3 de abril de 2015

Anotações - Kant com Sade - “A razão é discípula de si própria” – Kant

É natural na psicanálise, quando se fala de Kant a interrogação: E o texto de Lacan: Kant com Sade? Refere-se como duas leituras excludentes. Talvez até por desconhecer que Freud frequentava os círculos Kantianos de Viena, o se interrogar por uma escolha. Importante advertir que Kant trata da questão da razão prática e a liberdade. Então o agir por dever é o modo de conferir à ação o valor moral; mas, a perfeição moral só pode ser atingida por uma vontade livre. Kant causa desconforto ao discurso de relativização da moral, da lei. O que incomodou Lacan não foi Kant, foi a impossibilidade de um discurso livre sobre Sade, de escrever um prefácio para “A filosofia da alcova” de Sade “sem” Kant, pois este, discorre sobre a razão estruturada na lei, que é ignorada em Sade. Que o lugar da ética vem sendo retificado para que possa abarcar a ciência ou justificá-la é fato. Essa via deste as mais remotas academias possui um caminho decisivo em Kant, e continua incomodando, mesmo mais de 200 anos depois de sua morte. O princípio do prazer está em Kant como instinto sublimado, excluído do patológico.

A primeira interrogação é porque “com”? Porque ler Kant sem Sade é da ordem da falta, mas o sujeito só se estrutura como Ser faltante. Mas Lacan só consegue ler Kant com Sade, ou seja, sem a falta e necessita da falta para ler Sade. O que tanto encanta Lacan em Sade? o que é insuportável em Kant para Lacan é a falta. É certo que Sade não antecipa Freud tão pouco “prepara-se a ciência retificando a posição da ética”. Quando Freud enunciou a tese do princípio do prazer, o que estava em discussão no que diz respeito à ética, era e é a ética pela vida. O prazer iguala-se a vida e o desprazer à morte, e essa é a luta pela vida. Isso, ao contrário do que diz Lacan, não diz respeito a “felicidade no mal”. Então dizer que a “filosofia” da alcova fornece a verdade da Crítica da Razão Prática é algo da ordem de uma profunda divergência pela incompreensão da obra de Kant. O que Kant irá delinear na Crítica da Razão Prática é que a razão pura é prática e desta forma imanente, ou seja, ela se realiza, sendo vinculada á consciência de sua necessidade. Então sem a imortalidade da alma, qual a “finalidade” da perpetuidade obrigatória do esforço moral? Como é possível então Lacan argumentar que a questão da imortalidade abordada por Kant é um “álibi” para que o bem justifique o bem, pois a subversão que Lacan propõe é “que fiquemos bem no mal, ou, se preferirmos, que o eterno feminino não eleve às alturas”, porque uma vez subvertido o feminino, toda a subversão masculina está justificada.

Se a vontade inteiramente boa é independente de todas as influências das contingências, que a experiência possa dar então ao contrário do que diz Lacan: “Não se pode enunciar nenhuma lei: fenômeno pode prevalecer-se de uma relação constante com o prazer”, não é verdadeira. Por que para Lacan se constitui em um problema “a investigação do bem seria um impasse, se ele não renascesse – das Gute, o bem que é objeto da lei moral. Ele nos é apontado pela experiência que temos de ouvir dentro de nós ordens cujo imperativo se apresenta como categórico, ou seja, incondicional” (Lacan - p.777). Se a liberdade real se manifesta por meio da lei moral; e se não conhecemos nem penetramos a possibilidade de realidade, mas a realidade é a aplicação da condição da vontade, a seu objeto facultado a priori, assim o bem não exclui pulsão ou sentimento como afirma Lacan. Se o bem arrefece os instintos primitivos e é constitutivo do amor-próprio, então não há razão de ser denominado como arrogância por Lacan. A questão é o que tanto incomoda Lacan em Kant e o que tanto o encanta em Sade?

