7 de agosto de 2017

O “véu” da direção clínica - Como viver o presente, pensar o futuro, sem conhecer e curar o passado?


Esse artigo se estendeu, e não poderia ser diferente, pois falar do término da análise é também falar da continuidade, é interrogar qual término e qual continuidade. Por uma questão didática abordamos em três tópicos que serão publicados de forma sequencial: 1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”; 2. Sem a lei só existe o caos; 3. A caminho da Lei. 

1. “O relacionamento analítico se baseia no amor à verdade”

 Ao pensar em uma análise terminável e em uma análise interminável, temos que pensar em que tempo estamos e de qual tempo estamos a falar, porque o percurso da análise, do autoconhecimento é algo que diz respeito a um tempo ou a um não tempo. O tempo é o grande limite que se interpõe. A força constitucional dos instintos existe dentro e fora do tempo. Como o inconsciente é atemporal, o que nos defrontamos no tempo, são com as fraquezas do ego. “Terminar a análise” diz respeito a elaborar o instinto de morte, o grande conflito do psiquismo humano, pois ele é o senhor que bloqueia as passagens, para o profundo conhecimento do inconsciente, o que não é ainda possível nessa evolução da humanidade. Há que ressaltarmos que a divisão consciente - inconsciente é meramente didática, pois o que é consciente é o que é revelado. Por instinto de morte compreendemos a força desagregadora e ao mesmo tempo de escape do sujeito. Os sofrimentos psíquicos possuem inúmeras causas, que podem estar, nas categorias de “origem traumática” e “origem constitucional”, embora estas em geral se intercruzem. A questão é em que medida estas irão fazer alterações no ego, como parte do processo de defesa ou como um suposto prazer negativo; em que quantidade de energia e em que qualidade, que comprometa o caráter do sujeito.

Por certo que a análise é um começo primário do autoconhecimento. Portanto há que racionalizar as expectativas, pois começar a falar no sentido de um profundo conhecimento de si mesmo é como andar a beira mar, nas pequenas marolas do mar. Mas o mar profundo está adiante e é preciso aprender a nadar. Muitas vezes um conflito que “foi tratado” retorna  com outra roupagem, em conflitos aparentemente diferentes. Isso nos revela o quão profundo é a essência do nosso eu e das marcas mnêmicas. A relação de transferência com o analista que possibilita uma direção clinica que cada sujeito irá aprender no percurso da análise, deverá possibilitar um estancamento provisório, daqueles conteúdos que possibilitam maior sofrimento. Dificilmente o sujeito que “termina” sua análise estancou a essência de seus conflitos, e tomou posse de seu eu. Não estamos falando de posse do inconsciente. No máximo, ele terá, com muito esforço, fleches de conteúdo inconsciente e os ligará aos sintomas de seus sofrimentos. Podemos interrogar por que alguém que se propõe a um trabalho analítico, mesmo que não seja no sentido de fazer uma pequena “viagem” tangencial em seu inconsciente, levanta resistências tão fortes? Por que ele está aferrado aos seus sintomas, a um padrão de repetição em sua forma de agir, que somente o profundo sofrimento, o remédio amargo, para deslocá-lo desse “lugar de conforto”.  Teoricamente “é mais fácil lidar com o que já se conhece” do que com o desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja ele mesmo. “Vencer” as primeiras resistências revelará até onde o sujeito está disposto a ir à elaboração de seus conflitos.

Para vencer as resistências que vão se interpondo é necessário “fortalecer o ego ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego.” (Freud, 1937 ). Fazer o link de um conflito atual com um conflito do qual o próprio sujeito não se lembra, “não tem a menor ideia que ele existe”, só o sabe intuitivamente, é tarefa árdua. Como a energia que move o sujeito está desconectada em si e para si, ele não consegue fazer as conexões de sua própria existência presente, que dirá do percurso de sua alma. Estabelecida a transferência surge os indícios de relaxamento do conflito atual, mas isso ainda não lança luz sobre seus conflitos passados e suas conexões. A expectativa é que o fortalecimento do ego possibilite ao sujeito lidar com as forças dos instintos, de forma mais elaborada, inseridas na lei simbólica. Então a “queda de braço” entre o fortalecimento do ego e a força dos instintos seria a equação que poderia possibilitar o equilíbrio para aprofundamento ao inconsciente. Mas, infelizmente não é tão simples assim, se é que isso é simples. As forças instintuais que até então mantiveram-se veladas no inconsciente, respaldadas pela resistência, irão revelar-se, de alguma forma, mesmo depois de “encerrada a análise. Lidamos com uma sequencia de tempo, que é o tempo real, cronológico e uma instancia atemporal que é o inconsciente. O inconsciente está fora do tempo, como o concebemos, portanto como falar de análise terminável? Se lembrarmos o tempo cronológico que o sujeito permanece em análise, então diremos que quase nada foi feito.

