21 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica – A caminho da lei


https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2017/08/o-veu-da-direcao-clinica-sem-lei-so.html A questão que se coloca é: o que deseja o sujeito que busca a análise? Deseja contornar seus sintomas e encontrar melhores recursos para manter sua patologia e seus sintomas, deseja pequenas reformas e roupagens para manter o véu de sua existência, ou somente um socorro imediato de descarga, para continuar com sua patologia? Quem realmente deseja percorrer o caminho do autoconhecimento profundo do ego, de sua essência e existência? É um movimento difícil, que o moverá do lugar, pois muito são as resistências, que o impedem a uma determinação pelo autoconhecimento, pois ainda existe um gozo no sofrimento, mesmo que seja alimentado pela revolta, ressentimento, mágoa e ódio. Ou seja, há esgotado a capacidade de transformação, a plasticidade psíquica para uma resinificação. Mesmo quando a resistência possui alguma plasticidade, encontra-se, ante o desvelar de “novos caminhos para um impulso instintual”, alguma “inércia psíquica”, uma interrogação do inconsciente, consequência de suas associações, de algo profundo, não vivenciado, ou esquecido, se é compensador o gasto e investimento de energia para novos caminhos, tidos como desconhecidos. Essas forças instintuais profundas se aferram contra a cura, o restabelecimento do equilíbrio psíquico, até serem esgotadas as energias que as alimentam. Dentre essas energias estão os afetos já mencionados acima, aos quais incluímos o sentimento de culpa, autopunição, o masoquismo, que nos remete ao “principio do prazer”. Ou seja, se o sofrimento é o que causa prazer, é porque o sujeito se automutila. “Não há (luz) esperança no final do túnel”, pois morrer ou viver na escuridão “é a alternativa que ficou, pois perdeu todos os objetos de amor”, naquilo que é sua compreensão. Há que tocar com a luz suave, a primeira fissura que houver na desesperança e assim construir o doloroso caminho para a lei.

Durante toda a vida e durante a análise o sujeito estará sempre se debatendo e desprendendo um gasto de energia entre o instinto de morte e o instinto de vida. O exemplo mais contundente sobre as forças ocultas da alma está na frase de Freud: “No momento, temos de nos curvar à superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços redundar em nada. Mesmo exercer uma influência psíquica sobre o simples masoquismo constitui um ônus muito severo para nossos poderes” (1937). São conflitos a curto e médio prazo irreconciliáveis, que geram agressividade, que uma vez internalizada, demanda retorno e pacificação. Então há que realizar uma incursão epistemológica, pois para uma concepção materialista a análise pode ter um fim. Então, que a análise possa ter um “fim” é aceitável em uma concepção materialista. Mas é um imperativo categórico que o autoconhecimento pertença à eternidade da alma. Até onde é possível aprofundar a análise diz respeito à evolução psíquica de cada sujeito. Uma questão é assertiva: é muito difícil o sujeito entrar em análise e possuir o firme desejo de vasculhar os “porões” de seu inconsciente de forma indeterminada. O que se vê, na esmagadora maioria, é um discurso refratário, inconsistente no que diz respeito ao autoconhecimento e ao percurso do próprio inconsciente, ao seu lado obscuro.

No mundo material deseja-se os objetos do mundo material e o inconsciente não é um objeto material. Mesmo quando se fala de autoconhecimento através de uma escolha espiritual, é possível interrogar: como é possível conhecer o mundo imaterial, se nem a se próprio o sujeito possui a pretensão de conhecer. De intuir o porquê de sua existência, suas causas e consequências, porque é difícil se implicar, assumir as responsabilidades pelo desejo de viver aquilo que o danifica, que subverte a lei. Não é nosso objetivo aqui discorrer sobre a saúde mental do analista, mas é possível inferir, que todos têm suas constituições, tragédias pessoais, que se supõe razoavelmente “resolvidas”, no sentido de interferir o mínimo na relação de transferência, no diagnóstico diferencial e na direção clínica. “É, portanto, razoável esperar de um analista, como parte de suas qualificações, um grau considerável de normalidade e correção mental” (Freud, 1937). Então primeiro o analista precisa ser verdadeiro para consigo próprio, no que diz respeito às suas fraquezas, para então ser verdadeiro na condução analítica, ou seja, para que sua prática não seja enganosa e antiética. Em todas as profissões existem profissionais, cujo único objetivo do fazer profissional é o próprio ego e seus desejos pessoais, com o analista não é diferente. Há que separar o joio do trigo. O somatório formação acadêmica, desenvolvimento intelectual, análise pessoal, experiência profissional, espírito cientifico, desenvolvimento moral e espiritual, pois ele precisa se religar com o planeta e o universo sem misticismo são imperativos categóricos.

