4 de outubro de 2015

Vidas Fecundas

“Aceitar nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a criar com os outros, relações sem base no poder”.

O discurso de Freud perante a Sociedade dos Bnai Brith (1941 [1926]) “foi lido em nome de Freud numa reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio de 1926, em honra ao seu septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito pelo seu médico, o professor Ludwig Braun”.
“Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) são uma ordem que representa os interesses judeus — culturais, intelectuais e caritativos. Originalmente fundada nos Estados Unidos em meados do século XIX, tem lojas filiadas em muitas partes do mundo. Como se verá adiante, Freud filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e durante muitos anos foi frequentador assíduo de suas reuniões, realizadas em terças-feiras alternadas. De tempos a tempos ele próprio pronunciou conferências ali, havendo os temas de algumas delas sido registrados”.

“Ilustríssimo Grão Presidente, ilustríssimos Presidentes, caros Irmãos, — Agradeço-vos as honrarias que me prestastes hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de minha própria voz. Ouvistes um dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho científico; mas é difícil formar um julgamento sobre tais coisas e por muito tempo ainda ele não pode ser alcançado com segurança. Permiti-me acrescentar algo ao que foi dito por aquele que é tanto meu amigo como o médico que vela por mim. Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos e o que procurei de vós”.
“Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira compreensão interna (insight) das profundezas da vida dos instintos humanos; eu vira certas coisas que eram tranquilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos; senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de encontrar um círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso, apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam ser encontrados”.
“O fato de vós serdes judeus só me poderia ser agradável, pois eu próprio sou judeu, e sempre me parecera não somente indigno como positivamente insensato negar esse fato. O que me ligava ao povo judeu não era (envergonho-me de admitir) nem a fé nem o orgulho nacional, pois sempre fui um descrente e fui educado sem nenhuma religião, embora não sem respeito pelo que se denomina de padrões ‘éticos’ da civilização humana. Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência dos povos entre os quais nós judeus vivemos. Mas restavam muitas outras coisas que tornavam a atração do mundo judeu e dos judeus irresistível — muitas forças emocionais obscuras, que eram mais poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida consciência de identidade interna, a reserva segura de uma construção mental comum. E além disso havia uma percepção de que era somente à minha natureza judaica que eu devia duas características que se haviam tornado indispensáveis para mim no difícil curso de minha vida. Por ser judeu encontrei-me livre de muitos preconceitos que restringiam outros no uso de seu intelecto, e como Judeu estava preparado para aliar-me à Oposição e passar sem consenso à maioria compacta”.
“Assim foi que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses humanitários e nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à nossa sociedade. Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o meu primeiro auditório”.
“Durante cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante longo para que eu frequentasse vossas reuniões, e logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como o de hoje”.
“Não posso dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa posso assegurar-vos — que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses anos como por hoje”.
Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud

Esse revelador discurso de Freud aos “Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) uma ordem que representava os interesses judeus – Culturais, intelectuais e caritativos, revela que para todos os homens pensar e está inserido nas discussões culturais, intelectuais e na prática da caridade é fundamental para suas  existências. É assim que, sempre será digno de nota e lembrança o sequestro e massacre dos sete monges Trapistas de Atlas, na Argélia em 1996, que em breve fará 20 anos e não pode ser esquecido e tão brilhantemente demonstrado no filme “Homens e Deuses” (Des Hommes ET dês Dieux, 2010). A necessidade de servir ao outro, de exercer a caridade se revela cada vez mais imperativo e urgente em cada momento da vida. O mundo da razão não pode viver sem a fé, e é a vida pulsante que testemunha isso. Todos os homens de ciência e com Freud não seria diferente, rendem-se a esse imperativo da vida, sejam em organizações, sociedades, ou formas de expressão, aprender a viver com o outro, é tarefa difícil, extenuante, desafiante, mas acima de tudo gratificante e libertadora. Alguns textos do filme somam-se ao discurso de Freud. Aqui os reproduzimos pela sua permanente importância:
“Aceitar nossa fragilidade e nossa miséria radical é um convite, um apelo urgente a criar com os outros, relações sem base no poder. Reconhecendo a minha fraqueza posso aceitar a dos outros e ver nela um apelo a carregá-la, fazê-la minha, imitando Cristo. Tal atitude nos transforma para a missão. A fraqueza em si não é uma virtude, mas é a expressão de uma realidade fundamental do nosso ser, que deve ser constantemente moldado pela fé, a esperança e o amor. A fraqueza dos apóstolos é como a de Cristo enraizada na força do mistério da páscoa e da força do espírito. Ela não é passividade. Ela pressupõe muita coragem e a lutas pela justiça e pela verdade ao denunciar a ilusória sedução da força e do poder”
“Jesus Cristo nos convida a nascer. Nossa identidade de homem segue de nascimento em nascimento. E de nascimento em nascimento vamos acabar nós mesmos trazendo ao mundo esse Filho de Deus que nós somos, porque a reencarnação para nós é permitir que a realidade filial de Jesus se reencarne na nossa humanidade. O mistério da reencarnação abriga, aquilo que nós vamos viver. É assim que fica enraizado tudo o que já vivemos aqui, tudo o que vamos viver ainda”. “As flores do campo não se movem para achar os raios de sol. É Deus que se encarrega de fecundá-las, onde quer que estejam”.

Referências
FREUD, S. DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH (1941 [1926]). Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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