Mas é preciso lembrar que a análise ou até a o desenvolvimento da capacidade de autoanálise, significa a libertação do sujeito de seus sofrimentos, sintomas, anormalidades, de todos os desejos que estão fora do equilíbrio das forças internas, a margem da lei. Se a provação do nascimento já é por si só enigmática e, portanto esquecida, a possibilidade de manter os sofrimentos ao longo da vida conflui com a demanda da procura da análise, para, inconscientemente, vislumbrar melhores recursos para lidar com seus sintomas e assim não dar um passo à frente, que possibilite a superação dos conflitos internos. Se os sintomas passam a apresentar outra roupagem, o objeto de conflito é transferido “indefinidamente”, como escapes inevitáveis de serem feitos, porque demanda cura. Como é possível falar em fim de análise? O que colocaria a possibilidade de um final seria o resgate das lembranças  fundamentais da trajetória da psique. Mas produzir lembranças não é uma questão fácil. Então ao longo da vida muitas serão as doenças, (sintomas), que o sujeito será acometido em função do ego, por mais fortalecido que estiver não ser capaz de dar suporte a determinadas lembranças. O tempo da análise é complexo. Em geral quando o sujeito se vê diante da possibilidade de uma lembrança importante, uma associação, conexão, vir ao consciente, ele manifesta o desejo de deixar a análise.

Muitas são as questões técnicas que se colocam ao analista, além do profundo percurso de sua própria análise em contraposição a formação teórica nas referências originais e não nos interpretes. Há que considerarmos que apenas a formação psicanalítica universitária é insipiente. Então, a saber, o problema técnico pressupõe uma jornada profissional e pessoal árdua e uma análise pessoal do profissional profunda. Usando de tautologia, o tempo só o tempo vai falar. “Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica. Isso acontece quando duas condições foram aproximadamente preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço. Se se é impedido, por dificuldades externas, de alcançar esse objetivo, é melhor falar de análise incompleta, de preferência a análise inacabada” (Freud, 1937). Mesmo para os sucessos parciais ao longo da análise, muitas vitórias ficarão sem compreensão. Se a causa do sofrimento é constitucional e circunstancial, seus sintomas são mais complexos, e haverá maiores dificuldades ao acesso aos conteúdos inconscientes. Os instintos são, então, fortes, difíceis de ceder a incursões pelo ego, fixando e tornando-se crônicos. Quando, apesar das situações traumáticas, o destino do sujeito não está submetido a duras provações, seu equilibro segue com seu ego estruturado. Mas se essas provações geram uma luta defensiva, que se estrutura com fissuras no ego, então o “termino” de uma análise tem um prognóstico mais distante, de longo tempo, pois as alterações no ego é um dos obstáculos no caminho da cura, naquilo que se define, em um tempo cronológico de vida.

Embora o analista possa com sua experiência, visualizar a estrutura psíquica em questão e levantar as hipóteses dos sintomas, das defesas e estrutura psíquica, estas só poderão ser reveladas pelo sujeito, se este evoluir em seu autoconhecimento de forma a ter insight sobre conteúdos e suas conexões. Portanto se o sujeito não aprofundar seu processo de autoconhecimento, por mais que o analista vislumbre a estrutura e suas conexões, estas muitas vezes ficarão sem uma incursão a interpretação e reelaboração, pois ainda não há demanda para tal. O percurso de uma análise não é linear. Aquilo que se mostra acessível em determinado momento, pode, com o pouco de avanço conseguido, se recrudescer. “Concluído” uma demanda e dado como finalizado um processo analítico, nada inviabiliza que a mesma demanda retorne com outra característica e outros sintomas, então a história anterior e posterior ao reequilíbrio terá que ser retomada. A análise “protege” o sujeito de novos e grandes conflitos circunstanciais, porque esta, o coloca no invólucro da lei simbólica, possibilitando não só o fortalecimento do ego, como as incursões interpretativas. Não consideramos aconselhável despertar um conflito adormecido, se não há demanda do sujeito para tal. Portanto tentar exaurir as possibilidades de uma patologia ou sua cronificação no sentido de impedir uma alteração mais profunda na personalidade é inócuo, pois se não há demanda, muito pouco, ou quase nada pode ser realizado. Se a influência das situações traumáticas não forem tratadas de imediato, enquanto estão vivas na consciência, sem grandes ligações no inconsciente, e a força constitucional do instintos estiverem mais submetidas a lei e as alterações no ego não forem profundas, então teremos a possibilidade de que algo ou grande parte do vivido será superado, curado. Se não o prognóstico de cura coloca-se para um longo tempo ou um não tempo.

Para que a força dos instintos seja circunstancial, deve ser também constitucional, ou então o sujeito já a teria reelaborado. A questão que se coloca é: “É possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?” Não. É possível, com muito esforço “esvaziar” o instinto de sua energia e assim “domá-lo”. Assim será construída uma melhor harmonização com o ego, ou seja, através de um reequilíbrio de energia, o que não implica em um novo desequilíbrio, se a vigilância instintual, não for constante, até sua sublimação. Isso requer o tempo do inconsciente. Por maior que seja a des-energização de um instinto, ele diante das provações da vida pode retornar de forma patológica, se essa des-energização não estiver pautada em um percurso de sublimação. Ele continuará reprimido, demandando a liberação, principalmente se forem reforçados no percurso da vida, por novos sofrimentos. É muito difícil alguma alteração no ego, se os conteúdos inconscientes não foram garimpados, de forma determinada no processo analítico, pois a análise é um caminho de aprendizado para o autoconhecimento. Mas as forças dos instintos são poderosas, portanto há que capacitar o ego a vencê-las, reelaborando-as. Um ego maduro é um ego que caminha para superar seu egocentrismo, e espiritualizar-se no sentido do próprio amor e do amor ao outro.

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