O incomodo que Lacan demonstra em relação à questão da liberdade na Crítica é porque a liberdade real se manifesta por meio da lei moral, que para ele deveria está desvinculada, então ele resolve esse paradoxo pela “filosofia” da alcova. Quanto à questão da lei moral, nenhuma intuição oferecer a um objeto fenomênico, devemos citar Kant: “Vida é a faculdade que possui um ser de agir segundo as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações”. Então se Lacan não percebeu a questão da intuição nas representações é porque através da lei moral ele não as encontraria. Qual a intenção de Lacan de estabelecer um suposto elo entre a obra de Kant e o panfleto da “filosofia” da alcova? A suposta crítica política pelo sadismo das relações sexuais não passa de uma mistificação anarquista, onde não cabe nenhuma comparação com as máximas da lei moral em Kant. A máxima que Lacan enuncia: “Tenho o direito de gozar de tu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”. Nessa questão o humor serve para revelar a verdade escondida no real. Deseja ele que essa máxima se constitua enquanto imperativo categórico? Mas esse discurso do “direito” é da ordem do perverso. Não é o imperativo da lei moral que exerce influencia à demanda ao "direito" ao gozo? Assim como diz Kant na Crítica “a liberdade é indubitavelmente a ratio essendi da lei moral, mas a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade...” então o vínculo entre liberdade e lei moral é indissociável em qualquer sociedade, que se constitui culturalmente.

Essa reciprocidade, a qual Lacan contestará, pois sugere que a moral não pode ser reconhecida como uma prática incondicional da razão. É temeroso colocar a categoria do “imperativo categórico” enquanto uma possibilidade geral e não universal, pois os imperativos categóricos constituem leis práticas, e devem ser independentes de condições patológicas, pois sem essa condição como se daria a sobrevivência cultural? Quanto à questão da “fenda” na lei moral, é aquilo do qual o sujeito dará um destino, que é sua lei interna. Se o que torna válida a lei é ser pronunciada pelo outro e não como algo que demanda “uma voz interior”, não procede a dicotomia que Lacan coloca, pois se trata de uma questão dialética. Colocar essa questão de forma positivista é o recurso que ele utiliza para se aproximar de Sade; “Neste aspecto, a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do outro, mais honesta que o recurso à voz interior” (Lacan - p.782). Quanto ao argumento de que “nenhum homem pode ser de outro homem propriedade”, não pode ser “um pretexto para suspender o direito de todos de usufruírem dele, cada qual a seu gosto”, pois então não haveria liberdade ao gozo, um argumento que o aproxima de Sade e o afasta de Kant. Para Sade não existe a lei moral, sua “filosofia” da alcova serve de base a toda exploração do outro “que se faça necessário”. Esse necessário não considera o inconsciente, tão pouco o retorno do recalcado, colocando o sujeito preso ao desejo do outro para acessar seu próprio desejo.

A interrogação do sujeito e sua essência remete a Coisa em si. O sentimento de prazer ou dor é determinado pelo que é bom ou mau. Assim o objeto não é separado do sujeito. A razão pura prática é a representação de um objeto produzido pela liberdade, e o objeto é a significação da relação de desejar. Julgar se determinada coisa é ou não objeto da razão pura prática é discernir a impossibilidade de querer a ação, mediante a qual se fossemos dotados de poder seria necessário realizar o objeto, objeto que é o motivo de nossa faculdade de desejar. Objeto fisicamente possível. O juízo deve estabelecer, se é ou não um objeto da razão prática. Querer uma ação que tem como finalidade um objeto que esteja dentro do nosso poder, neste caso o objeto não é mais do que a lei da vontade. Que Lacan necessite de Sade para afirmar seu ateísmo é uma questão de suporte da ordem da lei, a qual ele remete a Kant.

Ao pensar a experiência sadiana como da ordem do sensível porque coloca o sujeito no limiar entre o prazer e a dor é pensar na experiência do prazer de forma sádica, patológica, no limite da morte, na medida em que o sujeito se esvai. Nessa articulação Lacan estabelece sua máxima, mas afasta-se daquilo que seria um imperativo categórico, a lei moral. Assim é necessário um argumento de universalidade, para fazer valer seu discurso de sujeito “a”: “o aparecimento do objeto “a”. No lugar da causa se esclarece pelo caráter universal de sua relação com a categoria da causalidade, o qual, ao forçar o limiar da dedução transcendental de Kant, instauraria no eixo do impuro “uma nova crítica da razão”. Então é possível o argumento de como comparar princípios da determinação da vontade inteiramente diversos, o prazer e a dor, quanto ao modo de representação para preferir aquele que mais afete a faculdade de desejar? E se há algo que afeta a faculdade de desejar é da ordem da falta, como Lacan resolve isso? Da seguinte forma: “É realmente com a vontade de Kant, portanto, que se encontra no lugar dessa vontade, que só se pode dizer de gozo explicando que se trata do sujeito reconstituído da alienação, ao preço de ser apenas o instrumento do gozo. Assim, Kant por ser questionado por “com Sade”, ou seja, com Sade fazendo às vezes, tanto para nosso pensamento quanto em seu sadismo, de instrumento, confessa o que está incluído no sentido do “Que quer ele? Que doravante não falta a ninguém” (Lacan - p.785). Mas não faltar é da ordem do patológico. Então que resta a Sade ao ignorar a lei moral? O perverso.  

Analisar a “filosofia” da alcova pela via kantiana diz respeito a uma demanda de lei interna, que coloca o sujeito na incógnita de sua existência, no limite de sua vida, pois a relação com a dor diz respeito a um limite que não é possível, porque o que impera é o que Sade denomina como um “tormento eterno”. Se a “saída” proposta por ele é o gozo sádico, ele enreda-se em sua armadilha, pois o que resta é o crime, porque o gozo sádico pressupõe um crime. Se Lacan deseja transgredir as filosofias religiosas citando “Burnouf, ou seja, em algum ponto dos anos cinquenta (do século passado) – para eles “não é possível que haja pessoas tão burras assim””(Lacan - p.788), para “resolver”  ao que Freud denominou de a “transitoriedade da vida”, há um distanciamento de Freud , pois este ainda concebe uma transcendentalidade, até por ser judeu, e ele assim o afirma. Se o sádico “nega a existência do Outro”, porque Sade com Kant? Para que Lacan possa afirmar que “o sadismo rechaça para o Outro a dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se transmuda num “objeto eterno”” (Lacan - p.789), ou seja, ele deseja dar uma função para o sadismo através de Kant, e se utiliza de um recurso que são as interrogações kantianas sobre a razão e a transcendentalidade. Então antecipadamente Kant teria respondido: “a lei que impus a mim próprio obriga-me a que nesta ordem de considerações, de modo algum seja permitido emitir opiniões e que tudo que se pareça com uma hipótese seja mercadoria proibida, que não se deve vender, nem pelo mais baixo preço, mas que urge confiscar logo que seja descoberta.” (CRP - p.7). Se Lacan deseja vender uma função para Sade, fica a questão; pois o objeto deve guiar-se pela natureza da nossa faculdade da intuição e a experiência pela qual são conhecidas, reguladas por conceitos.

Então, dar um status conceitual aos objetos e representações de Sade através do conceito de fantasia é simplificar a questão que ele mesmo propôs da “passagem ao ato”. Sade escreve da “passagem ao ato”, do sadismo como gozo. Que a lei moral é da ordem da falta, não há dúvida. Que o sujeito se insere na cultura pela lei moral é certo. Como o sujeito se implica e a interrogação e o destino que dá a sua lei interna, à castração e ao Édipo, pertence a subjetividade de cada um, a qual é intransponível. Portanto é capcioso Lacan utilizar o argumento de Kant sob o olhar de um seu leitor: “Suponham”, diz ele, “alguém que alegue não poder resistir a sua paixão quando o objeto amado e a oportunidade se apresentam; será que, se lhe houvesse erigido um cadafalso em frente a casa em que ele encontra essa oportunidade, para nele o acorrentar tão logo houvesse saciado seu desejo, ainda lhe seria impossível resistir a este?” Resistir ou não diz respeito a sua lei interna, a sua lei moral. E mais adiante o exemplo continua: “Mas, se seu príncipe lhe ordenasse, sob pena de morte, prestar falso testemunho contra um homem de bem a quem ele quisesse arruinar por meio de um pretexto capcioso, consideraria ele possível, em tal caso, vencer seu amor a vida, por maior que pudesse ser?” O perverso ou até o psicótico poderia subverter a lei e mentir, mas se estamos falando do campo da neurose Kant diz: “Um sagrado mandamento da razão: ser verídico (honesto) em todas as declarações”. Importante lembrarmos que Kant está se referindo há homens cujo superego mantém o controle de seus instintos e não de estruturas patológicas e ele adverte: “Tal é o verdadeiro móvel da razão pura prática: outra coisa não é senão a própria lei moral pura, a fazer-nos sentir a sublimidade da nossa própria existência supra-sensível e produzindo subjetivamente, nos homens que tem consciência, tanto de sua existência sensível como da consequente dependência de sua natureza fortemente sujeita, sob esse aspecto, à afecção patológica, o respeito a sua destinação superior” (CRPr - p.93-158). A lei ao ser prática é simbólica, destituída do patológico.

