A relação
com o outro, esse outro um “sujeito suposto saber”, é permeada de um saber de
emoções, percepções, julgamentos, sentimentos, desejos, pré-concebidos oriundos
de marcas mnêmicas. Enamorar-se de alguém é algo que ao longo da história
humana tem passado por mudanças culturais, que nem sempre pode significar uma
evolução da civilização. As relações fluidas, online, descartáveis, os milhares
de “amigos”, o encontro de parceiros, parceiras através das redes, a vida
privada exposta, revelam novas representações subjetivas, fazendo com que os
contatos pessoais sejam também, descartáveis, superficiais, mercadológicos e
baseados em relações de poder. Remontar essas relações estereotipadas requer
percorrer a história da própria vida. Mas nem sempre é necessária a vida
online. O trabalho, também, sempre foi uma forma de estabelecer essas mesmas
relações do mundo ‘civilizado’. Um traço mostra-se sempre presente: um nível de
autoestima baixo, abusos físicos e psicológicos, escolhas de objetos primários
patológicos, um narcisismo primário, que muitas vezes possui seu contraponto
nas relações de poder. Lidar com o cotidiano da vida e seu aprofundamento, na
medida em que as “circunstancias externas e a natureza dos
objetos” mudam, faz
com que o sujeito torna-se incapaz de respostas assertivas a experiências
recentes, possibilitando relações transferenciais negativas. As
representações dos objetos de afetos, com grande carga de energia, possibilitam
as transferências como uma imagem que se reproduz a partir não só do
consciente, mas principalmente do inconsciente.
A
transferência é mais intensa em todas as relações onde os objetos representados
são objetos de desejo proibidos, frustrados, não realizados, não elaborados. É
então, que se estabelece a questão do lugar e da função. O destino que o
sujeito dá a trilogia em que é imerso, como primeira prova do destino: lugar e
função pai, mãe, filho, a transferência vem a se estabelecer como uma poderosa
resistência, que dificulta o sujeito repensar suas relações. Na análise a
transferência é um recurso de cura, mas pode tornar-se uma resistência. A
transferência como resistência revela que o objeto ao qual é dirigido o afeto,
é um objeto de representação, que não possui correspondência. E onde surge a
resistência é mais trabalhoso o mecanismo de construção das associações. A
transferência imprime uma deformação, na visão que o sujeito possui de si
mesmo, em função não só da substituição do objeto, mas como gostaria que o
outro o percebesse, ou seja, como o sujeito se vê em seu narcisismo, como ele
desejaria ser ou como desejaria ser percebido pelo outro. É como se o
desejo do sujeito fosse que o outro percebesse sua imagem no espelho e não ele
mesmo.
Esse
deslocamento de objeto pode dar-se através de um afeto positivo ou negativo,
hostil, ou alternar entre um e outro. A fonte desses deslocamentos e das
ambivalências, que os caracterizam, está em experiências “esquecidas” no
profundo inconsciente e que dificilmente são acessíveis. Em termos de estrutura
vamos encontrar as transferências negativas na paranoia, no narcisismo
compulsivo e na perversão. Não é tarefa fácil, manter-se “imparcial” diante das
transferências negativas. Quando a transferência é positiva há uma relação de
química prazerosa. No dia a dia das relações, em geral há sempre uma
transferência. Identificar que transferência é essa, sua qualidade e
intensidade, o que há de saudável ou patológico eis a questão. Nas relações
profissionais isso é um desafio e na relação analítica é um ponto de
interpretação e trabalho, onde a ética deve prevalecer sempre, e a prioridade é
o tratamento do paciente. No trabalho analítico “não pode haver dúvida de que a
irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte, irreal e
trabalho da resistência”. O
paciente “abandona seus
sintomas ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está” curado. O fato é que “o tratamento analítico se baseia
na sinceridade, e neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de
seu valor ético”. A
neutralidade, a ética e a questão técnica é então importante para evitar a
contratransferência.
Manter a
imparcialidade, a ausência implicada, para evitar uma atuação de (“acting
out”), ou seja, “em repetir na vida real o que deveria
apenas ter lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da
esfera dos eventos psíquicos” é tarefa
que exige experiência, técnica e ética. Compreender os afetos das
transferências é tarefa de autoconhecimento, que requer renúncias e
aprendizados. Não só nas relações analíticas, mas nas questões do amor genuíno
vamos encontrar também as resistências, que são representadas nos conflitos, a
serem superados pela compreensão dos fundamentos e renúncia ao egoísmo. Para
que o amor não seja transferencial é necessário que todas
as questões da existência do sujeito, tenham sido elaboradas,
reinterpretadas, livre dos instintos primitivos, do narcisismo primário e haja
uma similitude de essência elevada, que transpõe o corpo. Um amor que nunca
pode ser contaminado pelo ódio, inveja, disputas, ressentimentos, interesses
materiais. No que diz respeito à transferência nos romances que são socialmente
inaceitáveis, por ferir questões éticas, como lealdade e fidelidade, que são condutas
culturais, essas transferência diz respeito a transgressões muito comuns na
sociedade em que vivemos. Então compreender as transferências que existe em
todas as relações é compreender o lugar e a função de cada sujeito na vida,
para que o pai não ocupe a função de mãe ou de filho, a mãe não ocupe a função
de pai ou de filho, o filho não ocupe a função de pai ou de mãe, o chefe não
ocupe o lugar de pai ou mãe e os colegas de irmãos ou familiares. As
transferências são transferências de substitutos nem sempre positivos e requer
elaboração para que não se constitua em resistência e representações
patológicas de objetos.
Referências
FREUD, S.
A DINÂMICA DA TRANSFERÊNCIA (1912). Obras Completas de Psicanálise - volume
XII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.
OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DA
PSICANÁLISE III) (1915 [1914]). Obras Completas de Psicanálise - volume XII.
Rio de Janeiro, Imago-1996.
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