23 de agosto de 2015

A Difícil Tarefa da Reparação


O que leva um garoto a mentir supondo que assim teria o amor de seu pai? Complexa a resposta. Mas essa é a interrogação que fica no filme “O Caçador de Pipas” de Marc Foster (2007). Aqui é necessário “deixar a margem” se é que isso é possível o contexto da guerra no Afeganistão, os países envolvidos, e a guerra civil que se instalou após a saída das tropas estrangeiras e a difícil reconstrução do país, os valores da sociedade afegã, bem como o olhar do diretor sobre o livro em que se baseou o filme. No filme o que vemos na subjetividade dos personagens Amir (Zekeria Ebrahimi) e Hassan (Ahmad Khan Mahmidzada), dois amigos, que passam a infância brincando nos torneios de pipas de Kabul. Quando vencem o torneio, Hassan sofre uma violência ao garantir a pipa para o amigo (Amir). Amir em sua insegurança pelo amor do pai, pois se interroga sobre esse, em função da morte de sua mãe durante o parto, e a ausência de um símbolo feminino, vê na violência que o amigo sofre uma possibilidade na sua omissão e ausência de remorsos, planejar uma mentira para expulsar Hassan de sua casa, pois esse era tido como filho do empregado do pai e muito estimado por esse. O que faz com que o caráter de Amir tenha traços perversos é complexo, pois apesar da ética moral do pai em seu dia a dia, há uma falta e uma culpa simbólica que Amir não consegue dá conta. Ou seja, seus conflitos são de ordem simbólica, mas determinam seu destino de forma irremediável. Hassan embora tenha sofrido a violência, e as consequências da mentira de Amir, não se desestrutura, não afeta seu caráter. Possui uma contextura de sublimação sólida. Embora o objetivo do filme não seja colocar essa discussão, ela torna-se inevitável, nas contexturas de caráter que se revelam. Não é possível “inferir da história da primeira infância desses indivíduos que os mesmos desprenderam um tempo relativamente longo para superar sua incontinência alvi [incontinência fecal] infantil, e que na infância posterior sofreram falhas isoladas nessa função”, como argumenta Freud. Mas a questão é que estamos diante de uma criança, cujo pai é um criado e outra cujo pai é o senhor. Isso certamente irá influenciar no caráter, e a festa de aniversário de Amir, revela isso. Assim é possível inferir acerca de caráter, neurose e humildade, e perversão é da ordem da falta e a arrogância é uma luta contra a falta. Então como um indivíduo que não se estruturou na falta pode ressignificar seu caráter e reparar o irreparável? Como não é possível voltar ao “passado”? O caminho que lhe acena é reestruturar-se no “presente” na tentativa de reconstruir-se para viver o “futuro”. “Abri a boca e quase disse algo. Quase. O resto da minha vida poderia ter sido diferente se eu tivesse dito alguma coisa naquela hora. Mas, não disse. Só fiquei olhando. Paralisado”. Esse é o reflexo do seu caráter. Muitas interrogações podem e devem ser feitas.

Referência

FREUD, S. CARÁTER E EROTISMO ANAL (1908). Obras Completas de Psicanálise - volume IX. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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