É nesse sentido que Freud é muito feliz quando interroga: “Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios às implicações e as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência crítica e corretiva da análise. “Tal acontecimento poderia justificar as palavras do escritor que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal” (Freud, 1937). Então tarefa interminável, em primeira instancia, é a análise do analista. A análise é um caminho de autoconhecimento das profundezas do inconsciente, porque a parcela do inconsciente que se torna consciente é o aprendizado que se conquista na existência e os conteúdos inconscientes advindos de memórias ancestrais revelados, e os conflitos dos desejos que estão “fora da lei”, que demandam cura. Possibilitar um começo de reintegração do ego, uma incorporação do ego uno, a caminho da evolução da psique, da alma é tarefa individual, mas do sujeito inserido na lei universal em que vive e não há lembrança que facilite o aprendizado, pois para lembrar é necessário crucificar os sofrimentos, e isso é tarefa da eternidade. 

Embora seja importante considerar a disposição hereditária, essa não pode ser uma regra infalível, pois apesar de em sua grande maioria, os similares estão em uma mesma cadeia evolutiva, há exceções que podem se destacar e as pesquisas na biologia assim o revelam. Não seria diferente na vida da psique, da alma. Não é possível anular o que pertence ao passado, pois sem conhecer o passado, não se compreende o presente e não se projeta o futuro. Compreender o passado é compreender as frustrações, os medos, a pobreza, a falta de amor, os infortúnios, as dissensões familiares, a solidão, as escolhas que trouxeram sofrimento no trabalho, no casamento, nas relações, as tragédias familiares, a promiscuidade, sentimentos como arrogância, inveja, vaidade, culpas, remorso, o preconceito, as perdas, a própria escravidão. A análise é arena, onde esses monstros irão se defrontar. Ante a complexidade das mazelas humanas, há que acolher acalentar, para caminhar um passo de cada vez. Assim “tornar consciente o que é inconsciente, remover as repressões, preencher lacunas da memória” é o começo para uma direção, em um caminho de equilíbrio. Isso não significa interrogar o que seria, se determinada constituição, circunstancias e desvios no curso do desenvolvimento não se efetivassem, pois tudo é aprendizado, evolução de consciência. E a consciência evolui, quando aumenta o conhecimento dos conteúdos inconscientes, possibilitando o caminho de reconciliação com a lei.

O processo analítico pode aproximar-se da raiz dos fenômenos, quando rastreia a repetição dos mesmos. Tarefa árdua, dolorosa, pois mesmo identificado essas raízes, nem sempre é possível levá-las a interpretação, se não houver demanda. Não que a demanda “resolva”, mas pode ser um inicio possível, mas nem sempre de execução, pelos danos que a resistência do ego (é uma anticatexia) impõe a repressão desses conteúdos mesmo nas estruturas neuróticas. Em estruturas mais complexas como as psicoses e perversões os conteúdos inconscientes são inacessíveis em função do afastamento ou negação da realidade, é como se o inconsciente invadisse o consciente, cujo discurso indica uma consciência “apagada”, “inexistente”, a ser reconstruída. O progresso inicial mostrar-se-á com o tempo, enganoso, se algo do real for explícito e o sentimento de remorso, não for possível de ser sustentado pelo ego. Então possivelmente poderemos ter o início de uma relação de transferência negativa do analisando para com o analista. Mas esse sentimento é a transferência de sentimento abrigada no inconsciente do paciente. O analista por determinado tempo é o substitutos de objetos diversos, a serem resinificados. “Uma transferência está presente no paciente desde o começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu progresso” (Freud, Conferência XXVII). A transferência hostil em relação ao analista é mais permeável a determinadas estruturas psíquicas fora do campo das neuroses, nas que pode revelar-se nesse, no percurso da analise, como traços que os atravessam, constituindo uma ambivalência emocional.

