19 de julho de 2014

Carta Jung-Freud: Demência Precoce

Burgholzli-Zurique, 31 de marco de 1907
 Caro Professor Freud,
Sem duvida alguma o senhor há de ter tirado suas conclusões do prolongamento de meu tempo de reação. Tive uma forte resistência em escrever, pois ate recentemente me incomodava o tumulto dos complexos despertados em Viena. Só agora as coisas se acalmaram um pouco e assim espero ser capaz de escrever-lhe uma carta mais ou menos sensata. O item mais difícil, sua ampla concepção da sexualidade, já foi a essa altura assimilado, até certo ponto, e posto a prova em diversos casos concretos. De modo geral acredito que o senhor esta certo. O autoerotismo como essência da Demência Precoce se impõe cada vez mais a mim como um aprofundamento importante de nosso conhecimento — onde, de fato, ele ira findar? Seus critérios do estádio agudo podem também ser convincentes, mas qualquer tentativa de prova vai de encontro a grandes dificuldades, principalmente de ordem técnica: a Dem. Precoce só nos permite uma compreensão interna limitada da personalidade. Um determinado caso pode parecer totalmente diverso se o “afastamento da libido” ocorrer num complexo acessível a consciência, ou se, pelo contrario, ocorrer em complexo inconsciente. As conexões entre infantilismo e autoerotismo também se tornam cada vez mais claras. Tenho de confiar agora; mais que antes, em meu próprio julgamento independente, pois as resistências do Prof. Bleuler nunca foram tão vigorosas. Particularmente ele contesta a intencionalidade dos sonhos, o que equivale a negar o efeito dissimulador dos complexos, verdadeiro cerne da interpretação onírica. Bleuler tem insuperáveis resistências inconscientes a analise dos próprios sonhos e associações. Em minhas frequentes discussões com ele, patenteou-se-me que a expressão “libido”, e em geral todos os termos (sem duvida justificados em si mesmos) transpostos para a concepção mais ampla de sexualidade, são incompreendidos ou pelo menos não tem valor didático. Na realidade, evocam inibições emocionais que tornam impossível qualquer tipo de ensinamento. Fui assim forcado a uma longa discussão a fim de deixar claro a Bleuler o que o senhor pretende dizer com “libido”. Não seria concebível, tendo em vista a limitada concepção de sexualidade que prevalece em nossos dias, que a terminologia sexual se reservasse apenas as formas mais extremas de sua “libido” e que um termo coletivo menos ofensivo fosse estabelecido para todas as manifestações libidinais? Rank e outro que simplesmente toma a concepção mais ampla de sexualidade como um dogma de tal modo que até eu, que há mais de 4 anos estudo intensamente seu pensamento, tenho dificuldade em compreendê-la. O público para o qual Rank escreve não a compreendera em absoluto. A relação libidinal entre pessoas hipersensíveis e o objeto precisa ser ilustrada por incontáveis exemplos de intensidade variável. O publico, desse modo, pouco a pouco chegaria a ver que sua terminologia (em especial a “pan-sexualidade”!) se justifica plenamente. Em relação a Rank, fica também a impressão incomoda de que ele “jurat in verba magistri” e carece de empirismo. Mais de uma vez, ao lê-lo, fui levado a pensar em Schelling e Hegel. Mas a teoria que o senhor postula é puro empirismo e empiricamente e que deve ser apresentada. Essa, seja como for, e a tarefa fundamental com que o futuro me acena. Procuro, por conseguinte, métodos capazes de desenvolver a psicanalise da maneira mais exata possível, esperando assim lançar as bases para uma popularização cientifica de seus ensinamentos. Uma de minhas próximas tarefas será documentar os sonhos que exprimem desejos, na Demência precoce, com uma quantidade maior de dados empíricos. Só depois de realizados esse e outros trabalhos preparatórios idênticos, posso esperar chegar mais perto do amago da teoria sexual. Como o senhor disse, os sonhos são decerto mais apropriados para uma “confirmação” subjetiva, e o mesmo foi capaz de demonstrar recentemente com alguns exemplos muito bons. Não mais me assaltam duvidas quanto a correção de sua teoria. Os últimos vestígios foram dispersos por minha estada em Viena, que para mim foi um acontecimento de importância imensa. Binswanger já deve ter lhe falado da tremenda impressão que o senhor me causou. Nada mais direi sobre isso, mas faço votos de que meu trabalho pela sua causa lhe demonstre a extensão de minha gratidão e respeito. Espero, chego mesmo a sonhar, que possamos recebê-lo em Zurique no próximo verão ou no outono. Pessoalmente eu me sentiria no auge da alegria com uma visita sua; foram efêmeras demais as poucas horas que passei a seu lado. Riklin prometeu enviar-lhe o trabalho dele sobre contos de fadas tão logo o tenha terminado, embora isso não seja para já. Forel esteve recentemente em Zurique e aproveitei a oportunidade para pedir a um amigo que se avistasse com ele. Vim a saber que o ignora por completo e que a objeção dele ao meu trabalho e que dou muito pouca atenção a hipnose. Ai é que esta o problema. Minha mulher e eu lhe agradecemos muito, bem como a sua esposa e a toda a sua família, pela maneira gentil com que nos receberam.
Cordialmente, Jung

