser
reconhecida como uma prática incondicional da razão. É temeroso colocar a
categoria do “imperativo categórico” enquanto uma possibilidade geral e não
universal, pois os imperativos categóricos constituem leis práticas, e devem
ser independentes de condições patológicas, pois sem essa condição como se
daria a sobrevivência cultural? Quanto à questão da “fenda” na lei moral, é
aquilo do qual o sujeito dará um destino, que é sua lei interna. Se o que torna
válida a lei é ser pronunciada pelo outro e não como algo que demanda “uma voz
interior”, não procede a dicotomia que Lacan coloca, pois se trata de uma
questão dialética. Colocar essa questão de forma positivista é o recurso que
ele utiliza para se aproximar de Sade; “Neste
aspecto, a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do outro, mais honesta
que o recurso à voz interior” (Lacan
- p.782). Quanto ao argumento de que “nenhum
homem pode ser de outro homem propriedade”, não pode ser “um pretexto para suspender o
direito de todos de usufruírem dele, cada qual a seu gosto”, pois então não
haveria liberdade ao gozo, um argumento que o aproxima de Sade e o afasta de
Kant. Para Sade não existe a lei moral, sua “filosofia” da alcova serve de base
a toda exploração do outro “que
se faça necessário”. Esse
necessário não considera o inconsciente, tão pouco o retorno do recalcado,
colocando o sujeito preso ao desejo do outro para acessar seu próprio desejo.
A
interrogação do sujeito e sua essência remete a Coisa em si. O sentimento de
prazer ou dor é determinado pelo que é bom ou mau. Assim o objeto não é
separado do sujeito. A razão pura prática é a representação de um objeto
produzido pela liberdade, e o objeto é a significação da relação de desejar.
Julgar se determinada coisa é ou não objeto da razão pura prática é discernir a
impossibilidade de querer a ação, mediante a qual se fossemos dotados de poder
seria necessário realizar o objeto, objeto que é o motivo de nossa faculdade de
desejar. Objeto fisicamente possível. O juízo deve estabelecer, se é ou não um
objeto da razão prática. Querer uma ação que tem como finalidade um objeto que
esteja dentro do nosso poder, neste caso o objeto não é mais do que a lei da
vontade. Que Lacan necessite de Sade para afirmar seu ateísmo é uma questão de
suporte da ordem da lei, a qual ele remete a Kant.
Ao pensar
a experiência sadiana como da ordem do sensível porque coloca o sujeito no
limiar entre o prazer e a dor é pensar na experiência do prazer de forma
sádica, patológica, no limite da morte, na medida em que o sujeito se esvai.
Nessa articulação Lacan estabelece sua máxima, mas afasta-se daquilo que seria
um imperativo categórico, a lei moral. Assim é necessário um argumento de
universalidade, para fazer valer seu discurso de sujeito “a”: “o aparecimento do objeto “a”. No lugar da causa se esclarece pelo
caráter universal de sua relação com a categoria da causalidade, o qual, ao
forçar o limiar da dedução transcendental de Kant, instauraria no eixo do
impuro “uma nova crítica da razão”. Então é possível o argumento de como
comparar princípios da determinação da vontade inteiramente diversos, o prazer
e a dor, quanto ao modo de representação para preferir aquele que mais afete a
faculdade de desejar? E se há algo que afeta a faculdade de desejar é da ordem
da falta, como Lacan resolve isso? Da seguinte forma: “É realmente com a vontade de Kant,
portanto, que se encontra no lugar dessa vontade, que só se pode dizer de gozo
explicando que se trata do sujeito reconstituído da alienação, ao preço de ser
apenas o instrumento do gozo. Assim, Kant por ser questionado por “com Sade”,
ou seja, com Sade fazendo às vezes, tanto para nosso pensamento quanto em seu
sadismo, de instrumento, confessa o que está incluído no sentido do “Que quer
ele? Que doravante não falta a ninguém” (Lacan
- p.785). Mas não faltar é da ordem do patológico. Então que resta a Sade ao
ignorar a lei moral? O perverso.
