Há quase
100 anos esses dois pesquisadores, instigantes e suas interrogações sobre a
psique humana, mergulharam suas vidas em um trabalho interminável, como o
próprio objeto de estudo. Novamente partilhamos essas duas cartas que falam por
si só.
7 de
outubro de 1906, Viena, IX. Berggasse Caro colega,
Sua carta
me deu grande prazer. Folgo especialmente em saber que o senhor fez a
conversão de Bleuler. Seus escritos já me haviam sugerido que sua aceitação de
minha psicologia não se estende a todos os meus pontos de vista sobre a
histeria e o problema da sexualidade, mas me atrevo a esperar que, com o passar
dos anos, o senhor chegue muito mais perto de mim do que julga possível
atualmente. Tendo em vista sua esplendida analise de um caso de neurose
obsessiva,' ninguém melhor que o senhor ha de saber quão perfeitamente se
oculta o fator sexual e, uma vez descoberto, quão valioso pode ser para nossa
compreensão e terapia. Continuo esperando que esse aspecto de minhas
investigações venha a se mostrar o mais significativo. Por questão de
principio, mas também pelo desagrado que me causa a entonação pessoal, não
responderei ao ataque de Aschaffenburg. Desnecessário porem dizer que o
julgaria em termos bem mais severos que os seus. No estudo dele nada encontro
senão vacuidades alem de uma ignorância invejável dos assuntos que critica. Ele
ainda pega em armas contra o método hipnótico, que foi abandonado há dez anos,
e nenhuma compreensão demonstra do simbolismo mais simples cuja importância
qualquer estudante de linguística ou folclore lhe poderia incutir, já que ele
não se dispõe a me dar credito. Como a tantos de nossos sábios motiva-o
principalmente a inclinação de reprimir a sexualidade, esse fator incomodo que
a boa sociedade não recebe bem. Temos aqui dois mundos antagônicos, e logo será
obvio para todos qual se acha em declínio, qual em ascensão. Mesmo assim sei
que tenho pela frente uma longa luta e, em virtude de minha idade (50), não
acredito muito que chegue a presenciar o fim. Mas meus seguidores o verão, e o
que espero, tal como espero que os que forem capazes de vencer a resistência
interior a verdade queiram se por sem exceção entre meus seguidores, eliminando
do pensamento os últimos vestígios de pusilanimidade. Nada mais sei sobre
Aschaffenburg, mas a opinião que esse estudo me deixa a respeito dele e muito
pobre. Aguardo ansiosamente seu próximo livro sobre demência precoce. Devo
confessar que, sempre que vem a luz uma obra como a sua ou a de Bleuler, sou
possuído pela grande e para mim indispensável satisfação de saber que o árduo
trabalho de uma vida inteira não foi totalmente inútil.
Sinceramente,
Dr. Freud
Burgholzli-Zurique,
23 de outubro de 1906
Caro
Professor Freud,
Nesta
mesma data tomo a liberdade de lhe remeter outra separata com algumas novas
pesquisas sobre psicanálise. Não creio que o ponto de vista “sexual” por mim
adotado lhe pareça excessivamente cauteloso. Os críticos, por conseguinte hão
de investir contra ele. É possível que minhas reservas quanto as suas
concepções tão amplas sejam devidas, como o senhor mesmo notou, a falta de
experiência. Mas não lhe parece que há um número de fenômenos fronteiriços que
com maior propriedade podem ser considerados em termos do outro impulso básico
— a fome? Refiro-me, por exemplo, ao ato de comer, de sugar (predominantemente
fome), de beijar (predominantemente sexualidade). A existência simultânea de
dois complexos sempre os destina a misturar-se psicologicamente de modo que um
deles invariavelmente contem aspectos do outro. Talvez seja apenas isso o que o
senhor pretende dizer; nesse caso, eu o interpretei mal, e partilho
integralmente de sua opinião. Mesmo assim, no entanto, e bastante assustador o
modo positivo como o senhor apresenta suas teorias. Embora correndo o risco de
incomodá-lo devo falar-lhe de minha experiência mais recente. Trato no momento,
utilizando seu método, de uma histérica. Caso difícil; uma estudante russa de
20 anos, doente há 6. Primeiro trauma entre os 3 e os 4 anos. Viu o irmão mais
velho, com as nádegas nuas sendo espancado pelo pai. Impressão forte. Dai para
a frente não conseguiu deixar de pensar que tinha defecado na mão do pai. Dos 4
aos 7 anos, tentativas convulsivas de defecar nos próprios pés, da seguinte
maneira: sentava-se no chão sobre um dos pés e premia o calcanhar contra o
anus, tentando ao mesmo tempo defecar e impedir a defecação. Não raro retinha
as fezes por 2 semanas! Ela não sabe como chegou a essa solução peculiar; diz
que tudo era completamente instintivo e acompanhado por sentimentos dúbios,
misto de horror e prazer. Mais tarde o fenômeno foi substituído por uma
masturbação frenética. Eu lhe ficaria extremamente grato se me dissesse em
poucas palavras o que pensa dessa história.
Atenciosamente,
C. G. Jung
FREUD /
JUNG – CORRESPONDÊNCIA COMPLETA - Organizada por William Mcguire -
Coleção Psicologia Psicanalítica - Direção de Jaym e Salomão - Coordenação
editorial de Pedro Paulo de Sena Madureira - IMAGO EDITORA LTDA. Rio de
Janeiro.