A complexidade em falar de análise terminável e interminável está na imensa arquitetura de sentimentos que envolvem o percurso analítico, no que diz respeito ao próprio sujeito e seus sentimentos hostis, que representam um vinculo afetivo patológico com sua história e na relação transferencial com o analista. Nem sempre é possível identificar a origem dos sentimentos do sujeito, por mais intensa, que seja a livre associação, a interpretação e o recuo no tempo. Algo fica de incógnita sobre acontecimentos, fenômenos, traumas, conflitos que são em determinado momento inapreensíveis, mas que retornam como repetição. As faces patológicas do sujeito podem estar lodosamente “estacionadas”, e por assim estarem, seus referenciais de saúde mental comprometidos, mas esses estados lodosos, vez por outra movimentam, vibram-se, o que significa que é possível, que uma réstia de luz se adentre, permitindo um pequeno movimento. Assim nesse percurso “a transferência pode ser comparada à camada do câmbio de uma árvore, entre a madeira e a casca, a partir do qual deriva a nova formação de tecidos e o aumento da circunferência do tronco” (Freud,). Se a troca de casca da árvore produz diversos produtos a vida e realimenta o ciclo da natureza, ao tempo que renova a árvore, mantendo inexorável  as leis da natureza, o movimento lembrança-esquecimento possui, apesar de ser, uma dialética de defesa é antes de tudo uma provação a ser vencida. A compreensão interna do sujeito em análise, seus insights, seu raciocínio sobre si mesmo e sua determinação de “cura”, não só dos traumas, mas de suas questões egoicas, narcísicas, são movimentos importantes, que geram uma energia que permite ascendências sobre si mesmo. A análise termina em um não tempo, quando os ciclos terminam e novos começam. Então estamos submetidos à lei do cosmo de mudança, evolução contínua. A estabilidade está submetida a lei do movimento, onde é imperativo que todos os seres no universo, de não só transformarem-se, mas transmutarem-se. Essa é a lei da frequência de energia do amor.
  
Referências
FREUD, S. - ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937)  - Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVII - TRANSFERÊNCIA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVIII - TERAPIA ANALÍTICA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXI – A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA (1933[1932]) - Obras Completas de Psicanálise - volume XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXIV - EXPLICAÇÕES, APLICAÇÕES E ORIENTAÇÕES (1933[1932])  - Obras Completas de Psicanálise - volume  XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.

14 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica - Sem a lei só existe o caos.


“Sabemos que o primeiro passo no sentido de chegar ao domínio intelectual de nosso meio ambiente é descobrir generalizações, regras e leis que tragam ordem ao caos”.