Analisar a
“filosofia” da alcova pela via kantiana diz respeito a uma demanda de lei
interna, que coloca o sujeito na incógnita de sua existência, no limite de sua
vida, pois a relação com a dor diz respeito a um limite que não é possível,
porque o que impera é o que Sade denomina como um “tormento eterno”. Se a
“saída” proposta por ele é o gozo sádico, ele enreda-se em sua armadilha, pois
o que resta é o crime, porque o gozo sádico pressupõe um crime. Se Lacan deseja
transgredir as filosofias religiosas citando “Burnouf,
ou seja, em algum ponto dos anos cinquenta (do século passado) – para eles “não
é possível que haja pessoas tão burras assim””(Lacan - p.788), para
“resolver” ao que Freud denominou de a “transitoriedade da vida”, há um
distanciamento de Freud , pois este ainda concebe uma transcendentalidade, até
por ser judeu, e ele assim o afirma. Se o sádico “nega a existência do Outro”, porque Sade com Kant? Para que Lacan possa afirmar que “o sadismo rechaça para o Outro a
dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se transmuda num
“objeto eterno”” (Lacan -
p.789), ou seja, ele deseja dar uma função para o sadismo através de Kant, e se
utiliza de um recurso que são as interrogações kantianas sobre a razão e a
transcendentalidade. Então antecipadamente Kant teria respondido: “a lei que impus a mim próprio
obriga-me a que nesta ordem de considerações, de modo algum seja permitido
emitir opiniões e que tudo que se pareça com uma hipótese seja mercadoria
proibida, que não se deve vender, nem pelo mais baixo preço, mas que urge
confiscar logo que seja descoberta.” (CRP - p.7). Se Lacan deseja vender uma função para
Sade, fica a questão; pois o objeto deve guiar-se pela natureza da nossa
faculdade da intuição e a experiência pela qual são conhecidas, reguladas por
conceitos.
Então, dar
um status conceitual aos objetos e representações de Sade através do conceito
de fantasia é simplificar a questão que ele mesmo propôs da “passagem ao ato”.
Sade escreve da “passagem ao ato”, do sadismo como gozo. Que a lei moral é da
ordem da falta, não há dúvida. Que o sujeito se insere na cultura pela lei
moral é certo. Como o sujeito se implica e a interrogação e o destino que dá a
sua lei interna, à castração e ao Édipo, pertence a subjetividade de cada um, a
qual é intransponível. Portanto é capcioso Lacan utilizar o argumento de Kant
sob o olhar de um seu leitor: “Suponham”,
diz ele, “alguém que alegue não poder resistir a sua paixão quando o objeto
amado e a oportunidade se apresentam; será que, se lhe houvesse erigido um
cadafalso em frente a casa em que ele encontra essa oportunidade, para nele o
acorrentar tão logo houvesse saciado seu desejo, ainda lhe seria impossível
resistir a este?” Resistir ou
não diz respeito a sua lei interna, a sua lei moral. E mais adiante o exemplo
continua: “Mas, se seu
príncipe lhe ordenasse, sob pena de morte, prestar falso testemunho contra um
homem de bem a quem ele quisesse arruinar por meio de um pretexto capcioso,
consideraria ele possível, em tal caso, vencer seu amor a vida, por maior que
pudesse ser?” O perverso ou
até o psicótico poderia subverter a lei e mentir, mas se estamos falando do
campo da neurose Kant diz: “Um
sagrado mandamento da razão: ser verídico (honesto) em todas as declarações”. Importante lembrarmos que Kant está se
referindo há homens cujo superego mantém o controle de seus instintos e não de
estruturas patológicas e ele adverte: “Tal
é o verdadeiro móvel da razão pura prática: outra coisa não é senão a própria
lei moral pura, a fazer-nos sentir a sublimidade da nossa própria existência
supra-sensível e produzindo subjetivamente, nos homens que tem consciência,
tanto de sua existência sensível como da consequente dependência de sua
natureza fortemente sujeita, sob esse aspecto, à afecção patológica, o respeito
a sua destinação superior” (CRPr
- p.93-158). A lei ao ser prática é simbólica, destituída do patológico.
