As
palavras que defendem os interesses, as ideias dos homens de uma determinada
época são muitas vezes marcadas pela vaidade, arrogância, e interesses
egoístas. Há cem anos, as palavras que representavam a necessidade de
construção de uma ciência do inconsciente, eram as mesmas que revelavam esses
instintos rasteiros de seus construtores. Afinal eles pertenciam à humanidade.
Os atores desse palco há cem anos eram Freud, Bleuler, Adler e Jung. As
relações nem sempre foram amistosas e as divergências transcendem a ciência,
pois diz respeito ao que supostamente era insuportável na concepção teórica de
cada um. Se Freud “venceu” foi em um ambiente hostil e beligerante. O que Freud
descobriu, muito tempo depois de infindáveis batalhas, é que estas eram de
caráter subjetivo, pois todo discurso por maior rigor científico que contenha é
subjetivo, pois o sujeito que analisa os dados, é o sujeito que fala. Embora
muitos foram os métodos para tratamento dos sofrimentos psíquicos: a terapia de
eletrochoques, o “método catártico”, a passagem pela hipnose à associação
livre, ainda se requer muito estudo longe de egos vaidosos e narcisista e muita
humildade para compreensão dos
sofrimentos psíquicos.
Na
associação livre o conflito e os fatores desencadeantes “devem ser trazidos
para o primeiro plano na análise”. A atenção do sujeito é conduzida para os
eventos traumáticos, observando os sintomas e investigando os conflitos
existentes. As associações facilitam o retrocesso e articulação das lembranças,
e dos sonhos de forma retroativa a um tempo passado onde encontra-se a fonte do
sofrimento. Constitui-se então, a repressão como uma barreira, a ser trabalhada
na relação de transferência, tão importante no resultado terapêutico, pois
requer empatia, acolhimento, escuta “fina” e interpretação construída de forma
dialética analista-paciente. Os sonhos estão submetidos à flexibilidade da
barreira da repressão. “A
teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da
psicanálise” (p.26). É a
resistência que se opõe ao trabalho da análise e se apresenta como “falha de
memória”. Essa amnésia é a atividade mental inconsciente. O binômio resistência
e transferência é o movimento ondulatório dos sintomas. A resistência da
eclosão do reprimido compõe o sistema de defesa psíquica, que se revela nos
sintomas.
É
necessário olhar o passado remoto, pois é o único caminho para andar pela
frente, pois lá estão as fantasias, as representações e os fatos traumáticos,
das experiências sexuais, os abusos, as escolhas objetais, as perdas, danos e
lutos. É fundamental um olhar sobre os sonhos, pois as memórias ai reveladas
são muito pouco estudadas, mesmo porque são como um quebra-cabeça a ser
“decifrado”. E isso só é possível “olhando
as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar por si mesmas” (p.32). A aplicação da psicanálise
desde sua concepção esteve voltada não só a questão da neurose, mas também das
psicoses e seu mecanismo psíquico. A questão do “retorno do reprimido”. A
psicanálise vem revelar a dinâmica das relações incestuosas, os sintomas
patológicos e como se articula com a estrutura psíquica normal.
Expressar
as emoções subjacentes de forma facilitadora é uma arte. E é com essa
dificuldade que Freud expõe sua decepção em relação a Jung, uma relação intensa
que terminou de forma dolorosa, como havia de ser: “Essa posição, que fora de início
ocupada por mim, dado o meu acerto de quinze anos de experiências, devia ser
agora transferida para um homem mais jovem, que então, naturalmente, ocuparia
meu lugar após a minha morte. Esse homem só poderia ser C. G. Jung, uma vez que
Bleuler era de minha própria geração; tinha a seu favor dotes excepcionais, as
contribuições que já prestara à psicanálise, sua posição independente e a
impressão de firme energia que sua personalidade transmitia. Além disso,
parecia estar disposto a entrar num bom relacionamento pessoal comigo e, em
consideração a mim, a abrir mão de certos preconceitos raciais que alimentara
anteriormente. Eu não tinha, na ocasião, a menor ideia de que apesar de todas
essas vantagens a escolha era a mais infeliz possível, que eu havia escolhido
uma pessoa incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz ainda de
exercê-la ele próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para a
promoção de seus próprios interesses. Isso, e nada mais, foi o que esperava
alcançar com a fundação da “Associação Psicanalítica Internacional” (p.52). Um discurso subjetivo, reflete uma
relação mestre-discípulo, pai-filho. Assim as lutas, disputas, vaidades colocam
esses homens, que supõe-se com suas questões internas apaziguadas, em lados
opostos de forma beligerante, com dificuldade de suportar suas verdades.
