O original
é quando nos implicamos no que escrevemos, falamos, quando colocamos nossa
alma. Quase nada se fala de razoável e racional sobre os sonhos. A vida onírica
permanece intocável. Freud no início da psicanálise começou a falar sobre os
sonhos. Nesse belo texto em que fala de Josef Popper-Lynkeus revela uma
sensibilidade ao se implicar, que nos diz o quanto é difícil remontar na
memória, de onde vem determinado conhecimento.
“Muita coisa interessante existe para ser dita
sobre o assunto da originalidade cientifica aparente. Quando alguma ideia nova
ocorre na ciência, saudada a princípio como uma descoberta e, via de regra,
também discutida como tal, a pesquisa objetiva logo após revela que, afinal de
contas, a ideia de fato não era novidade. Geralmente a descoberta já fora
efetuada repetidas vezes e posteriormente esquecida, muitas vezes por
intervalos de tempos muito longos. Ou ao menos tivera precursores, fora
obscuramente conjecturada ou incompletamente enunciada. Tudo isso é demais
conhecido para que se exija maior discussão.”
“O lado subjetivo da originalidade, contudo,
também merece consideração. Um cientista pode às vezes perguntar-se qual foi a
fonte das ideias, a ele peculiares, que aplicou a seu material. A respeito de
algumas delas descobrirá sem muita reflexão as sugestões das quais derivaram,
as afirmativas feitas por outras pessoas, que ele recolheu e modificou, e cujas
implicações elaborou. Em relação a outras de suas ideias, porém, não pode fazer
tais admissões; somente supor que esses pensamentos e linhas de abordagem foram
gerados — não pode dizer como — em sua própria atividade mental, sendo neles
que fundamenta sua reivindicação à originalidade.”
“Uma cuidadosa investigação psicológica,
contudo, diminui ainda mais essa reivindicação.” “Ela revela fontes ocultas e
há muito esquecidas, que forneceram o estímulo para as ideias aparentemente
originais, e substitui a nova criação ostensiva por uma revivescência de algo
esquecido aplicado a material novo. Nada há por que lamentar nisso; não
tínhamos direito de esperar que aquilo que era ‘original’ não pudesse ser
rastreado e determinado.”
“Em meu caso, também, a originalidade de
muitas entre as novas ideias que utilizei na interpretação de sonhos e na
psicanálise, evaporou-se dessa maneira. Ignoro a fonte de somente uma dessas
ideias. Tratava-se de nada menos que a chave para minha opinião sobre os sonhos
e ela me auxiliou a solucionar seus enigmas, desde quando tenha sido possível
solucioná-los até aqui. Comecei a partir do caráter estranho, confuso e
insensato de tantos sonhos e deparei com a noção de que eles estavam
comprometidos a se tornarem assim, de vez que neles algo lutava em busca de
expressão, à qual se opunha uma resistência oriunda de outras forças mentais.
Nos sonhos, impulsos ocultos despertavam o que estava em contradição com aquilo
que se poderia chamar de credo ético e estético oficial daquele que sonhava;
este pois se envergonhava desses impulsos, voltava-lhes as costas e recusava-se
a reconhecê-los de dia; e se, durante a noite, não podia evitar alguma
expressão por parte deles, submetia-os a uma “deformação onírica”, que fazia o
conteúdo do sonho parecer confuso e insensato. À força mental nos seres humanos
que mantém vigilância sobre essa contradição interna e deforma os impulsos
instintuais primitivos do sonho em favor de padrões morais convencionais ou
mais elevados, dei o nome de “censura de sonhos”.
Justamente essa parte essencial de minha
teoria dos sonhos, contudo, foi descoberta por Popper-Lynkeus
independentemente. Pedirei ao leitor para comparar a seguinte citação de uma
história chamada “Träumen wie Wachen” [“Sonhar Acordado”] em suas Phantasien
eines Realisten [Fantasias de um Realista], certamente redigida na
ignorância da teoria dos sonhos que publiquei em 1900, tal como eu próprio me
via então na ignorância das Phantasien de Lynkeus.
“A respeito de um homem que possuía o notável
atributo de jamais sonhar absurdos…”
‘“Esse seu esplêndido dom, de sonhar como se
estivesse desperto, é uma consequência de suas virtudes, de sua bondade; é a
serenidade moral de sua natureza que me faz compreender tudo a seu respeito.”’
‘“Mas quando penso sobre o assunto de modo
correto”, respondeu o outro, quase acredito que todos são como eu e que
absolutamente ninguém jamais sonha absurdos. Qualquer sonho que se pode
recordar de modo suficientemente claro para descrevê-lo posteriormente —
qualquer sonho, equivale a dizer, que não seja um sonho febril — deve sempre
fazer sentido e não poderia ser de outro modo, porque coisas entre si
contraditórias não poderiam se agrupar em um todo único. O fato de que tempo e
espaço sejam amiúde lançados em confusão não afeta o conteúdo verdadeiro do sonho,
porquanto, indubitavelmente, nenhum dos dois é significância para sua essência real. Com frequência
fazemos o mesmo na vida desperta. Pense apenas nos contos de fadas e nos muitos
e audaciosos produtos da imaginação plenos de significação, dos quais apenas um
homem sem inteligência poderia dizer: Isso é absurdo, pois é impossível.’”
‘“Se apenas sempre se soubesse como
interpretar sonhos da maneira correta, como você acabou de fazer com o meu!”
disse seu amigo.”’
‘“Isso certamente não é fácil, mas, com um pouco
de atenção por parte daquele mesmo que sonhou, sem dúvida sempre resultaria em
êxito. Você pergunta, por que é que, para a maioria, não há êxito? Em vocês, outras pessoas,
parece sempre haver algo que jaz escondido em seus sonhos, algo libertino num sentido
especial e mais elevado, determinada qualidade secreta em seu ser, difícil de
acompanhar. Por isso mesmo que seus sonhos tão amiúde parecem sem sentido, ou
até absurdos. No sentido mais profundo, porém, afinal não é assim; com efeito,
não pode sê-lo em absoluto — pois se trata sempre do mesmo homem, esteja
acordado ou sonhando.”’
É dessa
mesma forma que Clarice Lispector ao sonhar com uma boa e linda noite,
escreve o que o amor e a pureza de sua alma revela. Desvendar sonhos é preciso
alma de um amor eterno como Josef
Popper-Lynkeus, pois o ser que está desperto é o ser que sonha.
Boa e linda Noite!
"Alivia a minha alma,
faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que
a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu
sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte,
faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te
indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze
com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o
beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze
com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu
fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre
esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós
enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu
como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois
senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de
desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a
minha, amém." Clarice Lispector
FREUD, S. JOSEF
POPPER-LYNKEUS E A TEORIA DOS SONHOS (1923). Obras Completas de Psicanálise -
volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
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