O inconsciente. “É a parte obscura, a parte inacessível de
nossa personalidade; o pouco que sabemos a seu respeito aprendemo-lo de nosso
estudo da elaboração onírica e da formação dos sintomas neuróticos, e a maior
parte disso é de caráter negativo e pode ser descrita somente como um contraste
com o ego. Abordamos o id com analogias; denominamo-lo caos, caldeirão cheio de
agitação fervilhante. Descrevemo-lo como estando aberto, no seu extremo, a
influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades instintuais que
nele encontram expressão psíquica; não sabemos dizer, contudo, em que
substrato. Está repleto de energias que a ele chegam dos instintos, porém não
possui organização, não expressa uma vontade coletiva, mas somente uma luta
pela consecução da satisfação das necessidades instintuais, sujeita à
observância do princípio de prazer. As leis lógicas do pensamento não se
aplicam ao id, e isto é verdadeiro, acima de tudo, quanto à lei da contradição.
Impulsos contrários existem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que
um diminua o outro: quando muito, podem convergir para formar conciliações, sob
a pressão econômica dominante, com vistas à descarga da energia. No id não há
nada que se possa comparar à negativa e é com surpresa que percebemos uma
exceção ao teorema filosófico segundo o qual espaço e tempo são formas
necessárias de nossos atos mentais. No id, não existe nada que corresponda à
ideia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo, e — coisa muito
notável e merecedora de estudo no pensamento filosófico... nenhuma alteração em
seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de
desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram
mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se
passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser
reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e
ser destituídos de sua catexia de energia, quando tornados conscientes pelo
trabalho da análise, e é nisto que, em grande parte, se baseia o efeito
terapêutico do tratamento analítico” (Freud, p. 79)
A barbárie que reina no
inconsciente diz respeito às marcas mnêmicas. É fato que o inconsciente é a
parte obscura do nosso psiquismo, mas não inacessível. Essa acessibilidade
dar-se pelo autoconhecimento em um tempo e espaço não cronológico. A cada sujeito
o tempo de sua alma. A cada sujeito os recursos e caminhos particulares. Porque
o que se conhece em sua grande maioria está no negativo? Por que na história da
humanidade todos temos sangue nas mãos, sejam por quais ascendências vividas.
Se é um contraste com o ego, o inconsciente ser um “caldeirão fervilhante”, há que lembrarmos que no prefácio de Jung
para a tradução do I Ching – O Livro das Mutações tradução de Richard Wilhelm o
caldeirão possui alimento espiritual profundo, só acessível através do
autoconhecimento. Conhecendo-se, conhece-se o próprio mundo, a própria
essência, o mundo, que se vive, viveu ou vai viver. Assim falar do
inconsciente, uma instancia da mente atemporal e a-espacial é falar de
sincronicidade. “para a sincronicidade, a
coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que
mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos
entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou
observadores” (Prefácio Jung – I Ching). Se o I Ching “descreve
a si próprio como um caldeirão, isto é, como um recipiente de ritual contendo
comida preparada. Deve-se entender comida, aqui, como alimento espiritual.
Wilhelm diz a respeito”: "O Ting, enquanto um utensílio pertencente a uma
civilização refinada, sugere o cuidado e a alimentação dos homens capazes, o
que resulta em benefício da nação... Aqui a cultura atinge sua culminância na
religião. O Ting serve para a oferenda de sacrifícios a Deus. Os mais elevados
valores terrenos devem ser oferecidos em sacrifício a Deus... A suprema
revelação de Deus encontra-se nos profetas e nos santos. Venerá-los é, na
verdade, venerar a Deus. Os desígnios de Deus, manifestados através deles,
devem ser aceitos com humildade". (Prefácio Jung – I Ching), Há que
refletirmos que o inconsciente como caldeirão, é repleto de alimento, acessível
a poucos guerreiros corajosos, que se aventuram a penetrá-lo, acessá-lo e beber
dos ensinamentos de seus conteúdos e a curar suas feridas ou fazer as reparações
necessárias à lei. Como diz Jung quando a “tristeza
pela perda da sabedoria” tiver cessado, então nos aventuraremos nessa
viagem incomum do autoconhecimento fora do tempo.
Sempre recorremos ao inconsciente
quando não encontramos outra saída. Seja que nome damos a esse inconsciente ou
o que nos religa a esse inconsciente. Podemos falar que o inconsciente possui
argolas de jade e “o jade se distingue
pela sua beleza e suave brilho... nos sonhos e nos contos de fadas, a avó, ou
ancestral, frequentemente representa o inconsciente, pois esse último, no
homem, contém o componente feminino da psique. Se o I Ching não é aceito pelo
consciente, pelo menos o inconsciente, em parte, o aceita”. (Prefácio Jung – I Ching). Se o
inconsciente o aceita é por que algo há que ainda não é permitido ao consciente
ter acesso. “Na exploração do
inconsciente deparamos com coisas muito estranhas, das quais um racionalista se
afastaria com horror, afirmando, depois, que nada viu. A plenitude irracional
da vida ensinou-me a nunca descartar nada, mesmo quando vão contra todas as
nossas teorias (que mesmo na melhor das hipóteses têm vida tão curta) ou quando
não admitem nenhuma explicação imediata. Naturalmente isso é inquietante e não
sabemos, com certeza, se a indicação da bússola está correta ou não, porém a
segurança, a certeza e a paz não conduzem a descobertas” (Prefácio Jung – I
Ching). O que conduz a paz é o
caminho do autoconhecimento, que implica na compreensão do sentido de todas as
coisas vivenciadas e de todos os fenômenos que acontecem no percurso da psique,
da alma ou como queiram da mente, da consciência, da vida, da renuncia das
contingências egoicas. Pois o fortalecimento da essência se dá pela renuncias
às contingências do ego.
Referências
FREUD, S.. - CONFERÊNCIA XXXI – (1933[1932]) - Obras
Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
JUNG C.G. - PREFÁCIO - I Ching - O livro das Mutações – Tradução de Richard
Wilhelm. Tradução para o português Alayde
Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto – São Paulo – Ed. Pensamento 2006.
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