https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2017/08/o-veu-da-direcao-clinica-como-viver-o.html Por maior comprometimento que o sujeito tenha com sua análise, no sentido de “vasculhar” seu inconsciente, sempre haverá resíduos, mais profundos, que ele não consegue acessar em determinado momento, seja pela falta de amadurecimento do ego, seja pela falta de conexões mnêmicas ou porque está fora do tempo. Cada fase do percurso de desenvolvimento do sujeito é uma provação a vencer. Daquilo que é constitucional, muitos são os resíduos que permanecem nas fases seguintes na história do sujeito, de sua ancestralidade e da humanidade. Por isso “o que um dia veio à vida, aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos” (Freud, 1937). É possível afirmar que, não, na atual existência no planeta. Portanto muito de conteúdos mnêmicos, ficarão intocados a espera de arqueólogos de consciências distendidas, que viabilizem ir mais profundo nas escavações. Assim, o que freia a análise? A resistência, que advém da força dos instintos. Se o ego está aferrado aos instintos, no percurso da análise, esse ego irá amadurecer, na perspectiva do equilíbrio com seus instintos, mas é possível que a força dos instintos, demande um tempo do inconsciente para ser mantido sob controle do ego, e assim reelaborado, para que o ego não se desespere, diante da força dos instintos. O conflito, expressa-se pelo sintoma. É possível que determinado sintoma não possa ser tratado de forma profunda em determinado momento, seria como arrancar algo que está incrustado no sujeito e que necessita ser drenado de forma lenta. “A advertência de que deixemos repousar os cães a dormir, que com tanta frequência ouvimos em relação a nossos esforços por explorar o submundo psíquico, é peculiarmente despropositada quando aplicada às condições da vida mental, pois, se os instintos estão provocando distúrbios, isso é prova de que os cães não estão dormindo, e, se eles realmente parecem estar adormecidos, não está em nosso poder despertá-los” (Freud, 1937). Eles irão despertar quando um movimento de energia, possibilitar o descolamento daqueles sentimentos que estão incrustados, consumindo a energia do sujeito, sem que esse se dê conta. Desta forma a direção clínica implica, em sinalizar a possibilidade de sua existência, o que implica primeiro em está advertido, do quanto de angústia o sujeito suporta nessa relação transferencial.

A condução clínica situa-se nos sofrimentos imediatos do sujeito, mas há que está advertido das implicações destes com conflitos instintuais inconscientes. Deixar ao destino, sem adverti-lo é incorrer em um erro ético, pois há que esperar o tempo para vê-los se desvelar. Nos momentos de crise a análise acolhe, escuta e possibilita um fortalecimento do ego, para que as supostas causas dos sintomas possam ir sendo reveladas. Adentrar o inconsciente requer a intuição de um tempo não cronológico. Portanto cabe apenas familiarizar o sujeito com possíveis conflitos adormecidos, esquecidos, sem prejudicar a relação transferencial, embora esta familiaridade irá atentar-se apenas, aqueles que tenham um dispêndio menor de angústia.  Em primeira instancia a análise se dá no plano da matéria, em sua abordagem com o ego, mas avança, quando acerca-se dos conteúdos inconscientes, revelando-os a luz do entendimento de sua essência, suas causas e consequências ou sintomas. É aqui que o sujeito vislumbra suas transgressões instintuais à lei. Mas há que se ater em um primeiro momento a uma cooperação com o ego. Se nas estruturas neuróticas essas questões já se revelam penosas para o sujeito, nas estruturas psicóticas e perversas essa cooperação é quase inexistente, pois ela é manipulada pelo próprio ego, há uma sinergia, uma cumplicidade do sujeito com sua obscuridade. O ego manipula a si próprio, fechando as vias de acesso transferencial. Então somente através de penoso sofrimento em um tempo que não é cronológico, em um tempo que nos é inacessível, essas estruturas vislumbrarão um clarão, para a demanda de uma abordagem, porque para além da dor que abriga a estrutura, há a dor de rever a estrutura. Então é uma dor que se sobrepõe. E dor que se sobrepõe não pertence a nosso tempo cronológico. Para tratar no campo da ciência há que existir um “corte epistemológico”.

Sempre abordamos as estruturas clínicas, visualizando-as não de forma pura, o que seria ingenuidade na direção clínica. O sujeito é constituído de um traçado psíquico, que abordamos, quando em outros artigos falamos acerca de “arquitetura psíquica”. “Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psicótico num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu afastamento de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra nos fornecerá uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de ‘alteração do ego’” (Freud, 1937). É exatamente a extensão em termos de quantidade e qualidade da energia envolvida (absorvida e liberada), que se iniciará o processo de uma saúde psíquica. A questão é quanta força dos instintos o ego suporta em busca de seu equilíbrio. O que e quanto de renúncia está “disposto” a elaborar, viver. Porque aquilo que é adquirido, é por assim dizer, fácil. Mas o que é constitucional é complexo. Mas é possível supor que o constitucional em sua ancestralidade já foi circunstancial e adquirido. Se no que é adquirido o ego tem que lutar como mediador, entre o inconsciente e os perigos do mundo externo, como se conduzirá ante os perigos abrigados no inconsciente? Poderá tratá-los como perigos externos. Então temos uma guerra interna, em uma terra que precisa haver lei, e o superego terá que viabilizar isso. E se os conflitos forem de ordem constitucional, que recursos estarão a disposição do ego, nessa luta entre as exigências do mundo externo e as exigências instintuais no inconsciente, que são tomada como exigências externas, ou seja, uma guerra de grandes proporções, que a análise não dá conta. É o choque de uma demanda externa, que é subjetivada pelo sujeito e uma demanda instintual, inconsciente, que é tida como externa. Esse choque de energias causa o desequilíbrio psíquico, que delineia as estruturas psíquicas.

