24 de outubro de 2016

Poesia - O espelho


Eis o homem perdido em mil clonagens
no infinito mar das perspectivas,
as coisas todas virtualmente vivas
só no fluir contínuo das imagens.
És o ser que não é, o que se nega
em perene devir e rodopio,
a jogar com a luz o desafio
de aparecer tão logo cesse a treva.
Talvez sejas o duplo que se oculta
amargando no fundo da consciência
numa contradição que sempre avulta:
o desejo perene de mudança
mas não, como a do espelho, com carência
do próprio ser, por nunca ter lembrança.

Miguel Reale

21 de outubro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - Ressentimento e Mágoa



2. O Ressentimento e Mágoa no ódio

No ressentimento e na mágoa a relação com o outro é permeada por profundas contradições, desenganos, expectativas, agressões, traições, feridas, maus tratos psicológico e/ou físicos, morte, que sangram durante muito tempo e aquele sentimento de amor, ilusão que poderia florescer, sem a resiliência, transforma-se, em ressentimento, mágoa e ódio. E esse ódio transforma-se na “única forma de conviver” com as feridas. O amor fracassa, o desejo surge da morte do outro. Mas o outro é um outro da liberdade, inapreensível, incognoscível, só possível ser apreendido pelo amor. “O Outro é por princípio; inapreensível: foge de mim quando o busco e me possui quando dele fujo. Mesmo se quisesse agir segundo os preceitos da moral Kantiana, tomando como fim incondicional a liberdade do Outro, esta liberdade iria converter-se em transcendência-transcendida pelo simples fato de ter sido por mim constituída como fim; e, por outro lado, eu só poderia agir em seu benefício utilizando o Outro-objeto como instrumento para realizar esta liberdade. Com efeito, será necessário que eu capte o Outro em situação como um objeto-instrumento; e meu único poder, então, será o de modificar a situação com relação ao Outro e o Outro com relação à situação” (Sartre, p.507). A questão é que uma moral “permissiva”, que subverte a lei simbólica, a “tolerância”, significa menos respeito a liberdade do outro, o que não significa privar o sujeito da livre possibilidade de resistência, da perseverança. É sempre diante do outro que se é culpado. Culpado porque se está refletido no olhar do outro, está-se implicado no outro.

Reparar a culpa, os erros, os equívocos, as injustiças, as agressões, é tarefa árdua, difícil, que exige muita renuncia e autoperdão. Implica em uma mudança de posição em relação a si próprio e em relação ao outro, ou seja, tarefa, que passa por uma reestruturação egóica. Perseguir a morte do outro disfarçada de um socorro, como uma “solução”, para livrar-se desse outro. é uma forma de “livrar-se” do remorso, da culpa e ao mesmo tempo auto mutilar-se com a morte do outro pela mesma culpa e remorso. Essa relação com o outro, possui uma história que transcende o tempo, passou por muitas vicissitudes, e o que “resta” é uma inutilidade ao perseguir a morte do outro. “Esta livre determinação chama-se ódio”. É realizar um mundo onde não exista o outro. A “escolha” pelo ódio é a “escolha” de uma relação consigo próprio pelo ódio, porque para odiar o outro é preciso, que o sujeito sinta ódio por si próprio primeiro. Essa relação consigo próprio, única, circunstancialmente possível, estende-se ao outro. É uma relação pelo negativo, porque o ódio é o negativo, é a relação da “nadificação”. “Aquele que odeia projeta não mais ser objeto de forma alguma; e a ira apresenta-se como um posicionamento absoluto da liberdade do Para-si (da relação) frente ao outro” (Sartre, p.509). A ira rebaixa o objeto odiado, como uma forma de sentir-se “livre” na relação com o outro. Ou seja, um autoengano, pelo qual “pagará” em um tempo não cronológico, um autopreço, que é o remorso e a culpa, pois não existe liberdade no negativo, que é o ódio. O sujeito que odeia se vê, diante do impedimento de compreender a transcendência do outro, que a liberdade do amor. Então só lhe resta destruir esse outro. Se essa morte do outro ocorre no real, ele “conforta-se”, pois a morte no real, acomoda o sujeito em seu ódio, na contextura de negação da lei. Se a morte ocorre no plano simbólico, o sujeito terá diante de si um conflito com seu ódio, ao ser deslocado ou encontrado outros representantes.

