21 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica – A caminho da lei


https://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2017/08/o-veu-da-direcao-clinica-sem-lei-so.html A questão que se coloca é: o que deseja o sujeito que busca a análise? Deseja contornar seus sintomas e encontrar melhores recursos para manter sua patologia e seus sintomas, deseja pequenas reformas e roupagens para manter o véu de sua existência, ou somente um socorro imediato de descarga, para continuar com sua patologia? Quem realmente deseja percorrer o caminho do autoconhecimento profundo do ego, de sua essência e existência? É um movimento difícil, que o moverá do lugar, pois muito são as resistências, que o impedem a uma determinação pelo autoconhecimento, pois ainda existe um gozo no sofrimento, mesmo que seja alimentado pela revolta, ressentimento, mágoa e ódio. Ou seja, há esgotado a capacidade de transformação, a plasticidade psíquica para uma resinificação. Mesmo quando a resistência possui alguma plasticidade, encontra-se, ante o desvelar de “novos caminhos para um impulso instintual”, alguma “inércia psíquica”, uma interrogação do inconsciente, consequência de suas associações, de algo profundo, não vivenciado, ou esquecido, se é compensador o gasto e investimento de energia para novos caminhos, tidos como desconhecidos. Essas forças instintuais profundas se aferram contra a cura, o restabelecimento do equilíbrio psíquico, até serem esgotadas as energias que as alimentam. Dentre essas energias estão os afetos já mencionados acima, aos quais incluímos o sentimento de culpa, autopunição, o masoquismo, que nos remete ao “principio do prazer”. Ou seja, se o sofrimento é o que causa prazer, é porque o sujeito se automutila. “Não há (luz) esperança no final do túnel”, pois morrer ou viver na escuridão “é a alternativa que ficou, pois perdeu todos os objetos de amor”, naquilo que é sua compreensão. Há que tocar com a luz suave, a primeira fissura que houver na desesperança e assim construir o doloroso caminho para a lei.

Durante toda a vida e durante a análise o sujeito estará sempre se debatendo e desprendendo um gasto de energia entre o instinto de morte e o instinto de vida. O exemplo mais contundente sobre as forças ocultas da alma está na frase de Freud: “No momento, temos de nos curvar à superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços redundar em nada. Mesmo exercer uma influência psíquica sobre o simples masoquismo constitui um ônus muito severo para nossos poderes” (1937). São conflitos a curto e médio prazo irreconciliáveis, que geram agressividade, que uma vez internalizada, demanda retorno e pacificação. Então há que realizar uma incursão epistemológica, pois para uma concepção materialista a análise pode ter um fim. Então, que a análise possa ter um “fim” é aceitável em uma concepção materialista. Mas é um imperativo categórico que o autoconhecimento pertença à eternidade da alma. Até onde é possível aprofundar a análise diz respeito à evolução psíquica de cada sujeito. Uma questão é assertiva: é muito difícil o sujeito entrar em análise e possuir o firme desejo de vasculhar os “porões” de seu inconsciente de forma indeterminada. O que se vê, na esmagadora maioria, é um discurso refratário, inconsistente no que diz respeito ao autoconhecimento e ao percurso do próprio inconsciente, ao seu lado obscuro.

No mundo material deseja-se os objetos do mundo material e o inconsciente não é um objeto material. Mesmo quando se fala de autoconhecimento através de uma escolha espiritual, é possível interrogar: como é possível conhecer o mundo imaterial, se nem a se próprio o sujeito possui a pretensão de conhecer. De intuir o porquê de sua existência, suas causas e consequências, porque é difícil se implicar, assumir as responsabilidades pelo desejo de viver aquilo que o danifica, que subverte a lei. Não é nosso objetivo aqui discorrer sobre a saúde mental do analista, mas é possível inferir, que todos têm suas constituições, tragédias pessoais, que se supõe razoavelmente “resolvidas”, no sentido de interferir o mínimo na relação de transferência, no diagnóstico diferencial e na direção clínica. “É, portanto, razoável esperar de um analista, como parte de suas qualificações, um grau considerável de normalidade e correção mental” (Freud, 1937). Então primeiro o analista precisa ser verdadeiro para consigo próprio, no que diz respeito às suas fraquezas, para então ser verdadeiro na condução analítica, ou seja, para que sua prática não seja enganosa e antiética. Em todas as profissões existem profissionais, cujo único objetivo do fazer profissional é o próprio ego e seus desejos pessoais, com o analista não é diferente. Há que separar o joio do trigo. O somatório formação acadêmica, desenvolvimento intelectual, análise pessoal, experiência profissional, espírito cientifico, desenvolvimento moral e espiritual, pois ele precisa se religar com o planeta e o universo sem misticismo são imperativos categóricos.

É nesse sentido que Freud é muito feliz quando interroga: “Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios às implicações e as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência crítica e corretiva da análise. “Tal acontecimento poderia justificar as palavras do escritor que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal” (Freud, 1937). Então tarefa interminável, em primeira instancia, é a análise do analista. A análise é um caminho de autoconhecimento das profundezas do inconsciente, porque a parcela do inconsciente que se torna consciente é o aprendizado que se conquista na existência e os conteúdos inconscientes advindos de memórias ancestrais revelados, e os conflitos dos desejos que estão “fora da lei”, que demandam cura. Possibilitar um começo de reintegração do ego, uma incorporação do ego uno, a caminho da evolução da psique, da alma é tarefa individual, mas do sujeito inserido na lei universal em que vive e não há lembrança que facilite o aprendizado, pois para lembrar é necessário crucificar os sofrimentos, e isso é tarefa da eternidade. 

