17 de outubro de 2015

A Transferência nas Relações Afetivas

A relação com o outro, esse outro um “sujeito suposto saber”, é permeada de um saber de emoções, percepções, julgamentos, sentimentos, desejos, pré-concebidos oriundos de marcas mnêmicas. Enamorar-se de alguém é algo que ao longo da história humana tem passado por mudanças culturais, que nem sempre pode significar uma evolução da civilização. As relações fluidas, online, descartáveis, os milhares de “amigos”, o encontro de parceiros, parceiras através das redes, a vida privada exposta, revelam novas representações subjetivas, fazendo com que os contatos pessoais sejam também, descartáveis, superficiais, mercadológicos e baseados em relações de poder. Remontar essas relações estereotipadas requer percorrer a história da própria vida. Mas nem sempre é necessária a vida online. O trabalho, também, sempre foi uma forma de estabelecer essas mesmas relações do mundo ‘civilizado’. Um traço mostra-se sempre presente: um nível de autoestima baixo, abusos físicos e psicológicos, escolhas de objetos primários patológicos, um narcisismo primário, que muitas vezes possui seu contraponto nas relações de poder. Lidar com o cotidiano da vida e seu aprofundamento, na medida em que as “circunstancias externas e a natureza dos objetos” mudam, faz com que o sujeito torna-se incapaz de respostas assertivas a experiências recentes, possibilitando relações transferenciais negativas. As representações dos objetos de afetos, com grande carga de energia, possibilitam as transferências como uma imagem que se reproduz a partir não só do consciente, mas principalmente do inconsciente.

A transferência é mais intensa em todas as relações onde os objetos representados são objetos de desejo proibidos, frustrados, não realizados, não elaborados. É então, que se estabelece a questão do lugar e da função. O destino que o sujeito dá a trilogia em que é imerso, como primeira prova do destino: lugar e função pai, mãe, filho, a transferência vem a se estabelecer como uma poderosa resistência, que dificulta o sujeito repensar suas relações. Na análise a transferência é um recurso de cura, mas pode tornar-se uma resistência. A transferência como resistência revela que o objeto ao qual é dirigido o afeto, é um objeto de representação, que não possui correspondência. E onde surge a resistência é mais trabalhoso o mecanismo de construção das associações. A transferência imprime uma deformação, na visão que o sujeito possui de si mesmo, em função não só da substituição do objeto, mas como gostaria que o outro o percebesse, ou seja, como o sujeito se vê em seu narcisismo, como ele desejaria ser ou como desejaria ser percebido pelo outro.  É como se o desejo do sujeito fosse que o outro percebesse sua imagem no espelho e não ele mesmo.

Esse deslocamento de objeto pode dar-se através de um afeto positivo ou negativo, hostil, ou alternar entre um e outro. A fonte desses deslocamentos e das ambivalências, que os caracterizam, está em experiências “esquecidas” no profundo inconsciente e que dificilmente são acessíveis. Em termos de estrutura vamos encontrar as transferências negativas na paranoia, no narcisismo compulsivo e na perversão. Não é tarefa fácil, manter-se “imparcial” diante das transferências negativas. Quando a transferência é positiva há uma relação de química prazerosa. No dia a dia das relações, em geral há sempre uma transferência. Identificar que transferência é essa, sua qualidade e intensidade, o que há de saudável ou patológico eis a questão. Nas relações profissionais isso é um desafio e na relação analítica é um ponto de interpretação e trabalho, onde a ética deve prevalecer sempre, e a prioridade é o tratamento do paciente. No trabalho analítico “não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte, irreal e trabalho da resistência”. O paciente “abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está” curado. O fato é que “o tratamento analítico se baseia na sinceridade, e neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor ético”. A neutralidade, a ética e a questão técnica é então importante para evitar a contratransferência.

Manter a imparcialidade, a ausência implicada, para evitar uma atuação de (“acting out”), ou seja, “em repetir na vida real o que deveria apenas ter lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos” é tarefa que exige experiência, técnica e ética. Compreender os afetos das transferências é tarefa de autoconhecimento, que requer renúncias e aprendizados. Não só nas relações analíticas, mas nas questões do amor genuíno vamos encontrar também as resistências, que são representadas nos conflitos, a serem superados pela compreensão dos fundamentos e renúncia ao egoísmo. Para que o amor não seja transferencial é necessário que todas as questões da existência do sujeito, tenham sido elaboradas, reinterpretadas, livre dos instintos primitivos, do narcisismo primário e haja uma similitude de essência elevada, que transpõe o corpo. Um amor que nunca pode ser contaminado pelo ódio, inveja, disputas, ressentimentos, interesses materiais. No que diz respeito à transferência nos romances que são socialmente inaceitáveis, por ferir questões éticas, como lealdade e fidelidade, que são condutas culturais, essas transferência diz respeito a transgressões muito comuns na sociedade em que vivemos. Então compreender as transferências que existe em todas as relações é compreender o lugar e a função de cada sujeito na vida, para que o pai não ocupe a função de mãe ou de filho, a mãe não ocupe a função de pai ou de filho, o filho não ocupe a função de pai ou de mãe, o chefe não ocupe o lugar de pai ou mãe e os colegas de irmãos ou familiares. As transferências são transferências de substitutos nem sempre positivos e requer elaboração para que não se constitua em resistência e representações patológicas de objetos.

Referências
FREUD, S. A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA (1912). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA PSICANÁLISE III) (1915 [1914]). Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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