Então delineia-se três saídas para o ego: negar o real, e assim ignora  a lei; dominar o perigo interno antes que se torne externo, o que vai demandar uma “eficiência” do superego, ou reprimir as demandas internas. Mas não devemos esquecer que o recalcado sempre retorna, como mecanismos de defesa, pois não há saída para repressão pura e simplesmente dos instintos. Essa manipulação do ego sobre seus conteúdos inconscientes pode levá-lo a negar esses conteúdos, mascará-los, substituí-los, agregando a esses outros conflitos de forma que se mesclem e torne mais difícil separá-los. Podendo torná-los em determinado momento inteligíveis, mas o retorno seja do que for como reprimido é inexorável. Mas por um momento a inexorável verdade é sacrificada em função do princípio do prazer. Por mais que o ego afaste suas verdades “não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio contra perigos internos”. É dessa forma, através dos mecanismos de defesa que o ego fornece uma imagem falseada do próprio sujeito, tornando-o cego a si próprio. Muitas vezes o “preço a ser pago” em uma existência pela “escolha” de determinados mecanismos de defesa pela essência do sujeito é alto e poderá lhe custar o fracasso de sua jornada. O dispêndio de energia psíquica é grande e inócua porque esses mecanismos de defesa aferram-se ao seu ego e “retirá-los” é como desgrudar uma sanguessuga. A marca ficará por longo tempo. Como no universo o que não nos falta é tempo, cada sujeito pelo seu fazer diário delineará o tempo de autonomia da consciência de si. Mas o custo desse tempo, isso sim, é penoso.

A jornada só pode ser transformada depois de muitas repetições. Assim as primeiras experiências da infância, desde a gestação, que foram fonte de conflitos, sofrimentos, repetem-se indefinidamente somados a outros conflitos, sofrimentos, numa sucessão que demanda cura, e só se esgota, quando a última cicatriz for desfeita. É por isso que o ego está sempre se autoenergizando para repetir e superar, curar. Por isso vemos sujeitos adultos, supostamente maduros, com repetições que remetem a infância a instintos primitivos que enfraquecem o ego, dificultando a caminhada, pois para transcender ao ego é necessário fortalecê-lo, ou seja, que a essência readquira sua força original. O trabalho de análise visa não só fortalecer o ego, no que ele explicita do inconsciente, mas fortalecê-lo para que ele enfrente primeiro sua obscuridade, o que “está escondido no id”. O “trabalho terapêutico oscila como um pêndulo, entre um fragmento de análise do id e um fragmento de análise do ego”. Ao tempo que intervimos nos conteúdos do id, no outro, a demanda do ego imprime outro ritmo. “O efeito terapêutico depende de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da palavra) no id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante interpretações e construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não para o paciente, enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não abandona suas resistências” (Freud, 1937). Poder-se-ia dizer que a arquitetura psíquica é tão perfeita, que por maiores esforços e competência do analista, a resistência não cederá espaço a determinados conteúdos inconscientes, se não houver recursos psíquicos constitucionais do sujeito para tal. Portanto há limites para o poder curativo da análise. O que o sujeito pode enfrentar consigo próprio são batalhas, grandes e pequenas, nunca uma guerra com seus instintos primitivos, pois não há tempo cronológico para construção desses recursos e a análise não é o único batalhão a se recorrer. Mas há que se construir vários batalhões, muitos dos quais a civilização moderna perdeu. Pra as batalhas internas é preciso energia, para “dar conta” dos sintomas, superá-los e se reconstruir e ao mesmo tempo drenar os instintos e energias primitivas.

Ao nascer o sujeito já traz em sua psique uma bagagem ancestral, hereditária, que para além das comprovações cientificas, pulsa em sua alma, insight, que ele não consegue explicar. E para isso só há um caminho: o autoconhecimento, o desenvolvimento do intelecto e do espírito que anima a matéria, o “animus”. “O que foi adquirido por nossos antepassados decerto forma parte importante do que herdamos. Quando falamos numa ‘herança arcaica’ geralmente estamos pensando apenas no id e parecemos presumir que, no começo da vida do indivíduo, ainda não existe ego algum. Mas não desprezaremos o ato de que id e ego são originalmente um só; tampouco implica qualquer supervalorização mística da hereditariedade acharmos crível que, mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já estão estabelecidas para ele. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e nações, inclusive em sua atitude para com a análise, não permitem outra explicação. Em verdade, mais do que isso: a experiência analítica nos impôs a convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo, não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária” (Freud, 1937). Na civilização predatória, da velocidade, dos produtos de prateleira, o sujeito é o sujeito do sistema, condicionado e pressionado a resultados rápidos, mas aqui estamos falando do atemporal; é nessa demanda que todo tratamento é longo, pois não é possível suprimir etapas. A árvore se torna árvore, pela semente, e a depender da espécie é centenas de anos cronológicos e isso demanda muita energia, seja de acumulo, de drenagem. Assim a reorganização psíquica diz respeito a lei da consciência, subjetiva, da lei da natureza, universal.

7 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica - Como viver o presente, pensar o futuro, sem conhecer e curar o passado?


Esse artigo se estendeu, e não poderia ser diferente, pois falar do término da análise é também falar da continuidade, é interrogar qual término e qual continuidade. Por uma questão didática abordamos em três tópicos que serão publicados de forma sequencial: 1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”; 2. Sem a lei só existe o caos; 3. A caminho da Lei. 

1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”

 Ao pensar em uma análise terminável e em uma análise interminável, temos que pensar em que tempo estamos e de qual tempo estamos a falar, porque o percurso da análise, do autoconhecimento é algo que diz respeito a um tempo ou a um não tempo. O tempo é o grande limite que se interpõe. A força constitucional dos instintos existe dentro e fora do tempo. Como o inconsciente é atemporal, o que nos defrontamos no tempo, são com as fraquezas do ego. “Terminar a análise” diz respeito a elaborar o instinto de morte, o grande conflito do psiquismo humano, pois ele é o senhor que bloqueia as passagens, para o profundo conhecimento do inconsciente, o que não é ainda possível nessa evolução da humanidade. Há que ressaltarmos que a divisão consciente - inconsciente é meramente didática, pois o que é consciente é o que é revelado. Por instinto de morte compreendemos a força desagregadora e ao mesmo tempo de escape do sujeito. Os sofrimentos psíquicos possuem inúmeras causas, que podem estar, nas categorias de “origem traumática” e “origem constitucional”, embora estas em geral se intercruzem. A questão é em que medida estas irão fazer alterações no ego, como parte do processo de defesa ou como um suposto prazer negativo; em que quantidade de energia e em que qualidade, que comprometa o caráter do sujeito.