Esse gozo perverso do ódio implica em ignorar a transcendência do outro, sua totalidade psíquica. O ódio é de um psíquico revelado ou não. Nem sempre o sujeito sabe a essência de seu ódio. Ele conhece seus representantes. Lembrando que o ódio é uma construção no tempo, mas não em um tempo cronológico, é o tempo da alma, do psiquismo, não é o ódio do aqui e agora.  Nessa construção está uma ferida. O que reveste essa ferida narcísica é o orgulho, a arrogância, a vaidade, a inveja, a vontade de poder, o prazer pelo sofrimento do Outro, que no reverso é o prazer pelo próprio sofrimento. A cura pertence a uma eternidade, fora do tempo cronológico. Se o que reveste essa ferida é um sentimento de humilhação, de dor física e psicológica, de solidão, de abandono, de um desejo não “resolvido”, é possível pensar em uma diferenciação de tempo. Não esqueçamos que a semente do ódio é a mágoa, o ressentimento, a ira, a indiferença. Para quem odeia “há “algo” a ser destruído para que” o sujeito se “liberte”. O ódio é um sentimento sombrio, obscuro, ou seja, um sentimento que visa a supressão de um outro e que, enquanto projeto, projeta-se conscientemente contra a desaprovação dos outros. Desaprovo o ódio que o outro professa em relação a algum outro; tal ódio me perturba, e busco suprimi-lo, porque, embora não se dirija explicitamente a mim, sei que me concerne e se realiza contra mim”(Sartre, p.510). Não há conforto psíquico para aquele que odeia. A inquietude de “ter que suprimir outras consciências”, já é o seu fracasso, porque ainda que pudesse abolir o outro, esse outro foi, existiu, existe em sua transcendência. O que resta então é um desespero de “ser um nada”. 
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)

19 de outubro de 2016

Aproximação é a imagem da terra acima do lago


...a primavera não dura para sempre.

Enfrentando o mal antes de ele se manifestar, antes mesmo de seus primeiros sinais, é possível dominá-lo.

Ao alto, a terra faz fronteira com o lago.

Assim como o lago é inesgotável em sua profundidade, o sábio é inesgotável em sua disposição de instruir os homens. Assim como a terra é ilimitadamente vasta, sustentando e protegendo todas as criaturas, assim também o sábio sustenta e protege todos os homens sem impor limites nem excluir qualquer parte da humanidade.

Quando o estímulo à aproximação vem do alto e o homem possui em seu interior a força e a integridade que tornam prescindíveis as advertências, a boa fortuna se seguirá. Nem deve o futuro ser causa de qualquer preocupação. Ele está consciente de que tudo na terra é transitório e que a cada ascensão segue-se um declínio.

Um sábio, que deixou para trás o mundo, que interiormente já se retirou da vida, pode, em determinadas circunstâncias, decidir voltar mais uma vez a este mundo, aproximando-se dos homens. Isso significa grande boa fortuna para os homens a quem ele instrui e ajuda. Mas também para ele, este ato de magnânima humildade não implica culpa.
I CHING – O livro das mutações – Richard Wilhelm

16 de outubro de 2016

A Contextura psíquica do ódio - O surgimento do “outro”


A Contextura psíquica do ódio 

“Quando o amor acenar, siga-o ainda que por caminhos ásperos e íngremes. Debulha-o até deixá-lo nu. Transforma-o, livrando-o de sua palha. Tritura-o, até torná-lo branco. Amassa-o, até deixá-lo macio; e, então, submete ao fogo para que se transforme em pão para alimentar o corpo e o coração!” Khalil Gibran

O Caminho é o da Paz... É tempo de amar... Esse é um artigo longo, segmentado em seis capítulos e uma síntese: O surgimento do “outro”, O Ressentimento e Mágoa no ódio, A indiferença como expressão do ódio, Masoquismo e Sadismo, O Sadismo como expressão do ódio, O desejo e o ódio e a “Síntese”. Um tema complexo, que diz respeito a civilização atual de forma contundente. É o inicio de uma reflexão que, por muitos séculos, acompanhará a humanidade. É um artigo que ao falar da arquitetura do ódio, reflete em como exterminá-lo do planeta. Tarefa de muitos séculos de evolução no porvir da humanidade. Como o amor vence e vencerá sempre, é preciso desconstruir esse inimigo humano, essa escravidão, que intoxica milhões de vidas e as destrói. Então haverá um tempo que “o amor esfriará do coração dos homens”. A reflexão sobre um sentimento como o ódio, que sempre esteve na história da humanidade, e é constitutiva de forma primitiva, no sujeito, em sua subjetividade, é complexa e por certo há muito que compreender e estudar. Muitos são os enigmas das provações, pelas quais a existência humana se realiza. Para além das importantes leituras sociais, antropológicas sobre a raça humana, temos que pensar no que há de mais complexo em sua constituição, ou seja, seu psiquismo.

