2. O
Ressentimento e Mágoa no ódio
No
ressentimento e na mágoa a relação com o outro é permeada por profundas
contradições, desenganos, expectativas, agressões, traições, feridas, maus
tratos psicológico e/ou físicos, morte, que sangram durante muito tempo e
aquele sentimento de amor, ilusão que poderia florescer, sem a resiliência,
transforma-se, em ressentimento, mágoa e ódio. E esse ódio transforma-se na
“única forma de conviver” com as feridas. O amor fracassa, o desejo surge da
morte do outro. Mas o outro é um outro da liberdade, inapreensível,
incognoscível, só possível ser apreendido pelo amor. “O Outro é por
princípio; inapreensível: foge de mim quando o busco e me possui quando dele
fujo. Mesmo se quisesse agir segundo os preceitos da moral Kantiana, tomando
como fim incondicional a liberdade do Outro, esta liberdade iria converter-se
em transcendência-transcendida pelo simples fato de ter sido por mim
constituída como fim; e, por outro lado, eu só poderia agir em seu benefício
utilizando o Outro-objeto como instrumento para realizar esta liberdade. Com
efeito, será necessário que eu capte o Outro em situação como um
objeto-instrumento; e meu único poder, então, será o de modificar a situação
com relação ao Outro e o Outro com relação à situação” (Sartre, p.507). A
questão é que uma moral “permissiva”, que subverte a lei simbólica, a
“tolerância”, significa menos respeito a liberdade do outro, o que não
significa privar o sujeito da livre possibilidade de resistência, da
perseverança. É sempre diante do outro que se é culpado. Culpado porque se está
refletido no olhar do outro, está-se implicado no outro.
Reparar a
culpa, os erros, os equívocos, as injustiças, as agressões, é tarefa árdua,
difícil, que exige muita renuncia e autoperdão. Implica em uma mudança de
posição em relação a si próprio e em relação ao outro, ou seja, tarefa, que
passa por uma reestruturação egóica. Perseguir a morte do outro disfarçada de
um socorro, como uma “solução”, para livrar-se desse outro. é uma forma de
“livrar-se” do remorso, da culpa e ao mesmo tempo auto mutilar-se com a morte
do outro pela mesma culpa e remorso. Essa relação com o outro, possui uma
história que transcende o tempo, passou por muitas vicissitudes, e o que
“resta” é uma inutilidade ao perseguir a morte do outro. “Esta livre
determinação chama-se ódio”. É realizar um mundo onde não exista o outro.
A “escolha” pelo ódio é a “escolha” de uma relação consigo próprio pelo ódio,
porque para odiar o outro é preciso, que o sujeito sinta ódio por si próprio
primeiro. Essa relação consigo próprio, única, circunstancialmente possível,
estende-se ao outro. É uma relação pelo negativo, porque o ódio é o negativo, é
a relação da “nadificação”. “Aquele que odeia projeta não mais ser objeto
de forma alguma; e a ira apresenta-se como um posicionamento absoluto da
liberdade do Para-si (da relação) frente ao outro” (Sartre, p.509). A ira
rebaixa o objeto odiado, como uma forma de sentir-se “livre” na relação com o
outro. Ou seja, um autoengano, pelo qual “pagará” em um tempo não cronológico,
um autopreço, que é o remorso e a culpa, pois não existe liberdade no negativo,
que é o ódio. O sujeito que odeia se vê, diante do impedimento de compreender a
transcendência do outro, que a liberdade do amor. Então só lhe resta destruir
esse outro. Se essa morte do outro ocorre no real, ele “conforta-se”, pois a
morte no real, acomoda o sujeito em seu ódio, na contextura de negação da lei.
Se a morte ocorre no plano simbólico, o sujeito terá diante de si um conflito
com seu ódio, ao ser deslocado ou encontrado outros representantes.
Esse gozo
perverso do ódio implica em ignorar a transcendência do outro, sua totalidade
psíquica. O ódio é de um psíquico revelado ou não. Nem sempre o sujeito sabe a
essência de seu ódio. Ele conhece seus representantes. Lembrando que o ódio é
uma construção no tempo, mas não em um tempo cronológico, é o tempo da alma, do
psiquismo, não é o ódio do aqui e agora. Nessa construção está uma
ferida. O que reveste essa ferida narcísica é o orgulho, a arrogância, a
vaidade, a inveja, a vontade de poder, o prazer pelo sofrimento do Outro, que
no reverso é o prazer pelo próprio sofrimento. A cura pertence a uma
eternidade, fora do tempo cronológico. Se o que reveste essa ferida é um
sentimento de humilhação, de dor física e psicológica, de solidão, de abandono,
de um desejo não “resolvido”, é possível pensar em uma diferenciação de tempo.
Não esqueçamos que a semente do ódio é a mágoa, o ressentimento, a ira, a
indiferença. Para quem odeia “há “algo” a ser destruído para que” o sujeito se
“liberte”. O ódio é um sentimento sombrio, obscuro, ou seja, um sentimento que
visa a supressão de um outro e que, enquanto projeto, projeta-se
conscientemente contra a desaprovação dos outros. Desaprovo o ódio que o outro
professa em relação a algum outro; tal ódio me perturba, e busco suprimi-lo,
porque, embora não se dirija explicitamente a mim, sei que me concerne e se
realiza contra mim”(Sartre, p.510). Não há conforto psíquico para aquele que
odeia. A inquietude de “ter que suprimir outras consciências”, já é o seu
fracasso, porque ainda que pudesse abolir o outro, esse outro foi, existiu,
existe em sua transcendência. O que resta então é um desespero de “ser um
nada”.
(Referências
na Síntese do artigo, quando for publicado)
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