3 de julho de 2015

“A pureza, o amor pela verdade e a serenidade moral” é o que nos conduz.

O original é quando nos implicamos no que escrevemos, falamos, quando colocamos nossa alma. Quase nada se fala de razoável e racional sobre os sonhos. A vida onírica permanece intocável. Freud no início da psicanálise começou a falar sobre os sonhos. Nesse belo texto em que fala de Josef Popper-Lynkeus revela uma sensibilidade ao se implicar, que nos diz o quanto é difícil remontar na memória, de onde vem determinado conhecimento.

“Muita coisa interessante existe para ser dita sobre o assunto da originalidade cientifica aparente. Quando alguma ideia nova ocorre na ciência, saudada a princípio como uma descoberta e, via de regra, também discutida como tal, a pesquisa objetiva logo após revela que, afinal de contas, a ideia de fato não era novidade. Geralmente a descoberta já fora efetuada repetidas vezes e posteriormente esquecida, muitas vezes por intervalos de tempos muito longos. Ou ao menos tivera precursores, fora obscuramente conjecturada ou incompletamente enunciada. Tudo isso é demais conhecido para que se exija maior discussão.”
“O lado subjetivo da originalidade, contudo, também merece consideração. Um cientista pode às vezes perguntar-se qual foi a fonte das ideias, a ele peculiares, que aplicou a seu material. A respeito de algumas delas descobrirá sem muita reflexão as sugestões das quais derivaram, as afirmativas feitas por outras pessoas, que ele recolheu e modificou, e cujas implicações elaborou. Em relação a outras de suas ideias, porém, não pode fazer tais admissões; somente supor que esses pensamentos e linhas de abordagem foram gerados — não pode dizer como — em sua própria atividade mental, sendo neles que fundamenta sua reivindicação à originalidade.”
“Uma cuidadosa investigação psicológica, contudo, diminui ainda mais essa reivindicação.” “Ela revela fontes ocultas e há muito esquecidas, que forneceram o estímulo para as ideias aparentemente originais, e substitui a nova criação ostensiva por uma revivescência de algo esquecido aplicado a material novo. Nada há por que lamentar nisso; não tínhamos direito de esperar que aquilo que era ‘original’ não pudesse ser rastreado e determinado.”
“Em meu caso, também, a originalidade de muitas entre as novas ideias que utilizei na interpretação de sonhos e na psicanálise, evaporou-se dessa maneira. Ignoro a fonte de somente uma dessas ideias. Tratava-se de nada menos que a chave para minha opinião sobre os sonhos e ela me auxiliou a solucionar seus enigmas, desde quando tenha sido possível solucioná-los até aqui. Comecei a partir do caráter estranho, confuso e insensato de tantos sonhos e deparei com a noção de que eles estavam comprometidos a se tornarem assim, de vez que neles algo lutava em busca de expressão, à qual se opunha uma resistência oriunda de outras forças mentais. Nos sonhos, impulsos ocultos despertavam o que estava em contradição com aquilo que se poderia chamar de credo ético e estético oficial daquele que sonhava; este pois se envergonhava desses impulsos, voltava-lhes as costas e recusava-se a reconhecê-los de dia; e se, durante a noite, não podia evitar alguma expressão por parte deles, submetia-os a uma “deformação onírica”, que fazia o conteúdo do sonho parecer confuso e insensato. À força mental nos seres humanos que mantém vigilância sobre essa contradição interna e deforma os impulsos instintuais primitivos do sonho em favor de padrões morais convencionais ou mais elevados, dei o nome de “censura de sonhos”.
Justamente essa parte essencial de minha teoria dos sonhos, contudo, foi descoberta por Popper-Lynkeus independentemente. Pedirei ao leitor para comparar a seguinte citação de uma história chamada “Träumen wie Wachen” [“Sonhar Acordado”] em suas Phantasien eines Realisten [Fantasias de um Realista], certamente redigida na ignorância da teoria dos sonhos que publiquei em 1900, tal como eu próprio me via então na ignorância das Phantasien de Lynkeus.
“A respeito de um homem que possuía o notável atributo de jamais sonhar absurdos…”
‘“Esse seu esplêndido dom, de sonhar como se estivesse desperto, é uma consequência de suas virtudes, de sua bondade; é a serenidade moral de sua natureza que me faz compreender tudo a seu respeito.”’
‘“Mas quando penso sobre o assunto de modo correto”, respondeu o outro, quase acredito que todos são como eu e que absolutamente ninguém jamais sonha absurdos. Qualquer sonho que se pode recordar de modo suficientemente claro para descrevê-lo posteriormente — qualquer sonho, equivale a dizer, que não seja um sonho febril — deve sempre fazer sentido e não poderia ser de outro modo, porque coisas entre si contraditórias não poderiam se agrupar em um todo único. O fato de que tempo e espaço sejam amiúde lançados em confusão não afeta o conteúdo verdadeiro do sonho, porquanto, indubitavelmente, nenhum dos dois é significância para sua essência real. Com frequência fazemos o mesmo na vida desperta. Pense apenas nos contos de fadas e nos muitos e audaciosos produtos da imaginação plenos de significação, dos quais apenas um homem sem inteligência poderia dizer: Isso é absurdo, pois é impossível.’”
‘“Se apenas sempre se soubesse como interpretar sonhos da maneira correta, como você acabou de fazer com o meu!” disse seu amigo.”’
‘“Isso certamente não é fácil, mas, com um pouco de atenção por parte daquele mesmo que sonhou, sem dúvida sempre resultaria em êxito. Você pergunta, por que é que, para a maioria, não há êxito? Em vocês, outras pessoas, parece sempre haver algo que jaz escondido em seus sonhos, algo libertino num sentido especial e mais elevado, determinada qualidade secreta em seu ser, difícil de acompanhar. Por isso mesmo que seus sonhos tão amiúde parecem sem sentido, ou até absurdos. No sentido mais profundo, porém, afinal não é assim; com efeito, não pode sê-lo em absoluto — pois se trata sempre do mesmo homem, esteja acordado ou sonhando.”’

É dessa mesma forma que Clarice Lispector ao sonhar com uma boa e linda noite, escreve o que o amor e a pureza de sua alma revela. Desvendar sonhos é preciso alma de um amor eterno como Josef Popper-Lynkeus, pois o ser que está desperto é o ser que sonha.

Boa e linda Noite!
"Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém." Clarice Lispector

Referência
FREUD, S. JOSEF POPPER-LYNKEUS E A TEORIA DOS SONHOS (1923). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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