“Aceitar
nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a
criar com os outros, relações sem base no poder”.
O discurso
de Freud perante a Sociedade dos Bnai Brith (1941 [1926]) “foi lido em nome de
Freud numa reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio de 1926, em honra ao
seu septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito
pelo seu médico, o professor Ludwig Braun”.
“Os B’nai
B’rith (Filhos da Aliança) são uma ordem que representa os interesses judeus —
culturais, intelectuais e caritativos. Originalmente fundada nos Estados
Unidos em meados do século XIX, tem lojas filiadas em muitas partes do mundo.
Como se verá adiante, Freud filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e durante
muitos anos foi frequentador assíduo de suas reuniões, realizadas em
terças-feiras alternadas. De tempos a tempos ele próprio pronunciou
conferências ali, havendo os temas de algumas delas sido registrados”.
“Ilustríssimo
Grão Presidente, ilustríssimos Presidentes, caros Irmãos, — Agradeço-vos as
honrarias que me prestastes hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de
minha própria voz. Ouvistes um dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho
científico; mas é difícil formar um julgamento sobre tais coisas e por muito
tempo ainda ele não pode ser alcançado com segurança. Permiti-me acrescentar
algo ao que foi dito por aquele que é tanto meu amigo como o médico que vela
por mim. Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos
e o que procurei de vós”.
“Aconteceu
que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se
combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha
primeira compreensão interna (insight) das profundezas da vida dos instintos humanos;
eu vira certas coisas que eram tranquilizadoras e mesmo, de início,
assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas descobertas desagradáveis
teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos;
senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão
fui presa do anseio de encontrar um círculo de homens de escol de caráter
elevado que me recebesse com espírito amistoso, apesar da minha temeridade.
Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam ser
encontrados”.
“O fato de
vós serdes judeus só me poderia ser agradável, pois eu próprio sou judeu, e
sempre me parecera não somente indigno como positivamente insensato negar esse
fato. O que me ligava ao povo judeu não era (envergonho-me de admitir) nem a fé
nem o orgulho nacional, pois sempre fui um descrente e fui educado sem nenhuma
religião, embora não sem respeito pelo que se denomina de padrões ‘éticos’ da
civilização humana. Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional
esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos
exemplos de advertência dos povos entre os quais nós judeus vivemos. Mas
restavam muitas outras coisas que tornavam a atração do mundo judeu e dos
judeus irresistível — muitas forças emocionais obscuras, que eram mais
poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida
consciência de identidade interna, a reserva segura de uma construção mental
comum. E além disso havia uma percepção de que era somente à minha natureza
judaica que eu devia duas características que se haviam tornado indispensáveis
para mim no difícil curso de minha vida. Por ser judeu encontrei-me livre de
muitos preconceitos que restringiam outros no uso de seu intelecto, e como
Judeu estava preparado para aliar-me à Oposição e passar sem consenso à maioria
compacta”.
“Assim foi
que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses
humanitários e nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e
poucos amigos restantes a se filiarem à nossa sociedade. Não houve
absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas teorias; mas
numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum
discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o
meu primeiro auditório”.
“Durante
cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti
convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas
relações convosco. Vós tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me
de que durante a última terça parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive
sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim;
o dia deixou de ser bastante longo para que eu frequentasse vossas reuniões, e
logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite.
Finalmente sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre
vós até mesmo num dia como o de hoje”.
“Não posso
dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou
quase inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no
meu caso. Mas de uma coisa posso assegurar-vos — que vós muito significastes
para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos quais fiz parte de vós.
Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses
anos como por hoje”.
Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud
Esse
revelador discurso de Freud aos “Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) uma ordem
que representava os interesses judeus – Culturais, intelectuais e caritativos,
revela que para todos os homens pensar e está inserido nas discussões
culturais, intelectuais e na prática da caridade é fundamental para suas
existências. É assim que, sempre será digno de nota e lembrança o sequestro e
massacre dos sete monges Trapistas de Atlas, na Argélia em 1996, que em breve
fará 20 anos e não pode ser esquecido e tão brilhantemente demonstrado no filme
“Homens e Deuses” (Des Hommes ET dês Dieux, 2010). A necessidade de servir ao
outro, de exercer a caridade se revela cada vez mais imperativo e urgente em
cada momento da vida. O mundo da razão não pode viver sem a fé, e é a vida
pulsante que testemunha isso. Todos os homens de ciência e com Freud não seria
diferente, rendem-se a esse imperativo da vida, sejam em organizações,
sociedades, ou formas de expressão, aprender a viver com o outro, é tarefa
difícil, extenuante, desafiante, mas acima de tudo gratificante e libertadora.
Alguns textos do filme somam-se ao discurso de Freud. Aqui os reproduzimos pela
sua permanente importância:
“Aceitar
nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a
criar com os outros, relações sem base no poder. Reconhecendo a minha fraqueza
posso aceitar a dos outros e ver nela um apelo a carregá-la, fazê-la minha,
imitando Cristo. Tal atitude nos transforma para a missão. A fraqueza em si não
é uma virtude, mas é a expressão de uma realidade fundamental do nosso ser, que
deve ser constantemente moldado pela fé, a esperança e o amor. A fraqueza dos
apóstolos é como a de Cristo enraizada na força do mistério da páscoa e da
força do espírito. Ela não é passividade. Ela pressupõe muita coragem e a lutas
pela justiça e pela verdade ao denunciar a ilusória sedução da força e do poder”
“Jesus
Cristo nos convida a nascer. Nossa identidade de homem segue de nascimento em
nascimento. E de nascimento em nascimento vamos acabar nós mesmos trazendo ao
mundo esse Filho de Deus que nós somos, porque a reencarnação para nós é
permitir que a realidade filial de Jesus se reencarne na nossa humanidade. O
mistério da reencarnação abriga, aquilo que nós vamos viver. É assim que fica
enraizado tudo o que já vivemos aqui, tudo o que vamos viver ainda”. “As flores
do campo não se movem para achar os raios de sol. É Deus que se encarrega de
fecundá-las, onde quer que estejam”.
Referências
FREUD, S.
DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH (1941 [1926]). Obras Completas de
Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.