7 de abril de 1907
Caro colega,
Para sentir-me mais a vontade ao lhe falar que uso um papel diferente. Sua visita foi sobremodo prazerosa e gratificante; gostaria de repetir por escrito várias coisas que lhe confiei verbalmente, em particular que o senhor me encheu de confiança em relação ao futuro, que agora me dou conta de ser tão substituível quanto qualquer outro e que não poderia desejar ninguém melhor do que o senhor, tal como o conheci, para continuar e completar minha obra. Estou certo de que não abandonara essa obra, pois já se aprofundou muito nela e com seus próprios olhos pode ver como é belo, amplo e excitante o nosso tema. Certamente tenho planos de fazer-lhe uma visita em Zurique, durante a qual espero que me demonstre seu famoso caso de Dem. precoce, mas não creio que isso ocorra em breve. Preocupa-me também no momento a incerteza de nossas relações com seu chefe. A defesa de nossa posição recentemente feita por ele na Miinchener medizinische Wochenschrift levara-me a considera-lo digno de confiança, mas eis que o senhor me fala de um grave desvio em direção contraria, desvio que, como eu, o senhor provavelmente interpreta como uma reação às convicções que o senhor levou quando regressou. Como o “complexo pessoal” obscurece todo pensamento puramente logico! Em relação a Dem. Precoce. tenho uma proposta a lhe fazer. Depois de sua partida esbocei algumas ideias sobre o assunto que discutimos. Gostaria de transmiti-las ao senhor, a não ser que prefira — por duas razoes — ignora-las. Primeiro, porque o senhor mesmo as pode ter, e segundo porque talvez não lhe agrade aceitar o que quer que seja. Devo dizer que considero uma formula altamente valiosa um tipo de comunismo intelectual, onde nenhuma das partes se preocupa em tomar nota do que da e recebe. Diga-me por favor, com franqueza analítica, se gostaria ou não de examinar esse material, e peco-lhe que não superestime sem saber. Compreendo suas razões quando tenta suavizar o assunto, mas não acredito que o senhor tenha êxito. Mesmo que chamemos o ics. de “psicoide”, ele continuará a ser o ics.; mesmo que não chamemos de “libido” a forca impulsiva da concepção mais ampla de sexualidade, ela continuara a ser libido, e em cada inferência que tirarmos dela voltaremos ao ponto exato do qual tentáramos desviar a atenção com nossa nomenclatura. Se não podemos evitar as resistências, porque não enfrentá-las desde o inicio? O ataque é, em minha opinião, a melhor forma de defesa. E, talvez, por subestimar a intensidade dessas resistências que o senhor espera desarmá-las com pequenas concessões. O que nos pedem e, nem mais nem menos, que abjuremos nossa crença no impulso sexual. A única resposta e professa-la abertamente. Estou certo de que Rank não ira muito longe. O modo como escreve e decididamente auto erótico e ele carece completamente de tato pedagógico. Além disso, como o senhor observa, não superou a influência da dieta intelectual anterior e se perde em abstrações nada fáceis de seguir. Mas a independência de Rank em relação a mim é maior do que talvez pareça; e um homem capaz, muito moco e profundamente honesto, característica sobremodo valiosa na idade dele. Desnecessário dizer que esperamos muito mais do senhor e da maneira como tratará o assunto. O estudo de Bezzola, que ele me enviou recentemente, de modo muito impessoal e talvez por pura “piedade”, não me parece honesto. As observações anexas são produto de uma covardia pessoal, o que justifica a expectativa de um fim melancólico para esse individuo. Encobrir o fato de que síntese é o mesmo que analise parece impostura grave. Afinal, se pela analise tentamos descobrir os fragmentos reprimidos, é apenas com o fim de junta-los novamente. A diferença essencial — o fato de ele não fazer uso de associações, mas só de sensações — significa simplesmente que o trabalho dele se limita a casos de histeria traumática; em outros casos não se encontra esse material. E pelo que sei da estrutura das neuroses e geralmente impossível solucionar o problema terapêutico pela mera revelação das cenas traumáticas. Consequentemente, ele retorna onde Breuer e eu estivemos, ha doze anos, e desde então nada terá aprendido. Pela “piedade”, merece um puxão de orelha, mas temos mais o que fazer. Ainda esse mês você há de receber duas pequenas publicações minhas, uma das quais e a Gradiva,s que talvez o estimule, espero que sem demora, a contribuir com algo de apelo mais geral para os Papers. Muito grato pela promessa de Riklin. Espero que o trabalho dele corresponda as nossas exigências especiais. Entrarei em contato direto com o senhor quando lhe enviar Gradiva. Na Pascoa estive em visita ao estabelecimento de Kahlbaum em Gorlitz e vi um caso dos mais instrutivos, sobre o qual lhe falaria ainda se essa carta, a primeira desde sua visita, já não tivesse se alongado tanto. Minha mulher gostou muito da carta que sua esposa lhe escreveu. Cabe ao anfitrião, não a visita, agradecer pelo prazer e a honra. Infelizmente ela não pode responder agora, pois sofre de iridociclite (benigna), consequência de uma indisposição estomacal. Na expectativa de sua resposta, subscrevo-me Cordialmente, Dr. Freud.

