7. “Síntese”
Amor... “Pois de amor andamos todos
precisados!
Em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos
corrija,
Nos dê paciência e esperança, força,
capacidade de entender, perdoar, ir para frente...” Carlos Drummond de Andrade
Não foi nosso objetivo
refletir sobre o ódio abordando-o em uma estrutura neurótica, psicótica. Nosso
objetivo foi abordá-lo naquilo que é mais difícil nesse momento da história
humana, que se dissemina pelo planeta: é o ódio perverso, sádico. Embora esse
possa “atravessar” qualquer estrutura, com contornos que assumem outras
diferenças significativas. O que vivemos no planeta nesse momento da
civilização deve interrogar a todos, seja como indignação, como falta de
esperança, “como o tão falado fim dos tempos”, mas não podemos deixar de nos
interrogar, de como compreender esse mundo e reconstruí-lo na paz, em nossa
reumanização.
Escrever um artigo, com seis capítulos, sobre
o ódio é tarefa difícil, árdua, incompleta, inquietante, angustiante, em muitos
momentos. Mas é o dever ético de contribuir com a reflexão de um afeto tão
complexo e com muita ênfase na civilização em que vivemos atualmente no planeta,
para que, começando a compreendê-lo, possamos vislumbrar a paz. Longe de ser
uma “síntese” é mais uma reflexão. A evolução do homem e seu psiquismo supõe a
sublimação dos instintos primitivos. Evolução de uma relação saudável com o
outro. Portanto há muito que caminhar através de décadas e séculos na superação
desses instintos tão presentes, ainda hoje, no planeta. As guerras, os
conflitos, os ódios, na atual evolução tecnológica, desta civilização, é o
sintoma de uma desagregação moral, de uma necessidade sádica de vontade de
poder, da construção, alimentação de ressentimentos, mágoas e ódios para dominar
e matar não só pela passagem ao ato, mas simbolicamente, uns aos outros pelo
prazer sádico e perverso. Há uma desagregação do superego, da lei simbólica. O
que leva esses sujeitos a fazer essa “escolha”, é o que Freud define como o “poder sombrio do destino, que apenas poucos
dentre nós são capazes de encarar como impessoal”. Porque encarar como
impessoal é afastar-se da compaixão para com o outro, ou seja distanciar-se de si mesmo. Se os homens ainda sentem
que precisam sofrer, odiando-se mutuamente, alimentando um sentimento de
vingança, disputa, domínio é porque necessitam expiar seu masoquismo e sadismo
moral, que ainda demanda a lei, o superego. Há uma submissão a si próprio, uma
escravidão própria, o ego submete-se ao sofrimento, do masoquismo e/ou sadismo
seja infringindo-o a si próprio ou ao Outro, na “esperança” de que punindo-se
ou punindo o Outro, irá conquistar sua liberdade. Que esperar de algo que “faz
opção” pelo sofrimento, para além do princípio do prazer? O cansaço que advêm da caminhada, quando então a marcha levanta a poeira e aquele sentimento de ódio guardado, no mais profundo do inconsciente por séculos, décadas, ignorado pelo próprio sujeito descola-se por uma fração se segundo, e isso, pode ser o suficiente, para que se descole definitivamente.
O cansaço pode ser a chamada “luz no fim do
túnel”. Mas não é só a temperatura do meio ambiente do planeta que está
subindo, porque a temperatura simbólica, o ódio flamejante está aumentando. O
materialismo com seu desejo de poder tudo “consome”. Os homens investidos de
autoridade institucional, quando, afastam-se da realidade, fantasiam, ou
alucinam a um poder absoluto. Veem o Outro como não pertencente ao humano. O
desejo de poder afasta o sujeito da realidade, aproximando-o do sadismo que é constituinte
de uma estrutura perversa. E esta necessita muitas vezes, de uma fagulha que é
o ódio para que venha a tornar-se o combustível.
Expurgar o ódio requer um gasto de energia,
pois a rememoração traz de volta o afeto, nem sempre de forma pacificada, mas
como ele foi vivido em determinado momento. Então é possível que esse ódio inconsciente, que o sujeito sequer saibe que existe e como todo reprimido
retorna, assim que é ativado por uma lembrança. Supõe-se muitas vezes, não na
mesma intensidade, mas com outro componente que é a dor. O ódio é um sentimento
que pode ser esquecido, com o tempo, fica adormecido, onde o sujeito acredita
não mais odiar, onde acredita que esse afeto nocivo está elaborado, “resolvido”
substituído por afetos positivos de amor. Mas basta uma representação mnêmica
para que ele retorne. Em muitas situações, não com a mesma força, mas com
quantidade e qualidade correspondente a sua diluição no tempo. Não haver limite
para externar o ódio, seja para qual for a representação subjetiva, social,
subverte-se mais do que o estado de direito, mas a própria lei subjetiva interna de cada um. Então surgem os sujeitos nos seus
instintos primitivos.
O ódio em muitas circunstancia, funciona
enquanto instancia primária de defesa, como uma forma do sujeito se manter
ligado aos seus objetos ou “acalentar” suas feridas. A passagem ao ato pode
funcionar como uma descarga para o próprio sujeito com seus diversos
representantes. Portanto permitir que ele se descole, gera um vazio, que precisa ser preenchido pelo perdão. É estancar as próprias feridas, é trilhar o
caminho da reconstrução psíquica, mas isso não é tarefa fácil. Quando a dor do
ódio causar um incomodo físico, ela começa a criar as condições para ser
drenado e curado. Drenar o ódio é refazer o percurso das dores e sofrimentos,
reelaborando-os. Caminho difícil, espinhoso, cheio de renúncias, atemporal. O
que “define” isso é uma insuportabilidade da negação do sujeito pelo “mundo”
que o rodeia, uma repressão da dor, que não foi possível ser externada ou foi pela revolta, pelo ato de destruição do outro. Ele se torna um nada, por maior que seja o seu sadismo. E a um nada
não cabe uma existência corpórea, porque seu corpo e sua subjetividade já foi
negada pela indiferença do mundo que compõe o universo do sujeito.