Por certo que a análise é um começo primário do autoconhecimento. Portanto há que racionalizar as expectativas, pois começar a falar no sentido de um profundo conhecimento de si mesmo é como andar a beira mar, nas pequenas marolas do mar. Mas o mar profundo está adiante e é preciso aprender a nadar. Muitas vezes um conflito que “foi tratado” retorna  com outra roupagem, em conflitos aparentemente diferentes. Isso nos revela o quão profundo é a essência do nosso eu e das marcas mnêmicas. A relação de transferência com o analista que possibilita uma direção clinica que cada sujeito irá aprender no percurso da análise, deverá possibilitar um estancamento provisório, daqueles conteúdos que possibilitam maior sofrimento. Dificilmente o sujeito que “termina” sua análise estancou a essência de seus conflitos, e tomou posse de seu eu. Não estamos falando de posse do inconsciente. No máximo, ele terá, com muito esforço, fleches de conteúdo inconsciente e os ligará aos sintomas de seus sofrimentos. Podemos interrogar por que alguém que se propõe a um trabalho analítico, mesmo que não seja no sentido de fazer uma pequena “viagem” tangencial em seu inconsciente, levanta resistências tão fortes? Por que ele está aferrado aos seus sintomas, a um padrão de repetição em sua forma de agir, que somente o profundo sofrimento, o remédio amargo, para deslocá-lo desse “lugar de conforto”.  Teoricamente “é mais fácil lidar com o que já se conhece” do que com o desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja ele mesmo. “Vencer” as primeiras resistências revelará até onde o sujeito está disposto a ir à elaboração de seus conflitos.

Para vencer as resistências que vão se interpondo é necessário “fortalecer o ego ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego.” (Freud, 1937 ). Fazer o link de um conflito atual com um conflito do qual o próprio sujeito não se lembra, “não tem a menor ideia que ele existe”, só o sabe intuitivamente, é tarefa árdua. Como a energia que move o sujeito está desconectada em si e para si, ele não consegue fazer as conexões de sua própria existência presente, que dirá do percurso de sua alma. Estabelecida a transferência surge os indícios de relaxamento do conflito atual, mas isso ainda não lança luz sobre seus conflitos passados e suas conexões. A expectativa é que o fortalecimento do ego possibilite ao sujeito lidar com as forças dos instintos, de forma mais elaborada, inseridas na lei simbólica. Então a “queda de braço” entre o fortalecimento do ego e a força dos instintos seria a equação que poderia possibilitar o equilíbrio para aprofundamento ao inconsciente. Mas, infelizmente não é tão simples assim, se é que isso é simples. As forças instintuais que até então mantiveram-se veladas no inconsciente, respaldadas pela resistência, irão revelar-se, de alguma forma, mesmo depois de “encerrada a análise. Lidamos com uma sequencia de tempo, que é o tempo real, cronológico e uma instancia atemporal que é o inconsciente. O inconsciente está fora do tempo, como o concebemos, portanto como falar de análise terminável? Se lembrarmos o tempo cronológico que o sujeito permanece em análise, então diremos que quase nada foi feito.

Mas é preciso lembrar que a análise ou até a o desenvolvimento da capacidade de autoanálise, significa a libertação do sujeito de seus sofrimentos, sintomas, anormalidades, de todos os desejos que estão fora do equilíbrio das forças internas, a margem da lei. Se a provação do nascimento já é por si só enigmática e, portanto esquecida, a possibilidade de manter os sofrimentos ao longo da vida conflui com a demanda da procura da análise, para, inconscientemente, vislumbrar melhores recursos para lidar com seus sintomas e assim não dar um passo à frente, que possibilite a superação dos conflitos internos. Se os sintomas passam a apresentar outra roupagem, o objeto de conflito é transferido “indefinidamente”, como escapes inevitáveis de serem feitos, porque demanda cura. Como é possível falar em fim de análise? O que colocaria a possibilidade de um final seria o resgate das lembranças  fundamentais da trajetória da psique. Mas produzir lembranças não é uma questão fácil. Então ao longo da vida muitas serão as doenças, (sintomas), que o sujeito será acometido em função do ego, por mais fortalecido que estiver não ser capaz de dar suporte a determinadas lembranças. O tempo da análise é complexo. Em geral quando o sujeito se vê diante da possibilidade de uma lembrança importante, uma associação, conexão, vir ao consciente, ele manifesta o desejo de deixar a análise.