C.G.Jung - Sigmund Freud – CARTAS - (p. 65-70)

Ao seguirmos as correspondências entre Freud e Jung visualizamos os percursos realizados, as incógnitas, dificuldades, incompreensões e o muito do porvir na ciência. Nessa em especial, deparamo-nos com as questões relativas ao estudo da Demência Precoce, que instigou Freud, Jung e Lacan. Ao analisar as memórias de Dr. Schreber, Freud irá delinear a psicose paranoica, e interrogar do quanto esta se ocupará da arquitetura psíquica consciente e inconsciente, bem como a importância da resistência, principalmente no que diz respeito à Demência Precoce ou Psicose Paranoica. Lacan também irá se deter nessa questão em sua tese de doutorado e no seminário III. O tema continua ainda a ser motivo de grandes estudos, pela forma como compromete a personalidade, ou o ego do sujeito. O conceito de sexualidade é ainda motivo de enigmas, ficando esses pesquisadores com a concepção de “libido”, que é ampla e diz respeito à energia pulsional do sujeito. É encantador a forma como Freud compreende a psicanálise, não só no que diz respeito à livre associação, onde de fragmento em fragmento se reconstitui uma história com novos significados. Louvável as expressões “pan-sexualidade”, “comunismo científico” e a importância do rigor científico. 

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