Na
história da psicanálise muitas foram e continuam sendo as divergências
existentes entre os psicanalista: de Bleuler, Freud, Adler, Jung, Winnicott, Lacan, Francoise
Dolto, Melanie
Klein, embora todos se autodenominem freudianos. Então mais uma vez
o desapontamento de Freud, como diz ele “tivesse
sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às reações de pacientes sob
tratamento analítico. Sabia muito bem, naturalmente, que qualquer pessoa, ao
primeiro contato com as realidades desagradáveis da análise, pode reagir
fugindo; eu próprio sempre havia sustentado que na compreensão da análise, cada
indivíduo é limitado por suas próprias repressões (ou antes, pelas resistências
que as sustentam) de modo que não pode ir além de um certo ponto em sua relação
com a análise. Mas eu não esperava que alguém que houvesse alcançado certa
profundidade na compreensão da análise pudesse renunciar a essa compreensão e
perdê-la. E, no entanto, a experiência cotidiana com pacientes havia
demonstrado que a rejeição total do conhecimento analítico pode ocorrer sempre
que surge uma resistência especialmente forte em qualquer profundidade da
mente. Às vezes conseguimos, depois de muito trabalho, fazer com que um
paciente aprenda algumas partes do conhecimento analítico e possa lidar com
elas como posses suas, e mesmo assim podemos vê-lo, sob o domínio da própria
resistência seguinte, lançar tudo o que aprendeu às urtigas e ficar na
defensiva como o fez nos dias em que era um principiante despreocupado. Tive de
aprender que a mesmíssima coisa pode acontecer tanto com psicanalistas como com
pacientes em análise” (p.57). Isso
revela o quanto é difícil o autoconhecimento o autodomínio e a sublimação dos
instintos primitivos (ambição, vaidade, egoísmo, arrogância). Pensar em quanto
foi difícil para Freud é pensar que uma parte de suas dificuldades foram
expurgadas por um câncer na garganta, que o consumiu.
Obedecer
às exigências do ego, que manipula a repressão, pois a doença oferece uma
vantagem primária ao ego, como origem do sintoma e uma vantagem secundária na
persistência do sintoma. A eliminação da vantagem constitui-se em um mecanismo
de cura. Sem o sistema de repressão na arquitetura psíquica estruturada há
muitas gerações e repassado a cada geração para que a civilização mantenha a
repressão funcionando, na medida em que reprime os instintos primitivos a serem
elaborados no percurso da humanidade, significa simbolicamente renunciar ao
inacessível que é a mãe e renunciar ao pai interior no interesse da civilização
tornando o sujeito independente. A doença é assim o primeiro item de realidade
com o qual o sujeito deve lidar. E assim expõe Freud suas esperanças e nossas
também, “que a sorte
proporcione um caminho de elevação muito agradável a todos aqueles que acharam
a estada no submundo da psicanálise desagradável demais para o seu gosto. E
possamos nós, os que ficamos desenvolver até o fim, sem atropelos, nosso
trabalho nas profundezas” (p.73).
Esse trabalho das profundezas, da leitura do inconsciente, de seus mecanismos,
pouco avançou nos últimos cem anos, muito há que descobrir pesquisar, alargar
os horizontes estreitos dos preconceitos para que sejam possíveis novos
paradigmas e cortes epistemológicos.
Referência
FREUD, S. A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO (1914-1916). Obras Completas de
Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
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