Não é
necessário se ocupar de Sade com Kant para reconhecer em Kant
que o que sustenta o desejo é a lei, por isso o desejo é recalcado. As máximas
de Lacan sobre Sade o leva a considerar os escritos de Sade como “estripulias”
e Pinel como a “loucura moral”. Supor que o lugar de Sade e Pinel poderia ser
invertido e que Sade estaria na esquerda e Pinel na direita é do estilo Lacan
um sarcasmo perverso, porque em Pinel a liberdade de desejar não é em vão.
Desejar no campo do perverso? Que ele considere o sadismo de Sade, amor, e o amor
erudito em Kant uma palhaçada, afirmando que o que falta a Kant é Sade, então o
que falta a Lacan é Kant. E isto é o que o incomoda. Não encontrar um lugar em
Kant, que não seja via Sade. Ele desejava saber onde a Crítica levava e
deparou-se com a complexidade da obra kantiana. Então Lacan enuncia os atos
simples da razão, pois nas palavras de Kant “ocupo-me
unicamente da razão e do seu pensar puro e não tenho necessidade de procurar
longe de mim o seu conhecimento pormenorizado, pois o encontro em mim mesmo e
já a lógica vulgar me dá um exemplo de que se podem enunciar, de maneira
completa e sistemática, todos os atos simples da razão” (CRP – p.7). Retorna então, Lacan
a seu desejo sem encontrar um caminho para ele na obra kantiana. Interrogando: “Acaso a solução conforme a Razão
Prática seria eles ficarem girando em círculos?” Então, a “bandeira” de Lacan é a
tirania do desejo e o recalque um véu a encobri? Pois se para ele a obra
sadiana “se se pretende má não
pode permitir-se ser má obra” e
segue dizendo: “Sem dúvida, é
um tratado de educação para moças, e como tal está sujeito às leis de um
gênero. Apesar do proveito que tira de expor às claras o “sádico-anal” que
enfumaçava esse tema, em sua insistência obsedante nos dois séculos anteriores,
ele continua a ser um tratado educativo. O sermão ali é maçante para a vítima,
e enfatuado por parte do professor” (Lacan
- p.799). A questão final do desejo avesso à lei é somente um incomodo do
“desejo” lacaniano, perante Kant.
A
sequencia do texto expõe palavras e frases que nada acrescenta ao estudo dos
sofrimentos psíquicos, tão pouco da evolução do homem, subjetivo, simbólico,
espiritual, afirmando que o desejo está vinculado á lei, mas que o objetivo seria “acabar com a lei do lado de
dentro com o veredito sobre a submissão de Sade à lei” (Lacan – p.802). A submissão à lei
ocorre pela passagem ao ato, no qual foi configurada a prisão de Sade. Mas não
há representantes da lei em Sade, pois se revelaria simbolicamente no Dever. E
o Dever ao qual Lacan “esquece” na sua leitura kantiana é o “Dever! Nome sublime e grande, tu
que nada conténs de amável ou lisonjeiramente sedutor, mas exiges submissão, e
todavia, para mover a vontade não despertas na alma, com ameaças, nenhuma
aversão natural ou temor, mas propões simplesmente uma lei que por si mesma
encontra acolhida na alma e, não obstante, e mesmo a nossa revelia, conquista a
veneração (embora nem sempre a observância), uma lei que faz emudecer todas as
inclinações, ainda que secretamente a contrariem: que origem haverá que seja
digna de ti? E onde se encontra a raiz de tua nobre estirpe, que recusa
com altivez todo parentesco com as inclinações, raiz donde é mister proceda,
como de sua origem, a condição indispensável daquele único valor que os homens
podem dar-se a si mesmos?” (CRPr – 91 -154) Então o valor que os
homens podem dar a si mesmos é o agir por Dever, uma vez que a lei moral
representa o desejo inserido na falta, que não é externa e sim interna. O que
falta não é o sujeito é o significante do objeto de ordem transcendental.
Referências
LACAN, J.
–ESCRITOS – KANT COM SADE – 1962 - Campo Freudiano no Brasil
KANT,
Immanuel. CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA – 1788. Tradução de Bertagnoli, Afonso. 3ª
edição. Edições e Publicações Brasil Editora S.A – S.Paulo 1959
KANT,
Immanuel. CRÍTICA DA RAZÃO PURA – 1781. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Mojurão. 6ª edição. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian,
2008