1. O surgimento do “Outro”

Na contextura do ódio está um sujeito e um outro, como objeto, que sofre. E esse outro, é colocado no inverso do objeto de desejo. Então o primeiro passo, é pensar a superação dessa contextura através do sentimento de culpa, pois esse possui um lugar importante nas reelaborações do sujeito, representando não só a consciência de algo contrário à lei, como uma tensão entre o ego e o superego. “O ego reage com sentimentos de ansiedade à percepção de que não esteve à altura das exigências feitas por seu ideal, ou superego”. O ego esse conciliador do id, do superego e do consciente, representa o inconsciente e o consciente. Em uma primeira instancia pode-se falar de um masoquismo inconsciente, mas no sadismo, há sempre um saber intuitivo de que o “outro sofre”, pois essa é a fonte do prazer do sádico; comprazer-se no sofrimento do outro. A relação com o outro é mediada pelo corpo, há um corpo, enquanto materialização do significante, em ação.

A relação com o outro é comandada pelas atitudes, com relação ao que, se é para o outro. “E, como a existência do outro revela-me o ser que sou, sem que eu possa apropriar-me desse ser ou sequer concebê-lo, assim o outro me olha e como tal, detém o segredo de meu ser e sabe o que sou”...(Sartre, p. 452). A atitude em relação ao outro, é a experiência do outro, ao mesmo tempo em que se é, a experiência do outro, o que remete ao “ser presença”, “presença” que pode necessariamente implicar em um corpo. A relação com o outro pressupõe uma dialética, que para consumar na morte do outro, deve sair do masoquismo ao sadismo, que alimenta o ódio.

A relação com o outro não é linear, a diferença está na quantidade, qualidade dos impulsos masoquistas. Cada sujeito “detém o segredo do que se é”. Nessa suposta condição “sabe” porque “tem que fazer-se sofrer”, o que é um mínimo de consciência ontológica, que reivindicará a responsabilidade pelo que se é, e o inerente projeto de recuperação, que diz respeito a liberdade de estar saudável.  Assim a insegurança de se diluir pela existência do outro e o outro diluir-se em sua existência, é uma contingência superável e deve ser um ideal realizável na relação com o outro. “Porque iria eu querer apropriar-me do outro não fosse precisamente na medida que o Outro faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação: é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser” (Sartre, p. 457-458). No amor a liberdade enquanto liberdade é deixar-se ser. O amante não deve exigir ser a causa, mas sim como diz Sartre “a ocasião única e privilegiada”. Então se não há uma relação senhor x escravo, próprio da neurose obsessiva em suas diversas variantes, há uma subjetividade, uma “escolha absoluta”, própria de almas similares. O sujeito é linguagem, enquanto pensamento, fala e representações, e essas sempre escaparão. Assim é difícil saber se o que se deseja significar é aquilo que supõe revelar como significante, o que só seria possível pela telepatia.

O masoquismo, esse sofrimento “auto-imposto”, é colocar-se frente a um abismo, pois a subjetividade do outro é um enigma. “O masoquismo, tal como o sadismo, é a assunção de culpabilidade. Sou culpado, com efeito, pelo simples fato de que sou objeto. Culpado frente a mim mesmo, posto que consinto em minha alienação absoluta; culpado frente ao outro, pois dou-lhe a ocasião de ser culpado, ou seja, de abortar radicalmente minha liberdade enquanto tal” (Sartre, 471). Assim o fracasso lhe é inerente, pois o submeter-se ao próprio sofrimento como princípio de prazer, é um “vício” e o vício é um fracasso, ou seja, os recursos psíquicos saudáveis fracassaram. Mas buscar o próprio fracasso faz parte do masoquismo. Continua em: https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2016/10/a-contextura-psiquica-do-odio_21.html
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado)