29 de agosto de 2013

Dor e Com-paixão

 Vivemos em uma civilização hedonista, em que a concepção materialista do “aqui e agora”, o sofrimento, a dor, é inaceitável e “todos estamos no mundo de férias, para ser feliz, sem nenhuma vicissitude da vida em função das escolhas ou circunstancias a que possamos estar envolvidos ou acometidos”. Assim fica mais difícil acolher a própria dor, ser generoso para consigo próprio, e para com as dores do outro, que não deixa de ser a própria dor; buscar ajuda e ser ajudado.

Na civilização atual procuramos a dor, no corpo. Onde ela se manifesta. Possuímos uma visão materialista, biologista e ao fazermos o percurso no psiquismo, damos “meia volta” e interrogamos o corpo, como se fosse o único caminho possível. A dor mesmo quando sinalizada no corpo, é sempre um enigma pela complexidade dos significados e representações que possui. A relação de movimento e troca psiquismo – corpo é inevitável e interdependente. Além da concepção filosófica, metafísica, e psicológica do psiquismo (inconsciente, superego e ego), a compreensão que no mundo humano se expressa também em um corpo, que apesar de pensado simbolicamente, materializa seus efeitos. Há que integrar estes saberes. Os avanços da ciência ainda não são suficientes, no sentido de compreensão da dor psíquica, seja ela em que circunstancia da vida se dê: nos hospitais, nos presídios, nos campos de refugiados, nas guerras, nas catástrofes atmosféricas ou acidentes, no grande número de moradores de rua, em sua maioria com grandes problemas de saúde mental, nas situações de pressão do dia a dia.

Assim é que a dor de existir é expressa em sintomas no corpo, quando os dispositivos de “natureza biológica”, falham ao serem sobrecarregados. A falha dos dispositivos psíquicos e biológicos é a dor, seja a enxaqueca, a diabete, o Alzheimer, o cálculo renal, o colesterol, a dor na coluna, nos ossos, a pressão arterial, o câncer, a depressão, o ódio, o preconceito, o medo daquilo que não representa ou ameaça o narcisismo primário, as doenças mentais, a dependência de substancias psicoativa e tantos outros sintomas, que serve para anestesiar, colocar um véu, ou afastar-se da realidade. Se nosso instinto de defesa é pelo equilíbrio entre a pulsão de prazer, de vida e de morte é porque temos sempre o instinto de fugir da adversidade, da dor, pelo sintoma, e nesse mecanismo funciona o sistema nervoso.

Há sempre uma tendência contra o aumento da quantidade de pressão, que possa causar dor. Seja em qual forma se apresente, se a quantidade de pressão é de ordem psíquica, passa pelo feixe de neurônios, que compõe o corpo humano, se é física em função de um “acidente”, há que ser elaborada na sua representação. São caminhos que se cruzam e interdependem. A dor está sempre em busca de uma via de descarga, que é sentida como desprazer. Esse é o mecanismo de defesa da vida.

A lembrança de um evento traumático ao retornar é novamente energizada, por uma nova percepção e desencadeia um estado igual ou semelhante ao da dor primeira, pois o desprazer e a necessidade de descarga são inerentes à experiência da dor, no afeto. A intensidade e frequência com que a lembrança retorna é semelhante a de qualquer outra percepção. Assim  o desprazer é liberado e ao mesmo tempo transmitido internamente como marca mnêmica. Esse delicado mecanismo utiliza-se do sistema neuronal e seus neurotransmissores.

A forma como lidamos com a própria dor é a forma como lidamos com a dor do outro. Essa relação espelhar, de similitude, implica na relação de prazer que se tem com a dor. Se para um sujeito é possível ganhos secundários com a própria dor e essa serve como forma de dissimulação e manipulação do outro é porque algo de estrutura perversa sinaliza, que a dor do outro também é fonte de prazer. Então fica mais difícil à relação com a lei e estruturas familiares patológicas e nebulosas  são mantidas. Essa mesma dor, quando tratada no sentido de compreendê-la, interpretá-la, implicar-se, estimula o sentimento de compaixão para consigo próprio e para com o outro. Assim apazigua-se o próprio espírito e torna-se possível a construção de relações mais sensíveis e facilitadoras de compaixão, do poder viver em paz, apesar de, com e sem o outro.

