Burgholzli-Zurique,
31 de marco de 1907
Caro
Professor Freud,
Sem duvida
alguma o senhor há de ter tirado suas conclusões do prolongamento de meu tempo
de reação. Tive uma forte resistência em escrever, pois ate recentemente me incomodava o tumulto dos complexos
despertados em Viena. Só
agora as coisas se acalmaram um pouco e assim espero ser capaz de escrever-lhe
uma carta mais ou menos sensata. O item mais difícil, sua ampla concepção da
sexualidade, já foi a essa altura assimilado, até certo ponto, e posto a prova
em diversos casos concretos. De modo geral acredito que o senhor esta certo. O autoerotismo como essência da
Demência Precoce se impõe cada vez mais a mim como um aprofundamento importante
de nosso conhecimento — onde, de fato, ele ira findar? Seus critérios do
estádio agudo podem também ser convincentes, mas qualquer tentativa de prova
vai de encontro a grandes dificuldades, principalmente de ordem técnica: a
Dem. Precoce só nos permite uma compreensão interna limitada da personalidade.
Um determinado caso pode parecer totalmente diverso se o “afastamento da
libido” ocorrer num complexo acessível a consciência, ou se, pelo contrario, ocorrer em
complexo inconsciente. As conexões entre infantilismo e
autoerotismo também se tornam cada vez mais claras. Tenho de confiar agora;
mais que antes, em meu próprio julgamento independente, pois as resistências do
Prof. Bleuler nunca foram tão vigorosas. Particularmente ele contesta a
intencionalidade dos sonhos, o que equivale a negar o efeito dissimulador dos
complexos, verdadeiro cerne da interpretação onírica. Bleuler tem insuperáveis
resistências inconscientes a analise dos próprios sonhos e associações. Em
minhas frequentes discussões com ele, patenteou-se-me que a expressão “libido”,
e em geral todos os termos (sem duvida justificados em si mesmos) transpostos
para a concepção mais ampla de sexualidade, são incompreendidos ou pelo menos
não tem valor didático. Na realidade, evocam inibições emocionais que tornam
impossível qualquer tipo de ensinamento. Fui assim forcado a uma longa
discussão a fim de deixar claro a Bleuler o que o senhor pretende dizer com
“libido”. Não seria concebível, tendo em vista a limitada concepção de sexualidade
que prevalece em nossos dias, que a terminologia sexual se reservasse apenas as
formas mais extremas de sua “libido” e que um termo coletivo menos ofensivo
fosse estabelecido para todas as manifestações libidinais? Rank e
outro que simplesmente toma a concepção mais ampla de sexualidade como um dogma
de tal modo que até eu, que há mais de 4 anos estudo intensamente seu
pensamento, tenho dificuldade em compreendê-la. O público para o qual Rank
escreve não a compreendera em absoluto. A
relação libidinal entre pessoas hipersensíveis e o objeto precisa ser ilustrada
por incontáveis exemplos de intensidade variável. O publico, desse modo, pouco a
pouco chegaria a ver que sua terminologia (em especial a “pan-sexualidade”!) se
justifica plenamente. Em relação a Rank, fica também a impressão incomoda de
que ele “jurat in verba magistri” e carece de empirismo. Mais de uma vez, ao
lê-lo, fui levado a pensar em Schelling e Hegel. Mas a teoria que o senhor
postula é puro empirismo e empiricamente e que deve ser apresentada. Essa, seja
como for, e a tarefa fundamental com que o futuro me acena. Procuro, por conseguinte, métodos
capazes de desenvolver a psicanalise da maneira mais exata possível, esperando
assim lançar as bases para uma popularização cientifica de seus ensinamentos.
