"…Estou-lhe
remetendo duas ideias recentíssimas, que me ocorreram hoje e me parecem
viáveis. Baseiam-se, naturalmente, em descobertas analíticas.
(1) O que
determina uma psicose (ou seja, amência ou psicose confusional — uma psicose de
subjugação, como a denominei anteriormente), em lugar de uma neurose, parece
ser o fato de o abuso sexual ocorrer antes do fim do primeiro estágio
intelectual — isto é, antes de o aparelho psíquico ter sido completado na sua
primeira forma (antes dos 15 a 18 meses). É possível que tal abuso remonte a
uma época tão remota que essas experiências permaneçam ocultas atrás de experiências
mais recentes e que a elas se possa voltar de tempos em tempos. Penso que a
epilepsia remonta ao mesmo período… Tenho de abordar de maneira diferente o tic
convulsif, que eu costumava atribuir ao mesmo estágio. Eis como cheguei a essa
outra visão. Um de meus pacientes histéricos… levou sua irmã mais velha a uma
psicose histérica, que terminou num estado de completa confusão. Agora
averiguei qual foi o sedutor dele, um homem de grande capacidade intelectual
que, no entanto, tinha tido ataques da mais grave dipsomania a partir dos seus
cinquenta anos. Esses ataques começavam regularmente, com diarreia ou com
catarro e rouquidão (o sistema sexual oral!) … isto é, com a reprodução de suas
experiências passivas. Ora, até ele próprio sentir-se doente, esse homem tinha
sido pervertido e, consequentemente, sadio. A dipsomania surgiu através da
intensificação — ou melhor, através da substituição do impulso sexual correlato
por esse impulso [para a bebida]. (Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de
jogatina do velho F.) Ocorreram entre esse sedutor e meu paciente, sendo que a
irmã deste, que tinha menos de um ano de idade, presenciou algumas delas. Meu
paciente, mais tarde, veio a ter relações com ela, que se tornou psicótica na
puberdade. Disso se pode depreender como uma neurose se agrava e passa a uma
psicose na geração seguinte (o que as pessoas chamam de “degeneração”),
simplesmente porque uma pessoa de idade mais tenra é colhida nas malhas de uma
situação dessas. Aliás, aqui está a hereditariedade desse caso [Fig. 10]:
Espero
poder contar-lhe muito mais coisas importantes a respeito desse caso, que
projeta uma luz sobre três formas de doença.
(2) As
perversões normalmente levam à zoofilia e têm uma característica animal. São
explicadas não pelo funcionamento das zonas erógenas que foram posteriormente
abandonadas, mas sim pela atuação de sensações erógenas, que depois perdem essa
intensidade. Com relação a isto, convém recordar que o principal órgão dos
sentidos nos animais (para fins sexuais, bem como para outros fins) é o sentido
do olfato, que perdeu essa posição nos seres humanos. Na medida em que é
dominante o olfato (ou o paladar), o cabelo, as fezes e toda a superfície do
corpo — e também o sangue — têm um efeito sexualmente excitante. Sem dúvida
está em conexão com isso o aumento do sentido do olfato na histeria. O fato de
que os grupos de sensações têm muito a ver com a estratificação psicológica
parece ser dedutível a partir da distribuição deles nos sonhos e, sem dúvida,
têm uma conexão direta com o mecanismo da anestesia histérica".
FREUD,
S. – CARTA 55 (1950
(1892-1899)), Obras Completas de
Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996.
Nessa
carta do período 1892-1899, Freud fala de suas descobertas sobre como o abuso
sexual pode desencadear transtornos diversos, possível de sintomas e estruturas
de defesa. Pode ir da neurose histérica ou obsessiva às psicoses e perversões.
No transcurso das gerações, as situações de abuso não circunscrevem somente a
uma geração, perpetuando-se entre gerações, seja como repetição enquanto ato,
seja pelo “inconsciente transgeracional”, até que a interdição e incorporação
da lei se façam. Como em sua grande maioria ocorrem na família, sejam por
cuidadores, familiares em diversos graus, consanguíneos ou não, abusos esses
que fazem uma passagem ao ato ou permanecem como relações sedutoras, que
alimentam a fantasia do desejo, do gozo e vão conformando uma teia de romances
familiares. O mundo moderno e midiático está permeado delas com muito mais
força do que no século XIX. A ênfase da sociedade moderna nos instintos mais
primitivos do homem banaliza a lei, e tudo que a compõe, pois no discurso do
“direito a fazer e dizer o que quiser”, a chamada “expressão de liberdade”,
possibilita a transgressão, e o caminho ao qual se supõe deveria seguir
os instintos, no sentido de realização de desejo em percurso de sublimação, é
impossibilitado, mantendo a patologia das relações.
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