Referência
FREUD, S.   A DOR. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   A EXPERIENCIA DA DOR. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

24 de agosto de 2013

Poesia - Uma fração de tempo


Por uma fração de tempo...
a dor parece ir embora...
o medo desaparece...
e a vida que parece não ser possível ...
é tomada por uma brisa leve....
uma sensação de leveza no ar...
um suave cheiro de lírio...
um suave abraço a sentir...
a doçura de suas palavras invade meu coração...
“em um outro tempo nos encontraremos novamente”...
“e não mais nos separaremos”...
Por um instante a vida parece como uma leve pluma de ganso e minh ‘alma,
flutua por todos os espaço-tempo sem nenhuma dor, medo, desamor...
uma leve brisa de amor, como um raio de sol,
invade minh ‘alma e desapareço no universo unida a você.
Myriam ‘aya 

19 de agosto de 2013

Anotações: O fetiche nos tempos atuais

Muitas são as questões “novas” que se apresentam para a clínica psicanalítica, a cada instante. Falar de fetiche nos tempos atuais parece banal, corriqueiro, mas essa forma de se relacionar com o outro, com a vida, sempre esteve presente na história da humanidade. O fetiche sempre esteve presente como um objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto. Muitos filósofos falaram sobre o tema, mas Karl Marx  e Freud aprofundou a compreensão sobre o fetiche. Marx discorre em sua obra “O Capital” que a mercadoria, quando concluída, não mantinha o seu valor real de venda, seu “valor de uso”, ou seja, da quantidade de trabalho contida e sim adquire um valor de venda irreal, perdendo sua relação com o trabalho, isso é o que Marx chama de “fetiche da mercadoria”.  O homem trata os produtos (sapatos, bolsas, roupas, eletrônicos, mídias, automóvel, etc.) com adoração. Assim os produtos deixam de ter sua utilidade e passa a ter um valor simbólico, quase divino. Não se compra o produto real, mas a subjetividade representada no produto. Assim tudo aquilo que se constitui em um objeto pode vir a ser um fetiche.

Na sociedade do marketing neurológico, onde se fala do neuro-marketing, ou seja, fala-se na criação de produtos que possuem valor subjetivo, não importando o valor de uso, ou a quantidade de trabalho nele inserida, potencializa o fetiche. Há que se pensar no sujeito cujas demandas internas em suas relações, necessita que os objetos possuam um valor simbólico de prazer mítico envolvido. O prazer é alcançado mediante o  deslocar para outro objeto que o da sua finalidade. Esse deslocamento ocorre porque a experiência de prazer nos primeiros anos da infância deixou marcas, que são potencializadas, valorizadas pela cultura e deslocadas para outros objetos. É fato que o objeto “escolhido” como fetiche, em geral, apresenta diferenças entre homens e mulheres. Do ato de cheirar, o nariz enquanto fetiche, muito comum entre os animais, a “origem do fetichismo do pé”, é o movimento de um deslocamento, que pode significar “os órgãos genitais da mulher”.

Diante do mecanismo da repressão, onde não foi possível simbolizar a falta, a castração, o deslocamento para outros objetos facilita a vida sexual. O fetiche rememora ao prazer das primeiras experiências infantis, na medida em que é uma substituição das mesmas, das primeiras descobertas da sexualidade, principalmente no que diz respeito aos órgãos sexuais masculinos e femininos. Assim sapatos, pés, carros, roupas e tantos outros objetos de uso, que assume um valor simbólico quase divino, pode ser uma forma de substituição da falta fálica, que representa o órgão sexual masculino mercadologicamente explorado na sociedade capitalista. Como a questão fálica diz respeito a energia da sexualidade e não a um órgão específico, desloca-la a um órgão ou objetos é sempre fonte de conflitos internos entre o ego e superego. O fetiche pode ser uma forma de proteção, acomodação a “ameaça de castração”, e de escolhas sexuais, que podem trazer conflitos. Como o significado do fetiche só é conhecido pelo próprio sujeito “é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele”, enquanto outros “têm de implorar e se esforçar”, pelo seu prazer, “pode ser tido (obtido) pelo fetichista sem qualquer dificuldade”. Para que algo seja tomado como objeto de fetiche é necessário que um fragmento da realidade interna do inconsciente induza o ego a se desligar de um fragmento de realidade em função de um objeto que o represente, no caso, o fetiche. No fetiche está-se diante da angústia da castração. Muitos são os exemplos na história que poderíamos citar, mas Freud nos lembra de que o costume chinês de mutilar o pé feminino e depois reverenciá-lo como um fetiche é uma forma de “agradecer à mulher por se ter submetido a ser castrada”.
Essas complexas questões nos traz as reflexões de nossa subjetividade e das dificuldades na busca do equilíbrio ao qual todos temos que “dar conta”. Assim as questões novas da psicanálise, muitas vezes, não passam de antigas questões da existência humana,  com novas roupagens, às vezes não tão novas assim, como a interrogação que retorna sobre a existência do inconsciente. É um retorno de algo recalcado. A questão é quando isso é tema de uma conferência e não de uma pesquisa. É um fetiche.

Referência

FREUD, S.  - FETICHISMO (1927). Obras Completas de Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996.  

16 de agosto de 2013

O Lugar da Mãe


“A antiga cidade grega de Éfeso na Ásia Menor, pela exploração de cujas ruínas, incidentalmente, tem-se de agradecer à nossa arqueologia austríaca, era especialmente célebre na antiguidade por seu esplêndido templo, dedicado a Artêmis (Diana). Os invasores jônicos — talvez no século VII antes de Cristo — conquistaram a cidade, que por muito tempo fora habitada por povos de raça asiática, e encontraram nela o culto de uma antiga deusa-mãe que possivelmente portava o nome de Oupis, e identificaram-na com Artêmis, deidade de sua terra natal. A prova das escavações mostra que, no decurso dos séculos, diversos templos foram erguidos no mesmo local em honra da deusa. Foi o quarto destes templos que foi destruído por um incêndio iniciado pelo louco Heróstrato, no ano de 356, durante a noite em que Alexandre, o Grande, nasceu. Ele foi reconstruído, mais magnífico que nunca. Com a afluência de sacerdotes, mágicos e peregrinos, e com suas lojas em que amuletos, lembranças e oferendas eram vendidas, a metrópole comercial de Éfeso poderia ser comparada à moderna Lourdes.”
“Por volta de 54 D.C, o apóstolo Paulo passou diversos anos em Éfeso. Pregou, realizou milagres e encontrou muitos seguidores entre o povo. Foi perseguido e acusado pelos judeus; separou-se deles e fundou uma comunidade cristã independente. Em consequência da disseminação de sua doutrina, houve uma queda no comércio dos ourives, que costumavam fazer lembranças do lugar sagrado — figurinhas de Artêmis e modelos do templo — para os fiéis e peregrinos que chegavam de todo o mundo. Paulo era um judeu estrito demais para deixar a antiga deidade sobreviver sob outro nome; rebatizou-a, como os conquistadores jônicos haviam feito com a deusa Oupis. Foi assim que os piedosos artesãos e artistas da cidade tornaram-se apreensivos quanto a sua deusa, bem como quanto a seus ganhos. Revoltaram-se e, com gritos infindavelmente repetidos, de ‘Grande é Diana dos Efésios!’, afluíram pela rua principal, chamada ‘Arcádia’, até o teatro, onde seu líder, Demétrio, pronunciou discurso incendiário contra os judeus e contra Paulo. As autoridades tiveram dificuldade em reprimir o tumulto, o que conseguiram pela garantia de que a majestade da deusa era inatingível e achava-se fora do alcance de qualquer ataque.”
“A igreja fundada por Paulo em Éfeso não lhe permaneceu fiel muito tempo. Caiu sob a influência de um homem chamado João, cuja personalidade apresentou aos críticos alguns difíceis problemas. Ele pode ter sido o autor do Apocalipse, que abunda em invectivas contra o apóstolo Paulo. A tradição o identifica com o apóstolo João, a quem o quarto evangelho é atribuído. Segundo este evangelho, quando Jesus achava-se na cruz, exclamou para seu discípulo favorito, apontando para Maria; ‘Eis tua mãe!’ E, a partir daquele momento, João dedicou-se a Maria. Desse modo, quando João foi para Éfeso, Maria o acompanhou, e, por conseguinte, ao lado da igreja do apóstolo de Éfeso, foi construída a primeira basílica em honra da nova deusa-mãe dos cristãos. Sua existência é confirmada a partir do século IV. Agora, mais uma vez, a cidade tinha sua grande deusa e, fora o nome, pouca modificação houve. Também os ourives recuperaram o trabalho de fazer modelos do templo e imagens da deusa para os novos peregrinos. A função de Artêmis, contudo, expressa pelo atributo de kovpotpoϕoç (Criadora de Meninos) foi transmitida a um Santo Artemidoro, que assumiu a proteção das mulheres em trabalho de parto.”
“Depois veio a conquista pelo Islã, e finalmente, sua ruína e abandono, devido ao rio sobre o qual ficava haver-se tornado entulhado de areia. Mas, mesmo então, a grande deusa de Éfeso não abandonou suas reivindicações. Em nossos próprios dias, ela apareceu como uma virgem santa a uma piedosa menina alemã, Katharina Emmerich, em Dülmen. Descreveu a esta sua viagem a Éfeso, os móveis da casa em que lá vivera e na qual morrera, o formato de seu leito, e assim por diante. E tanto a casa quanto o leito foram de fato encontrados, exatamente como a virgem os descrevera, e são mais uma vez a meta das peregrinações dos fiéis.”

A antiga cidade grega de Éfeso na Ásia Menor, hoje pertencente à província de Izmir na Turquia, nos deixa com seu legado desde o culto a deusa grega da lua, do parto, virgindade e protetora das meninas e a substituição do culto a Artêmis (Diana) pela deidade Oupis, outra deusa-mãe, a importância desse ser feminino protetor. O surgimento do cristianismo levou a substituição dos cultos, pois o homem necessita do divino, para sublimar seus instintos. E coube a Senhora mãe de Cristo essa divindade.
Nesse Breve Escrito de Freud, um recorte da história, nos coloca a reflexão dessa mãe sonhada; imaculada. Do lugar dessa mãe, que não é o lugar do pai ou do filho. Encontrar esse lugar não é tarefa fácil, foi assim que no mesmo contexto histórico, por ocasião da abertura do túmulo, relata um abade do Mosteiro dos Beneditinos, que João correu a frente, mas parou à entrada do túmulo, pois esperava Pedro, para que esse entrasse primeiro. Novamente temos a questão do lugar. João sabia que seu lugar era à entrada e o de Pedro era adentrar-se para primeiro constatar que o corpo não estava. A questão do lugar remete à questão da função de todas as relações humanas. O lugar do primogênito, do filho do meio, do filho mais novo, e de todos os parentes, remete, portanto a questão da lei.

Referência
FREUD, S.  – BREVES ESCRITOS – ‘GRANDE É DIANA DOS EFÉSIOS’(1911), Obras Completas de Psicanálise - volume XII. Rio de Janeiro, Imago - 1996.

10 de agosto de 2013

Os Realizadores da Antiguidade


Os bons realizadores da antiguidade eram sutis
Maravilhosos, misteriosos e despertados
Eram profundos e não podiam ser compreendidos
E justamente por não poderem ser compreendidos
É preciso esforçar-se para ilustrá-los
Receosos como quem atravessa um rio no inverno
Cautelosos como quem teme seus vizinhos
Reservados como o hóspede
Solúveis como o gelo fundente
Genuínos como a madeira bruta
Vazios como os vales
Entorpecidos como as águas turvas
O turvo, através da quietude, torna-se gradualmente límpido
O quieto, através do movimento, torna-se gradualmente criativo
Aquele que resguarda este Caminho não tem desejo de se enaltecer
E justamente por não se enaltecer, mesmo envelhecido, pode voltar a criar
TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

7 de agosto de 2013

Ciência, História e Subjetividade

O livro de Jaime Pinsky em "Porque Gostamos de História", traz a reflexão acerca da paixão de escrever, porque escrever é contar história em suas diversas formas, metodologias, intenções, desejos. É uma relação especular com o ego e com o outro. Escreve-se para si e para o outro.
A História não é como a estatística que, devidamente manipulada, diz o que queremos. Mesmo assim há quem insista em torturá-la, exigindo que ela confesse crimes que não cometeu”.
“Por que gostamos de História?”
“Para um historiador é sempre agradável constatar a simpatia com que as pessoas comentam sua atividade: "Puxa, se eu não fizesse Medicina, faria História", ou "adoro livros de História", ou "eu adorava as aulas de História no colégio", e ainda "deve ser gostoso fazer pesquisa histórica". Claro, pode ser que as gentes estejam apenas querendo agradar ao exercerem a proverbial cordialidade brasileira. Contudo, convenhamos, fica difícil imaginar as frases equivalentes dirigidas a profissionais como, por exemplo, economistas, advogados ou dentistas. De modo que tendo a acreditar na sinceridade dos brasileiros nesse particular, mesmo porque a declaração de amor à História vem respaldada por números muito expressivos de venda de livros da área, escritos ou não por historiadores de ofício. Se acrescentarmos às obras especificamente históricas os romances históricos, as biografias e, ainda, a "militária" (livros sobre estratégias, guerras e guerreiros), veremos que o setor é muito querido e repete por aqui o sucesso que tem conquistado em muitos outros países”.
“Dois motivos parecem explicar a popularidade dos livros de História. O primeiro é que temos enorme curiosidade em saber de onde viemos, onde estão nossas raízes familiares, étnicas, nacionais, culturais. Visitar e compreender o passado é uma tentativa de nos entendermos melhor, de buscar - nem sempre com sucesso - explicações sobre o aqui e agora. "Sou assim porque tenho sangue espanhol", ou "é tradição entre os mediterrâneos valorizar mais o filho homem", ou ainda "somos os herdeiros do povo do livro" são constatações de caráter supostamente histórico que teriam por função nos situar como agentes históricos. O mundo ocidental tem, no mínimo, sérias dúvidas sobre uma suposta vida depois da morte, desistiu de responder a uma das inquietações vitais do ser humano: "para onde vou?" Resta-lhe o consolo de, pelo menos, tentar explicar de onde vem”...
“O outro motivo é explicado, ou melhor, foi explicado pelo dramaturgo grego Sófocles, há 25 séculos. Ele dizia que, de todas as maravilhas do mundo, o homem é a mais interessante para os próprios seres humanos. De fato, nós nos percebemos espelhando-nos nos outros: ao utilizar o próximo como referência é que podemos medir nossa inteligência ou estultice, nossa beleza ou falta de graça, nossa habilidade ou falta de jeito. Olhar e ver outros seres humanos, verificar como estão vivendo, como se organizam socialmente, quais os tabus que respeitam, qual o papel que desempenham os velhos, as crianças, as mulheres em diferentes sociedades, tudo isso nos fascina. Será que aquele povo encontrou uma forma política mais eficiente que a nossa? Quem sabe aquele outro achou deuses mais benevolentes e eficazes que os nossos? Adoramos civilizações antigas, devoramos livros sobre egípcios (de então, não de agora), gregos (idem), hebreus, romanos (idem, idem). Por vezes, até o leitor se atrapalha e confunde povos que de fato existiram e sobre os quais temos provas documentais com outros que se originam da imaginação de espertalhões”.
“Além de tudo, os bons livros de História têm uma... história. As narrativas, os processos, estabelecem conexão entre os episódios. Desde a infância, gostamos de boas histórias; por que não gostar daquelas, por assim dizer, verdadeiras?”
“Claro que o mundo está cheio de falsos historiadores (dentro e fora da universidade), aqueles que partem de uma tese pronta e vão buscar apenas os argumentos que a comprovam, rejeitando, no processo investigativo, todos os documentos que poderiam contradizer seu ponto de partida. É aquela história de "se os fatos negarem minha teoria, pior para os fatos". Por meio de manipulação do acontecido pode-se provar qualquer coisa e até o contrário dessa coisa. Esse método tem sido muito usado para se "provar" superioridade nacional, racial e de gênero. Tem sido usado para se "provar" direitos territoriais. Tem sido usado para desqualificar e mesmo ridicularizar heróis, desde que não sejam os "nossos". Daí a necessidade de os leitores, amantes da História, tomarem certas precauções com relação à origem das "verdades" que encontram e reproduzem. A internet, assim, genérica, não é fonte. Mesmo quando os textos são apresentados com assinaturas que parecem confiáveis. Não apenas nossos textos são apropriados indevidamente na web, como as pessoas nos atribuem afirmações que nunca fizemos. Operar uma crítica de fontes é, pois, fundamental”.
“De resto, nada como se assegurar da formação do suposto historiador. Não, não é preciso fazer curso de História para publicar livros, mas é preciso ser rigoroso no que se pesquisa e responsável no que se escreve para ser confiável. Do contrário, serão apenas histórias da carochinha”.

O livro reflete a realidade de como se lida com os fatos. Em tudo que escrevemos, seja a que área pertence o saber profissional ou pesquisa há que contextualizarmos o momento cultural, social, político, econômico e principalmente a subjetividade do autor. Não é possível escrever sem se implicar, não existe a ciência neutra, imparcial. A história do processo “civilizatório” deu-se em grande medida sob o imperialismo da dominação cultural, onde o mundo chamado civilizado coopta a essência de outra cultura. Foi assim a relação entre os civilizados e os chamados povos bárbaros. É assim a relação entre ocidente e oriente, em que dessacraliza as culturas orientais para tornar seus arcabouços filosóficos, “científicos” nos moldes ocidentais, ou fazer uma leitura da filosofia oriental, retirando sua essência, transformando-a em um objeto de consumo. As construções cientificas estão sempre articuladas, politicamente, seja de que forma for. Podemos lembrar também, as questões em torno do DSM V e do uso da Ritalina em crianças e adolescentes. A questão é a quais interesses correspondem. No que diz respeito à subjetividade, há que lembrarmos para além do politicamente articulado, os aspectos da subjetividade em questão: a estrutura de defesa do pesquisador, seu funcionamento, seu narcisismo, sua relação com o prazer, sua lei interna, e tudo que o compõe. Assim não há verdades absolutas, imparciais, e os “imperativos categóricos” estão submetidos às circunstancias históricas que os determinam, ou seja, no processo de evolução da humanidade e humanidade aqui, no sentido de um Ser Humano, mais humano, mais ético e menos materialista e com maior capacidade de sublimação de seus instintos primários.

5 de agosto de 2013

Caminhos - dos pensamentos às palavras


“Em sonhos e associações, nomes que têm de ser encobertos parecem ser substituídos por outros que se lhes assemelham apenas por conterem a mesma sequência de vogais. Uma analogia notável, contudo, é proporcionada pela história da religião. Entre os antigos hebreus, o nome de Deus era tabu; não podia ser falado em voz alta, nem registrado por escrito. (Isto está longe de ser um exemplo isolado da significação especial dos nomes nas civilizações arcaicas). Esta proibição foi tão implicitamente obedecida que, até o dia de hoje, a vocalização das quatro consoantes do nome de Deus[YHVH] permanece desconhecida. Ele era, contudo, pronunciado ‘Jehovah’, sendo suprido pelas vogais da palavra ‘Adonai’ (‘Senhor’), contra a qual não havia tal proibição”.

Freud – A Significação das Sequências de Vogais (1911)

2 de agosto de 2013

As sem-razões do amor


Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade

1 de agosto de 2013

Winnicott e a análise de criança

“A criança joga (brinca), para expressar agressão, adquirir experiência, controlar ansiedades, estabelecer contatos sociais como integração da personalidade e por prazer”.

No trabalho de Winnicott possui relevância a teoria do “amadurecimento pessoal” e o uso dos fenômenos de regressão à dependência, na interação paciente/analista, que fornece o holding necessário e deve decidir quando falar e quando silenciar, particularmente nas situações de “descongelamento” do trauma, sobretudo em casos de pacientes graves. O respeito à individualidade e singularidade da criança em desenvolvimento, os ritmos e as peculiaridades de cada uma devem ser sagradamente respeitados. Embora seja uma teoria aplicável às crianças em geral, será na prática clínica a realização de seus conceitos.


Esses momentos de “descongelamentos” o analista não deve se justificar nem interpretar  devendo aguardar o momento oportuno para comentar o assunto. As situações traumatizantes estão aquém das recordações e verbalizações, só podendo ser resgatadas através da exteriorização do paciente, com os consequentes turbilhões emocionais na relação analítica, com a imprescindível continência do analista. Dessa forma, a técnica clássica de recordação e explicação foi cedendo lugar ao vivenciar e compartilhar com o analista.


O núcleo do desenvolvimento psíquico só poderá ser retomado na interação paciente-analista em nova versão da relação mãe-bebê. Diferentemente da posição neutra e “espelhadora” da análise clássica, a interação, que assume conscientemente o impacto sobre o paciente e a responsabilidade do analista, são fatores de êxito do trabalho psicanalítico. O modo pré-verbal de comunicar do paciente é a maneira de a criança “falar” com sua mãe. Dentro da concepção winnicottiana, a regressão deixa de ser um mecanismo de defesa a ser evitado a todo custo, por provocar acting-out, para se tornar indispensável, pois provê a oportunidade de experimentar, na relação analítica, as falhas ambientais e de vivenciar partes dissociadas na relação primitiva mãe-bebê.


Cabe ao analista, após a tormenta emocional, encontrar as palavras para a realidade do sofrimento do paciente. A regressão ocorre por se reconhecer a experiência intrusiva ou de privação e pela capacidade do analista de conter a raiva, a dor e o temor sem ser destruído, sem interromper a análise. Sempre haverá objetos subjetivos e objetivos e o incessante caminhar para a realidade e o uso de objetos, sempre persistirá uma comunicação silenciosa com o objeto subjetivo, como um refúgio e uma forma preventiva de não se ligar tão facilmente com algum grau de relações objetais falsas ou submissas; a comunicação silenciosa e secreta com objetos subjetivos restaura o senso de real para o si-mesmo. Todos esses elementos fazem parte do que ele denominou de “manejo do setting. A experiência analítica é um processo muito maior do que um conjunto de interpretações. O silêncio do analista faz parte do manejo técnico do setting, juntamente com outros elementos, como prolongar a duração da sessões, permitir que o paciente ande pela sala, que se sente ou fique de pé etc. O analista suprirá a necessidade do jogo ilusório materno privilegiando a criatividade em todos os níveis, cuidando para que o “fazer analítico” não paralise o processo criativo. A técnica winnicottiana, assim, recoloca o problema do “lugar do analista” juntamente com a constituição do sujeito psíquico e sua relação com o ambiente facilitador, sendo essa interação o elemento estruturante por excelência, não se podendo aceitar a vida psíquica como subproduto da organização libidinal.


O importante é que a criança sinta-se à vontade, desarmada, confiante de que possa se expressar e de que suas questões serão acolhidas. O desenho ou qualquer outro recurso é apenas um instrumento para que o diálogo se estabeleça de forma natural e o terapeuta possa quando for possível inserir elementos, possibilidades alternativas de ser e fazer.


Referências

Winnicott, D. W. (1978). Aspectos clínicos metapsicológicos da regressão dentro do setting psicanalítico. In Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1954.)