19 de junho de 2017

Vida e Morte é um ciclo - Freud e Empédocles de Acragas

  
"Afinal de contas, presumimos que, no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia. Estou prontíssimo a ceder o prestígio da originalidade em favor de tal confirmação, em especial porque nunca pode ficar certo, em vista da ampla extensão de minhas leituras nos primeiros anos, se aquilo que tomei por uma nova criação não constituía um efeito da criptoamnésia."
"Empédocles de Acragas (Girgenti), nascido por volta de 495 a.c., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa. Capelle compara-o ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias devem inevitavelmente impressionava coisas pela mistura dos quatros elementos, a terra, o ar, o fogo e a água. Sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do conhecimento ideias modernas, como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso  nessa evolução."
"Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância."
"O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de amor e discórdia. Desses dois princípios — que ele concebeu como sendo, no fundo, “forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente” —, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz, derrota seu parceiro."
"Os dois princípios fundamentais de Empédocles são, tanto em nome (amor e discórdia) quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe, não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão dos componentes instintuais. (o materialismo) Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o núcleo de verdade contida na teoria de Empédocles se apresentará à compreensão posterior."

A despeito das incursões materialistas, próprio da época em que escreveu, porque remontou Freud pela gênese da filosofia grega, pela via de Empédocles de Acragas para falar não só da alma, mas o que é surpreendente da sobrevivência desta?

Para Empédocles não existe nascimento e morte. O nascer e o morrer, diz respeito ao misturar-se e dissolver e nesse sentido aos quatro elementos divinos, água, ar, terra e fogo, que ele designava como a raiz de todas as coisas, sendo esses quatro elementos inalteráveis, apesar de ter a capacidade de separar-se. Assim surge o conceito de elementos, que “unindo-se dão origem a geração das coisas e, separando-se, dão origem a sua corrupção” (Reale e Antiseri, p.60), e para ele a causa da união seria o amor e da separação o ódio. “Tais forças, segundo uma alternância, predominam uma sobre a outra e vice-versa por períodos de tempo constantes, fixados pelo destino”...(Reale e Antiseri, p.60). Diz Empédocles: “Mas era igual por toda parte e por tudo infinito, Esfero redondo, que goza de sua envolvente solidão”. Se para Empédocles o universo é uma oscilação das forças de agregação do amor e desagregação do ódio, só haverá equilíbrio na constituição do Esfero. “Das coisas e seus poros, saem eflúvios que atingem os órgãos dos sentidos, de modo que as partes semelhantes dos nossos órgãos reconhecem as artes semelhantes dos eflúvios provenientes das coisas; o fogo conhece o fogo, a água conhece a água  e assim por diante (na percepção visual, porém, o processo é inverso, pois os eflúvios partem dos olhos, entretanto, permanece o princípio de que o semelhante conhece o semelhante)”( Reale e Antiseri, p.61). E assim é citado Empédocles: “Com a terra percebemos a terra, com a água, a água; com o éter, o éter divino; com o fogo, o fogo destruidor; com o amor, o amor; com a Contenda, a contenda dolorosa”. Para Empédocles Deus é o Esfero, e a alma do homem constituída de forças cósmicas. Em função de seus erros, vícios e culpa está na roda das reencarnações até expiar o último centil. Reale cita um de seus poemas:
“Também eu sou um desses,
errante e fugitivo dos deuses,
porque confiei na furiosa Contenda...
Porque um dia fui menino e menina,
arbusto e pássaro e mudo peixe do mar...”

Dessa forma é genial que Freud por outras vias e vielas acessa o “inacessível” para a ciência: a alma e sua imortalidade, como ele mesmo diz, sobre a dificuldade de acreditar não somente na concepção de que o instinto de morte reivindica “iguais direitos como sócio de Eros”, mas sem tocar na questão, principalmente para a psicanálise nascente, é possível supor que ele inconscientemente intuía, que a vida e a morte, não só não existe, mas faz parte de um ciclo de evolução da matéria e da alma, ou da psique, como queiram. Mesmo aquilo que aparentemente se configura como um caos está a serviço de um propósito maior, ou seja, da lei, harmonia e equilíbrio. É energia pura que vibra em diversas frequências. É assim que quando observamos um vulcão com suas labaredas e magmas a correr em direção ao mar, vemos que os quatro elementos divinos misteriosamente fluem unidos, não se combatem, mas cada um contribui com sua essência, para que algo novo surja, na sequencia de um propósito maior, isso com certeza encantou Freud e continua a nos encantar; essa harmonia da natureza, da nossa natureza e do universo.

Referências
FREUD, S. - ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937) Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
Reale, G. e Antiseri, D. – HISTORIA DA FILOSOFIA – Volume I – 2ª Edição – São Paulo, Paulinas, 1990

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