Ao drenar o ódio o sujeito se implica consigo mesmo, se interroga.
Assim surgirá uma revolta, uma projeção da própria culpa, uma passagem de algoz
a vítima, a indiferença, um remorso, um sentimento de culpa, a necessidade do
próprio resgate e da reparação. Então começará a surgir o senso ético, moral e as
renuncias instituais primitivas. O amor ainda é aqui um afeto ideal, mas
“inexistente”, porque o sujeito “não possui experiências com o mesmo” ou perdeu. O modelo
do ideal, dá o caminho a ser percorrido, mesmo que esse caminho a ser
percorrido, seja o da eternidade e o afasta dos instintos primitivos, no
sentido de renunciá-los. A resiliência é o registro do destino, do sofrimento
na memória e os recursos utilizados para lidar com ele. Um novo sofrimento é a “prova”
da resiliência. A dor fica, até ser reelaborada como força energética. O amor,
esse sentimento oceânico, como dizia Freud, parece destituído da relação
sujeito-objeto, e tudo se transforma em algo do qual faz parte e está
interligado, subjetivado. Mas o amor transcende a consciência, o tempo, como o
compreendemos. É possível que fique “esquecido”, para que possa encontrar
outros objetos de representação que necessitam dessa doação. O imperativo
categórico do amor é a verdade, no sentido de justiça moral, ética e liberdade.
Nossa “vidinha” cotidiana nas seduções mundanas nos afasta dos propósitos da existência de cada um de nós e nos joga no abismo
do "nirvana" narcísico patológico. Vivemos em uma civilização com muita evolução
tecnológica, mas isso não se reverte para a evolução da consciência humana, da moral, da
ética, solidariedade, da compaixão, do sentimento universal de uma só irmandade
na terra, desde a relação com a natureza, os vegetais, os animais, a água, e
todos os recursos disponíveis. Ainda não nos sentimos irmãos dos nossos irmãos
humanos, tão pouco de nossos irmãos vegetais, animais, minerais etc. Não nos
sentimos integrados à natureza, ao universo, como se as leis que nos governam,
não fossem as mesmas leis da natureza e do universo. Assumimos o lugar de
deuses sem alma, somos totens de nós mesmos, nos adoramos, pelo nosso egoísmo,
avareza, inveja, competição, arrogância, vontade de poder. Há que resgatar
nossa relação com nossos ancestrais, com nossa espiritualidade, seja qual for à
forma em que está se expresse. Há que nos religarmos com a natureza e o
universo. Porque o corpo é composto de minerais, átomos, água, energias,
vibrações, mas ainda não compreendemos. Sequer pensamos nos universos paralelos
que a ciência começa a estudar. Então, o que há entre nós e o espaço onde
habita as estrelas pertence ao desconhecido, que só o inconsciente pode ter
alguns traços mnêmicos.
É por isso que a humanização requer infinitos
aprendizados, mas “a carícia não quer
simples contato; parece que o homem sozinho pode reduzi-la a um contato, e,
então, ele perde o sentido próprio da carícia. Isso porque a carícia não é
simples toque: é um modelar. Acariciando o outro, faço nascer sua carne pela
minha carícia, sob meus dedos. A carícia é o conjunto de cerimônias que
encarnam o Outro. Mas dir-se-á o outro já não estava encarnado? Para ser exato
não. A carne do outro não existia explicitamente para mim, já que eu captava o
corpo do Outro em situação; tampouco existia para o outro mesmo, posto que ele
a transcendia rumo às suas possibilidades e rumo ao objeto”. (Sartre, p.
485). Acariciar não só no sentido do toque suave ao corpo do outro, pelo
abraço, pelo deslizar do olhar, das mãos, da voz, mas pela suavidade do contato
subjetivo, pela quietude de respeito à vida do outro, pela responsabilidade em
cada palavra ou silêncio proferido, pela lealdade com a verdade do amor, da
compaixão, da solidariedade, da irmandade, da escuta delicada, acolhedora, do
tempo a ser dedicado a cada pessoa, do cuidado afetivo, de saber que a
construção de uma família, uma comunidade, um país, um planeta humano, passa
necessariamente pela renuncia dos instintos primitivos, pela superação da
promiscuidade em todas as suas formas, representações, do preconceito e suas
variantes, do “tirar vantagens matérias” entre os diversos sujeitos, pela
superação da vingança, pela conquista do perdão. Temos que seguir na
terra olhando o céu com a luz das estrelas e o destino como o curso do rio. Pois o amor ao preencher o vazio que o ódio estancado, drenado deixa, cura todas as feridas deste, que nasce dos punhais encravados na alma. Só o amor cura e liberta de todos os erros cometidos por ódio, arrogância, vaidade, apego. Porque a vida é essa delicadeza fugaz, que
se revela de instantes a instantes na luz do amor.
Referências
FREUD,
S. PROBLEMA ECONÔMICO DO
MASOQUISMO (1924). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX.
Rio de Janeiro, Imago-1996.
LACAN,
Jacques - O SEMINÁRIO, Livro 10, a angústia. A Causa do Desejo. Rio
de Janeiro, Zahar – 2005
SARTRE, Jean-Paul – O SER E O NADA – As
Relações Concretas com o Outro. Editora Vozes, 15ª edição, 2007
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