Não é necessário se ocupar de Sade com Kant para reconhecer em Kant que o que sustenta o desejo é a lei, por isso o desejo é recalcado. As máximas de Lacan sobre Sade o leva a considerar os escritos de Sade como “estripulias” e Pinel como a “loucura moral”. Supor que o lugar de Sade e Pinel poderia ser invertido e que Sade estaria na esquerda e Pinel na direita é do estilo Lacan um sarcasmo perverso, porque em Pinel a liberdade de desejar não é em vão. Desejar no campo do perverso? Que ele considere o sadismo de Sade, amor, e o amor erudito em Kant uma palhaçada, afirmando que o que falta a Kant é Sade, então o que falta a Lacan é Kant. E isto é o que o incomoda. Não encontrar um lugar em Kant, que não seja via Sade. Ele desejava saber onde a Crítica levava e deparou-se com a complexidade da obra kantiana. Então Lacan enuncia os atos simples da razão, pois nas palavras de Kant “ocupo-me unicamente da razão e do seu pensar puro e não tenho necessidade de procurar longe de mim o seu conhecimento pormenorizado, pois o encontro em mim mesmo e já a lógica vulgar me dá um exemplo de que se podem enunciar, de maneira completa e sistemática, todos os atos simples da razão” (CRP – p.7). Retorna então, Lacan a seu desejo sem encontrar um caminho para ele na obra kantiana. Interrogando: “Acaso a solução conforme a Razão Prática seria eles ficarem girando em círculos?” Então, a “bandeira” de Lacan é a tirania do desejo e o recalque um véu a encobri? Pois se para ele a obra sadiana “se se pretende má não pode permitir-se ser má obra” e segue dizendo: “Sem dúvida, é um tratado de educação para moças, e como tal está sujeito às leis de um gênero. Apesar do proveito que tira de expor às claras o “sádico-anal” que enfumaçava esse tema, em sua insistência obsedante nos dois séculos anteriores, ele continua a ser um tratado educativo. O sermão ali é maçante para a vítima, e enfatuado por parte do professor” (Lacan - p.799). A questão final do desejo avesso à lei é somente um incomodo do “desejo” lacaniano, perante Kant.

A sequencia do texto expõe palavras e frases que nada acrescenta ao estudo dos sofrimentos psíquicos, tão pouco da evolução do homem, subjetivo, simbólico, espiritual, afirmando que o desejo está vinculado á lei, mas que o objetivo seria “acabar com a lei do lado de dentro com o veredito sobre a submissão de Sade à lei” (Lacan – p.802). A submissão à lei ocorre pela passagem ao ato, no qual foi configurada a prisão de Sade. Mas não há representantes da lei em Sade, pois se revelaria simbolicamente no Dever. E o Dever ao qual Lacan “esquece” na sua leitura kantiana é o “Dever! Nome sublime e grande, tu que nada conténs de amável ou lisonjeiramente sedutor, mas exiges submissão, e todavia, para mover a vontade não despertas na alma, com ameaças, nenhuma aversão natural ou temor, mas propões simplesmente uma lei que por si mesma encontra acolhida na alma e, não obstante, e mesmo a nossa revelia, conquista a veneração (embora nem sempre a observância), uma lei que faz emudecer todas as inclinações, ainda que secretamente a contrariem: que origem haverá que seja digna de ti? E onde se encontra a raiz  de tua nobre estirpe, que recusa com altivez todo parentesco com as inclinações, raiz donde é mister proceda, como de sua origem, a condição indispensável daquele único valor que os homens podem dar-se a si mesmos?” (CRPr – 91 -154)  Então o valor que os homens podem dar a si mesmos é o agir por Dever, uma vez que a lei moral representa o desejo inserido na falta, que não é externa e sim interna. O que falta não é o sujeito é o significante do objeto de ordem transcendental.

Referências
LACAN, J. –ESCRITOS – KANT COM SADE – 1962 - Campo Freudiano no Brasil
KANT, Immanuel. CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA – 1788. Tradução de Bertagnoli, Afonso. 3ª edição. Edições e Publicações Brasil Editora S.A – S.Paulo 1959 
KANT, Immanuel. CRÍTICA DA RAZÃO PURA – 1781. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mojurão. 6ª edição. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 

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