Embora seja importante considerar a disposição hereditária, essa não pode ser uma regra infalível, pois apesar de em sua grande maioria, os similares estão em uma mesma cadeia evolutiva, há exceções que podem se destacar e as pesquisas na biologia assim o revelam. Não seria diferente na vida da psique, da alma. Não é possível anular o que pertence ao passado, pois sem conhecer o passado, não se compreende o presente e não se projeta o futuro. Compreender o passado é compreender as frustrações, os medos, a pobreza, a falta de amor, os infortúnios, as dissensões familiares, a solidão, as escolhas que trouxeram sofrimento no trabalho, no casamento, nas relações, as tragédias familiares, a promiscuidade, sentimentos como arrogância, inveja, vaidade, culpas, remorso, o preconceito, as perdas, a própria escravidão. A análise é arena, onde esses monstros irão se defrontar. Ante a complexidade das mazelas humanas, há que acolher acalentar, para caminhar um passo de cada vez. Assim “tornar consciente o que é inconsciente, remover as repressões, preencher lacunas da memória” é o começo para uma direção, em um caminho de equilíbrio. Isso não significa interrogar o que seria, se determinada constituição, circunstancias e desvios no curso do desenvolvimento não se efetivassem, pois tudo é aprendizado, evolução de consciência. E a consciência evolui, quando aumenta o conhecimento dos conteúdos inconscientes, possibilitando o caminho de reconciliação com a lei.

O processo analítico pode aproximar-se da raiz dos fenômenos, quando rastreia a repetição dos mesmos. Tarefa árdua, dolorosa, pois mesmo identificado essas raízes, nem sempre é possível levá-las a interpretação, se não houver demanda. Não que a demanda “resolva”, mas pode ser um inicio possível, mas nem sempre de execução, pelos danos que a resistência do ego (é uma anticatexia) impõe a repressão desses conteúdos mesmo nas estruturas neuróticas. Em estruturas mais complexas como as psicoses e perversões os conteúdos inconscientes são inacessíveis em função do afastamento ou negação da realidade, é como se o inconsciente invadisse o consciente, cujo discurso indica uma consciência “apagada”, “inexistente”, a ser reconstruída. O progresso inicial mostrar-se-á com o tempo, enganoso, se algo do real for explícito e o sentimento de remorso, não for possível de ser sustentado pelo ego. Então possivelmente poderemos ter o início de uma relação de transferência negativa do analisando para com o analista. Mas esse sentimento é a transferência de sentimento abrigada no inconsciente do paciente. O analista por determinado tempo é o substitutos de objetos diversos, a serem resinificados. “Uma transferência está presente no paciente desde o começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu progresso” (Freud, Conferência XXVII). A transferência hostil em relação ao analista é mais permeável a determinadas estruturas psíquicas fora do campo das neuroses, nas que pode revelar-se nesse, no percurso da analise, como traços que os atravessam, constituindo uma ambivalência emocional.

A complexidade em falar de análise terminável e interminável está na imensa arquitetura de sentimentos que envolvem o percurso analítico, no que diz respeito ao próprio sujeito e seus sentimentos hostis, que representam um vinculo afetivo patológico com sua história e na relação transferencial com o analista. Nem sempre é possível identificar a origem dos sentimentos do sujeito, por mais intensa, que seja a livre associação, a interpretação e o recuo no tempo. Algo fica de incógnita sobre acontecimentos, fenômenos, traumas, conflitos que são em determinado momento inapreensíveis, mas que retornam como repetição. As faces patológicas do sujeito podem estar lodosamente “estacionadas”, e por assim estarem, seus referenciais de saúde mental comprometidos, mas esses estados lodosos, vez por outra movimentam, vibram-se, o que significa que é possível, que uma réstia de luz se adentre, permitindo um pequeno movimento. Assim nesse percurso “a transferência pode ser comparada à camada do câmbio de uma árvore, entre a madeira e a casca, a partir do qual deriva a nova formação de tecidos e o aumento da circunferência do tronco” (Freud,). Se a troca de casca da árvore produz diversos produtos a vida e realimenta o ciclo da natureza, ao tempo que renova a árvore, mantendo inexorável  as leis da natureza, o movimento lembrança-esquecimento possui, apesar de ser, uma dialética de defesa é antes de tudo uma provação a ser vencida. A compreensão interna do sujeito em análise, seus insights, seu raciocínio sobre si mesmo e sua determinação de “cura”, não só dos traumas, mas de suas questões egoicas, narcísicas, são movimentos importantes, que geram uma energia que permite ascendências sobre si mesmo. A análise termina em um não tempo, quando os ciclos terminam e novos começam. Então estamos submetidos à lei do cosmo de mudança, evolução contínua. A estabilidade está submetida a lei do movimento, onde é imperativo que todos os seres no universo, de não só transformarem-se, mas transmutarem-se. Essa é a lei da frequência de energia do amor.
  
Referências
FREUD, S. - ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937)  - Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVII - TRANSFERÊNCIA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXVIII - TERAPIA ANALÍTICA - Obras Completas de Psicanálise - volume XVI - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXI – A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA (1933[1932]) - Obras Completas de Psicanálise - volume XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. - CONFERÊNCIA XXXIV - EXPLICAÇÕES, APLICAÇÕES E ORIENTAÇÕES (1933[1932])  - Obras Completas de Psicanálise - volume  XXII - Rio de Janeiro, Imago-1996.

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