Uma de minhas próximas tarefas será documentar os sonhos que exprimem desejos,
na Demência precoce, com uma quantidade maior de dados empíricos. Só depois de realizados esse e outros
trabalhos preparatórios idênticos, posso esperar chegar mais perto do amago da
teoria sexual. Como o senhor disse, os sonhos são decerto mais apropriados para
uma “confirmação” subjetiva, e o mesmo foi capaz de demonstrar recentemente com
alguns exemplos muito bons. Não mais me assaltam duvidas quanto a correção de
sua teoria. Os últimos vestígios foram dispersos por minha estada em Viena, que
para mim foi um acontecimento de importância imensa. Binswanger já deve ter lhe
falado da tremenda impressão que o senhor me causou. Nada mais direi sobre
isso, mas faço votos de que meu trabalho pela sua causa lhe demonstre a
extensão de minha gratidão e respeito. Espero, chego mesmo a sonhar, que
possamos recebê-lo em Zurique no próximo verão ou no outono. Pessoalmente eu me
sentiria no auge da alegria com uma visita sua; foram efêmeras demais as poucas
horas que passei a seu lado. Riklin prometeu enviar-lhe o trabalho dele sobre
contos de fadas tão logo o tenha terminado, embora isso não seja para já. Forel
esteve recentemente em Zurique e aproveitei a oportunidade para pedir a um
amigo que se avistasse com ele. Vim a saber que o ignora por completo e que a
objeção dele ao meu trabalho e que dou muito pouca atenção a hipnose. Ai é que
esta o problema. Minha mulher e eu lhe agradecemos muito, bem como a sua esposa
e a toda a sua família, pela maneira gentil com que nos receberam.
Cordialmente,
Jung
7 de abril
de 1907
Caro
colega,
Para
sentir-me mais a vontade ao lhe falar que uso um papel diferente. Sua visita
foi sobremodo prazerosa e gratificante; gostaria de repetir por escrito várias
coisas que lhe confiei verbalmente, em particular que o senhor me encheu de
confiança em relação ao futuro, que
agora me dou conta de ser tão substituível quanto qualquer outro e que não
poderia desejar ninguém melhor do que o senhor, tal como o conheci, para
continuar e completar minha obra. Estou certo de que não abandonara essa obra,
pois já se aprofundou muito nela e com seus próprios olhos pode ver como é
belo, amplo e excitante o nosso tema. Certamente
tenho planos de fazer-lhe uma visita em Zurique, durante a qual espero que me
demonstre seu famoso caso de Dem. precoce, mas não creio que isso ocorra em
breve. Preocupa-me também no momento a incerteza de nossas relações com seu
chefe. A defesa de nossa posição recentemente feita por ele na Miinchener
medizinische Wochenschrift levara-me a considera-lo digno de confiança, mas eis
que o senhor me fala de um grave desvio em direção contraria, desvio que, como
eu, o senhor provavelmente interpreta como uma reação às convicções que o
senhor levou quando regressou. Como
o “complexo pessoal” obscurece todo pensamento puramente logico! Em relação a
Dem. Precoce. tenho uma proposta a lhe fazer. Depois de sua partida esbocei
algumas ideias sobre o assunto que discutimos. Gostaria de transmiti-las ao
senhor, a não ser que prefira — por duas razoes — ignora-las. Primeiro, porque
o senhor mesmo as pode ter, e segundo porque talvez não lhe agrade aceitar o
que quer que seja. Devo dizer
que considero uma formula altamente valiosa um tipo de comunismo intelectual,
onde nenhuma das partes se preocupa em tomar nota do que da e recebe. Diga-me por favor, com franqueza
analítica, se gostaria ou não de examinar esse material, e peco-lhe que não
superestime sem saber. Compreendo suas razões quando tenta suavizar o assunto,
mas não acredito que o senhor tenha êxito. Mesmo que chamemos o ics. de
“psicoide”, ele continuará a ser o ics.; mesmo que não chamemos de “libido” a
forca impulsiva da concepção mais ampla de sexualidade, ela continuara a ser
libido, e em cada inferência que tirarmos dela voltaremos ao ponto exato do
qual tentáramos desviar a atenção com nossa nomenclatura. Se não podemos evitar
as resistências, porque não enfrentá-las desde o inicio? O ataque é, em minha
