19 de junho de 2014

A “Carta 18” e os Afetos Sexuais

“…Existe ainda uma centena de lacunas, grandes e pequenas, em minhas ideias a respeito das neuroses. Mas estou-me aproximando de um ponto de vista abrangente e de alguns critérios gerais de abordagem. Conheço três mecanismos: transformações do afeto (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e (3) troca de afeto (neurose de angústia e melancolia). Em todos os casos, é a excitação sexual que parece sofrer essas alterações, mas o estímulo para elas não é, em todos os casos, algo sexual. Ou seja, em todos os casos em que as neuroses são adquiridas, elas o são devido a perturbações na vida sexual; mas existem pessoas nas quais o comportamento de seus afetos sexuais é perturbado hereditariamente, e elas desenvolvem as formas correspondentes de neuroses hereditárias. Os aspectos mais gerais a partir dos quais posso classificar as neuroses são os seguintes:
(1) Degeneração.
(2) Senilidade. E o que significa isto?
(3) Conflito
(4) Conflagração.
Degeneração: significa o comportamento inatamente anormal dos afetos sexuais; desse modo, os processos da conversão, do deslocamento e da transformação em angústia ocorrem na proporção em que os afetos sexuais desempenham um papel no decurso da vida.
Senilidade: é evidente. Por assim dizer, é uma degeneração normalmente adquirida na velhice.
Conflito: coincide com minha concepção de defesa [rechaço]; compreende os casos de neurose adquirida em pessoas que não são hereditariamente anormais. O que é rechaçado é sempre a sexualidade.
Conflagração: é uma concepção nova. Significa o que se pode chamar de degeneração aguda (por exemplo, nas intoxicações graves, nas febres, no estágio inicial da paralisia geral) — ou seja, catástrofes em que há perturbações dos afetos sexuais sem causas desencadeantes sexuais. Talvez as neuroses traumáticas pudessem ser abordadas sob esse enfoque.
Naturalmente, o ponto central e principal de todo esse assunto continua sendo o fato de que, em consequência de determinados fatores nocivos sexuais, até mesmo as pessoas sadias podem adquirir as diferentes formas de neurose. O acesso a uma visão mais ampla é proporcionado pelo fato de que, nos casos em que uma neurose se desenvolve sem um fator nocivo, pode-se demonstrar a presença, desde o início, de uma perturbação similar dos afetos sexuais. “Afeto sexual”, naturalmente, é tomado no seu sentido mais amplo, como uma excitação de quantidade definida.
Posso apresentar-lhe o meu mais recente exemplo para apoiar essa tese:
Um homem de 42 anos, forte e elegante, de repente desenvolveu uma dispepsia neurastênica, aos 30 anos, perdendo uns 25 quilos de peso, e a partir daí viveu uma vida limitada e neurastênica. Na época em que isso aconteceu, aliás, ele tinha combinado seu casamento e estava emocionalmente abalado pela doença da noiva. Salvo esse aspecto, porém, não havia fatores sexuais nocivos. Ele se masturbou mais ou menos por um ano, dos 16 anos aos 17 anos; dos 17 em diante, passou a ter relações sexuais normais; muito raramente, coitus interruptus; nenhum excesso, nenhuma abstinência. Ele próprio atribui a causa à sobrecarga a que submeteu sua constituição até a idade de 30 anos: trabalhava, bebia e fumava muito, levava uma vida irregular. Mas esse homem vigoroso, sujeito [apenas] a fatores nocivos corriqueiros, nunca (nunca, entre os 17 e os 30 anos) foi propriamente potente: jamais conseguiu praticar mais de um coito em cada ocasião; sempre ejaculava rapidamente, nunca fez pleno uso de seu sucesso [inicial] junto às mulheres, nunca conseguiu penetrar com facilidade a vagina. Qual era a origem de sua limitação? Não sei dizer. O interessante, todavia, é que isso estava presente justamente nele. Aliás, tratei de duas de suas irmãs, portadoras de neuroses; uma delas está entre as minhas mais bem-sucedidas curas de dispepsia neurastênica”.

Dirigido a Fliess, este extrato de documento, é mais um escrito em que Freud aborda seus estudos sobre as neuroses, seus mecanismos, ou seja,  a transformações do afeto (histeria de conversão), quando os sintomas surgem no corpo como doenças físicas. Deslocamento do afeto (obsessões), quando a formação de compromisso e as compulsões, as dúvidas assumem importância.   Troca de afeto (neurose de angústia e melancolia), que aproximará da psicose, onde os delírios e alucinações passam a ocupar-se do real.

Interroga acerca da energia sexual e seus problemas, quando não equilibrada e alinhada ao sentido do destino que o sujeito percorre, não deixando de levar em consideração as questões relativas à defesa e à hereditariedade. Na classificação das neuroses sugere algo de inato, ou seja, aquilo que “nasce com o sujeito”, é constitucional. Isso significa que pode revelar-se em qualquer momento da vida, mesmo que a madureza tenha alcançado uma idade avançada. Ressalta as neuroses desencadeadas por catástrofes outras, e que afetam a vida sexual do sujeito ou neuroses desencadeadas por sujeitos sadios em função de “determinados fatores nocivos sexuais”. Fica então bem exemplificado o caso tratado por Freud.

Importante ressaltar que “fatores sexuais”, não se referem necessariamente ao sexo biológico, mas principalmente à pulsão de energia que diz respeito à sexualidade, aos afetos, que pode expressar-se nas mais variadas formas: sejam por sentimento exacerbado de narcisismo, de vaidade, arrogância, poder, ou seja, aquilo a que o sujeito desloca seu prazer e que pode causar-lhe sofrimento.

Referência
FREUD, S.  – CARTA 18 (1894), Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996.

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