Muitas são as questões técnicas que se colocam ao analista, além do profundo percurso de sua própria análise em contraposição a formação teórica nas referências originais e não nos interpretes. Há que considerarmos que apenas a formação psicanalítica universitária é insipiente. Então, a saber, o problema técnico pressupõe uma jornada profissional e pessoal árdua e uma análise pessoal do profissional profunda. Usando de tautologia, o tempo só o tempo vai falar. “Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica. Isso acontece quando duas condições foram aproximadamente preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço. Se se é impedido, por dificuldades externas, de alcançar esse objetivo, é melhor falar de análise incompleta, de preferência a análise inacabada” (Freud, 1937). Mesmo para os sucessos parciais ao longo da análise, muitas vitórias ficarão sem compreensão. Se a causa do sofrimento é constitucional e circunstancial, seus sintomas são mais complexos, e haverá maiores dificuldades ao acesso aos conteúdos inconscientes. Os instintos são, então, fortes, difíceis de ceder a incursões pelo ego, fixando e tornando-se crônicos. Quando, apesar das situações traumáticas, o destino do sujeito não está submetido a duras provações, seu equilibro segue com seu ego estruturado. Mas se essas provações geram uma luta defensiva, que se estrutura com fissuras no ego, então o “termino” de uma análise tem um prognóstico mais distante, de longo tempo, pois as alterações no ego é um dos obstáculos no caminho da cura, naquilo que se define, em um tempo cronológico de vida.

Embora o analista possa com sua experiência, visualizar a estrutura psíquica em questão e levantar as hipóteses dos sintomas, das defesas e estrutura psíquica, estas só poderão ser reveladas pelo sujeito, se este evoluir em seu autoconhecimento de forma a ter insight sobre conteúdos e suas conexões. Portanto se o sujeito não aprofundar seu processo de autoconhecimento, por mais que o analista vislumbre a estrutura e suas conexões, estas muitas vezes ficarão sem uma incursão a interpretação e reelaboração, pois ainda não há demanda para tal. O percurso de uma análise não é linear. Aquilo que se mostra acessível em determinado momento, pode, com o pouco de avanço conseguido, se recrudescer. “Concluído” uma demanda e dado como finalizado um processo analítico, nada inviabiliza que a mesma demanda retorne com outra característica e outros sintomas, então a história anterior e posterior ao reequilíbrio terá que ser retomada. A análise “protege” o sujeito de novos e grandes conflitos circunstanciais, porque esta, o coloca no invólucro da lei simbólica, possibilitando não só o fortalecimento do ego, como as incursões interpretativas. Não consideramos aconselhável despertar um conflito adormecido, se não há demanda do sujeito para tal. Portanto tentar exaurir as possibilidades de uma patologia ou sua cronificação no sentido de impedir uma alteração mais profunda na personalidade é inócuo, pois se não há demanda, muito pouco, ou quase nada pode ser realizado. Se a influência das situações traumáticas não forem tratadas de imediato, enquanto estão vivas na consciência, sem grandes ligações no inconsciente, e a força constitucional do instintos estiverem mais submetidas a lei e as alterações no ego não forem profundas, então teremos a possibilidade de que algo ou grande parte do vivido será superado, curado. Se não o prognóstico de cura coloca-se para um longo tempo ou um não tempo.

Para que a força dos instintos seja circunstancial, deve ser também constitucional, ou então o sujeito já a teria reelaborado. A questão que se coloca é: “É possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?” Não. É possível, com muito esforço “esvaziar” o instinto de sua energia e assim “domá-lo”. Assim será construída uma melhor harmonização com o ego, ou seja, através de um reequilíbrio de energia, o que não implica em um novo desequilíbrio, se a vigilância instintual, não for constante, até sua sublimação. Isso requer o tempo do inconsciente. Por maior que seja a des-energização de um instinto, ele diante das provações da vida pode retornar de forma patológica, se essa des-energização não estiver pautada em um percurso de sublimação. Ele continuará reprimido, demandando a liberação, principalmente se forem reforçados no percurso da vida, por novos sofrimentos. É muito difícil alguma alteração no ego, se os conteúdos inconscientes não foram garimpados, de forma determinada no processo analítico, pois a análise é um caminho de aprendizado para o autoconhecimento. Mas as forças dos instintos são poderosas, portanto há que capacitar o ego a vencê-las, reelaborando-as. Um ego maduro é um ego que caminha para superar seu egocentrismo, e espiritualizar-se no sentido do próprio amor e do amor ao outro.