opinião, a melhor forma de defesa. E, talvez, por subestimar a intensidade
dessas resistências que o senhor espera desarmá-las com pequenas concessões. O
que nos pedem e, nem mais nem menos, que abjuremos nossa crença no impulso
sexual. A única resposta e professa-la abertamente. Estou certo de que Rank não
ira muito longe. O modo como escreve e decididamente auto erótico e ele carece
completamente de tato pedagógico. Além disso, como o senhor observa, não
superou a influência da dieta intelectual anterior e se perde em abstrações
nada fáceis de seguir. Mas a independência de Rank em relação a mim é maior do
que talvez pareça; e um homem capaz, muito moco e profundamente honesto,
característica sobremodo valiosa na idade dele. Desnecessário dizer que
esperamos muito mais do senhor e da maneira como tratará o assunto. O estudo de
Bezzola, que ele me enviou recentemente, de modo muito impessoal e talvez por
pura “piedade”, não me parece honesto. As observações anexas são produto de uma
covardia pessoal, o que justifica a expectativa de um fim melancólico para esse
individuo. Encobrir o fato de
que síntese é o mesmo que analise parece impostura grave. Afinal, se pela
analise tentamos descobrir os fragmentos reprimidos, é apenas com o fim de
junta-los novamente. A
diferença essencial — o fato de ele não fazer uso de associações, mas só de
sensações — significa simplesmente que o trabalho dele se limita a casos de
histeria traumática; em outros casos não se encontra esse material. E pelo que sei da estrutura das
neuroses e geralmente impossível solucionar o problema terapêutico pela mera
revelação das cenas traumáticas. Consequentemente,
ele retorna onde Breuer e eu estivemos, ha doze anos, e desde então nada terá
aprendido. Pela “piedade”, merece um puxão de orelha, mas temos mais o que
fazer. Ainda esse mês você há de receber duas pequenas publicações minhas, uma
das quais e a Gradiva,s que talvez o estimule, espero que sem demora, a
contribuir com algo de apelo mais geral para os Papers. Muito grato pela
promessa de Riklin. Espero que o trabalho dele corresponda as nossas exigências
especiais. Entrarei em contato direto com o senhor quando lhe enviar Gradiva.
Na Pascoa estive em visita ao estabelecimento de Kahlbaum em Gorlitz e vi um
caso dos mais instrutivos, sobre o qual lhe falaria ainda se essa carta, a
primeira desde sua visita, já não tivesse se alongado tanto. Minha mulher
gostou muito da carta que sua esposa lhe escreveu. Cabe ao anfitrião, não a
visita, agradecer pelo prazer e a honra. Infelizmente ela não pode responder
agora, pois sofre de iridociclite (benigna), consequência de uma indisposição
estomacal. Na expectativa de sua resposta, subscrevo-me Cordialmente, Dr. Freud.
C.G.Jung - Sigmund Freud – CARTAS - (p. 65-70)
Ao seguirmos as correspondências entre Freud e Jung visualizamos os
percursos realizados, as incógnitas, dificuldades, incompreensões e o muito do
porvir na ciência. Nessa em especial, deparamo-nos com as questões relativas ao
estudo da Demência Precoce, que instigou Freud, Jung e Lacan. Ao analisar as
memórias de Dr. Schreber, Freud irá delinear a psicose paranoica, e interrogar
do quanto esta se ocupará da arquitetura psíquica consciente e inconsciente,
bem como a importância da resistência, principalmente no que diz respeito à
Demência Precoce ou Psicose Paranoica. Lacan também irá se deter nessa questão
em sua tese de doutorado e no seminário III. O tema continua ainda a ser motivo
de grandes estudos, pela forma como compromete a personalidade, ou o ego do
sujeito. O conceito de sexualidade é ainda motivo de enigmas, ficando esses
pesquisadores com a concepção de “libido”, que é ampla e diz respeito à energia
pulsional do sujeito. É encantador a forma como Freud compreende a psicanálise,
não só no que diz respeito à livre associação, onde de fragmento em fragmento
se reconstitui uma história com novos significados. Louvável as expressões
“pan-sexualidade”, “comunismo científico” e a importância do rigor científico.
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