3 de dezembro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - O desejo e o ódio



6. O desejo e o ódio

Odeia-se o objeto de desejo que está fora da lei, e assim odeia-se o próprio desejo fora da lei, odeia-se a se próprio. É a foraclusão na perversão. É difícil colocar uma causa para o desejo, porque essa pertence a camadas muito profundas do inconsciente. Ao se pensar na formula do “sujeito dividido” é possível supor na perversão, um sujeito e um objeto para o sádico. O objeto aqui, ao contrário do que supõe Lacan, não está no campo do idealismo, como único ponto de encontro com o real, pois o objeto do desejo, nem sempre está à frente. Fora da estrutura perversa é intuitivo, sensorial. O objeto está atrás do desejo, porque o objeto é sujeito. “O desejo do sádico é exaustivo em todas as relações com o objeto. O desejo sádico, com tudo que comporta de enigmático, só é articulável a partir da esquize, da dissociação que ele almeja introduzir no sujeito, no outro, impondo-lhe, até certo limite, o que não poderia ser tolerado – até o limite exato em que aparece no sujeito uma divisão, uma hiância entre  de sujeito e o que ele sofre,  aquilo de que pode padecer em seu corpo.  Não é tanto o sofrimento do outro que é buscado na intenção sádica, mas sua angústia” (Lacan, p.117). O sádico deseja mais do que o corpo do objeto, deseja sua alma. O sádico deseja “fazer vibrar” a angústia do outro. Quanto maior a angústia do outro, maior o prazer do sádico, mas e a angústia subjetiva não manifesta? É ai que o sádico se perde. No contraponto da “causa do desejo”, Lacan considera que “Kant articulou como a condição de exercício de uma razão pura prática de uma vontade moral propriamente dita, na qual ele situa o único ponto em que pode manifestar-se uma relação com um puro bem moral” (Lacan, p.117). A questão é que Lacan “esquece” que para Kant a filosofia é a crítica da própria razão, e que, portanto irá se interrogar e interrogar o próprio desejo, o que não procede ao desejo sádico. Assim no conhecimento pela razão pura crítica, há que interrogar o que a razão pode conhecer e entender pela transcendência. Ou seja, essa interrogação não habita o universo do sujeito que odeia. Quando o ódio faz um estrago muito grande no sujeito que odeia, ele quer se livrar do ódio, pela mesma via sádica consigo próprio, mas isso que poderia ser uma resinificação e reelaboração percorre inúmeras vezes a via da repetição.

O que caracteriza o desejo sádico é o rito, embora ele não “saiba” o que procura. Ele procura ser o próprio objeto de prazer da sua vítima pelo sofrimento que imprime a esta, pelo ódio que abriga em sua ferida psíquica. Mas sua dor tornou-se sua forma de prazer. Para ele o princípio do prazer se realiza como dor. Como esse prazer encontra um esgotamento nele, ele precisa de um objeto que não seja ele mesmo. Ele que já fez um trajeto no masoquismo, mas se esgotou. Para o masoquista sair de sua posição de “resto”, objeto de si mesmo, necessita de um outro, que ele não vê como “resto” ou se esse outro sujeito se coloca como “resto” por certo cairá em sua teia sádica. A maldade seja para consigo próprio ou para com o outro é a elaboração do desejo sem a lei, onde se supõe “possível”, ignorá-la. “O mito do Édipo não quer dizer nada senão isto: na origem, o desejo como desejo do pai, e a lei são uma e a mesma coisa. A relação da lei com o desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo. O desejo, como desejo pela mãe, é idêntico à função da lei. É na medida em que proíbe esse desejo que a lei impõe o desejá-la, pois, afinal, a mãe não é, em si mesma, o objeto mais desejável. Se tudo se organiza em torno do desejo pela mãe, se devemos preferir que a mulher, seja outra que não a mãe, que quer dizer isso, senão que um mandamento se introduz na própria estrutura do desejo?  Numa palavra, desejamos no mandamento. O mito do Édipo significa que o desejo do pai é o que cria a lei” (Lacan, p.120). Então no sadismo está uma estrutura perversa, onde a lei simbólica é subvertida, ignorada, e a angústia gerada precisa ser descarregada, pois o ser faltante “não existe”, precisa ser reconstruído. Se reconhecer como objeto do próprio desejo é masoquismo e sair de cena, ficar aquém dela, olhar o outro em sua falta é encontrar a própria falta.

O sujeito que odeia afasta-se da lei, da moralidade, pois não elabora o complexo de Édipo, o início do desejo ao nascer e no percurso de sua primeira infância. Então o prazer pelo próprio sofrimento é o “primeiro” instante desse ódio, que é revivido durante a vida. Odiar a si próprio é o começo do “resto” de si, que evolui nas mágoas, ressentimentos, como forma de fazer sofrer-se, como um castigo, que evolui para as “ações pecaminosas, que devem então ser expiadas pelas censuras da consciência sádica”. Se o sujeito retorna o sadismo para ele é uma intensificação do masoquismo. Mas não exclui que ao mesmo tempo “escolha” o outro como objeto do seu sadismo, seja como forma de masoquismo, seja por um ato perverso de ódio, como forma de drenar o próprio ódio. Não é possível falar de sadismo sem seu “contraponto” o masoquismo. Em determinadas circunstancias estão relacionados, independente se a vítima e o algoz estão no mesmo sujeito. Então a questão que se coloca é como sair desse circuito negativo e patológico. Essa é uma questão, cuja “resposta”, está na subjetividade do próprio sujeito. Surge um cansaço do sofrimento, um esgotamento do sofrer que alimentará seus recursos psíquicos e seu processo de autoconhecimento. É necessário que o sujeito se implique consigo mesmo, se interrogue. Assim surgirá uma revolta, uma projeção da própria culpa, uma passagem de algoz a vítima, um remorso e um sentimento de culpa, que é o início da entrada na lei, a necessidade do próprio resgate e da reparação. Então começará a surgir o senso ético, moral e começa as renuncias instituais primitivas.
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

Nenhum comentário: