O que leva um garoto a mentir supondo que assim teria o
amor de seu pai? Complexa a resposta. Mas essa é a interrogação que fica no
filme “O Caçador de Pipas” de Marc Foster (2007). Aqui é necessário “deixar a
margem” se é que isso é possível o contexto da guerra no Afeganistão, os países
envolvidos, e a guerra civil que se instalou após a saída das tropas
estrangeiras e a difícil reconstrução do país, os valores da sociedade afegã,
bem como o olhar do diretor sobre o livro em que se baseou o filme. No filme o
que vemos na subjetividade dos personagens Amir (Zekeria Ebrahimi) e Hassan
(Ahmad Khan Mahmidzada), dois amigos, que passam a infância brincando nos
torneios de pipas de Kabul. Quando vencem o torneio, Hassan sofre uma violência
ao garantir a pipa para o amigo (Amir). Amir em sua insegurança pelo amor do
pai, pois se interroga sobre esse, em função da morte de sua mãe durante o
parto, e a ausência de um símbolo feminino, vê na violência que o amigo sofre
uma possibilidade na sua omissão e ausência de remorsos, planejar uma mentira
para expulsar Hassan de sua casa, pois esse era tido como filho do empregado do
pai e muito estimado por esse. O que faz com que o caráter de Amir tenha traços
perversos é complexo, pois apesar da ética moral do pai em seu dia a dia, há
uma falta e uma culpa simbólica que Amir não consegue dá conta. Ou seja, seus
conflitos são de ordem simbólica, mas determinam seu destino de forma
irremediável. Hassan embora tenha sofrido a violência, e as consequências da
mentira de Amir, não se desestrutura, não afeta seu caráter. Possui uma
contextura de sublimação sólida. Embora o objetivo do filme não seja colocar
essa discussão, ela torna-se inevitável, nas contexturas de caráter que se
revelam. Não é possível “inferir da história da primeira infância
desses indivíduos que os mesmos desprenderam um tempo relativamente longo para
superar sua incontinência alvi [incontinência fecal] infantil, e que na
infância posterior sofreram falhas isoladas nessa função”, como
argumenta Freud. Mas a questão é que estamos diante de uma criança, cujo pai é
um criado e outra cujo pai é o senhor. Isso certamente irá influenciar no
caráter, e a festa de aniversário de Amir, revela isso. Assim é possível
inferir acerca de caráter, neurose e humildade, e perversão é da ordem da falta
e a arrogância é uma luta contra a falta. Então como um indivíduo que não se
estruturou na falta pode ressignificar seu caráter e reparar o irreparável?
Como não é possível voltar ao “passado”? O caminho que lhe acena é
reestruturar-se no “presente” na tentativa de reconstruir-se para viver o
“futuro”. “Abri a boca e quase disse algo. Quase. O resto da minha vida
poderia ter sido diferente se eu tivesse dito alguma coisa naquela hora. Mas,
não disse. Só fiquei olhando. Paralisado”. Esse é o reflexo do seu caráter.
Muitas interrogações podem e devem ser feitas.
Referência
FREUD, S. CARÁTER E EROTISMO ANAL (1908). Obras Completas de Psicanálise - volume IX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário