22 de março de 2014

Abuso Sexual e Estrutura Psíquica


"…Estou-lhe remetendo duas ideias recentíssimas, que me ocorreram hoje e me parecem viáveis. Baseiam-se, naturalmente, em descobertas analíticas.
(1) O que determina uma psicose (ou seja, amência ou psicose confusional — uma psicose de subjugação, como a denominei anteriormente), em lugar de uma neurose, parece ser o fato de o abuso sexual ocorrer antes do fim do primeiro estágio intelectual — isto é, antes de o aparelho psíquico ter sido completado na sua primeira forma (antes dos 15 a 18 meses). É possível que tal abuso remonte a uma época tão remota que essas experiências permaneçam ocultas atrás de experiências mais recentes e que a elas se possa voltar de tempos em tempos. Penso que a epilepsia remonta ao mesmo período… Tenho de abordar de maneira diferente o tic convulsif, que eu costumava atribuir ao mesmo estágio. Eis como cheguei a essa outra visão. Um de meus pacientes histéricos… levou sua irmã mais velha a uma psicose histérica, que terminou num estado de completa confusão. Agora averiguei qual foi o sedutor dele, um homem de grande capacidade intelectual que, no entanto, tinha tido ataques da mais grave dipsomania a partir dos seus cinquenta anos. Esses ataques começavam regularmente, com diarreia ou com catarro e rouquidão (o sistema sexual oral!) … isto é, com a reprodução de suas experiências passivas. Ora, até ele próprio sentir-se doente, esse homem tinha sido pervertido e, consequentemente, sadio. A dipsomania surgiu através da intensificação — ou melhor, através da substituição do impulso sexual correlato por esse impulso [para a bebida]. (Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de jogatina do velho F.) Ocorreram entre esse sedutor e meu paciente, sendo que a irmã deste, que tinha menos de um ano de idade, presenciou algumas delas. Meu paciente, mais tarde, veio a ter relações com ela, que se tornou psicótica na puberdade. Disso se pode depreender como uma neurose se agrava e passa a uma psicose na geração seguinte (o que as pessoas chamam de “degeneração”), simplesmente porque uma pessoa de idade mais tenra é colhida nas malhas de uma situação dessas. Aliás, aqui está a hereditariedade desse caso [Fig. 10]:
Espero poder contar-lhe muito mais coisas importantes a respeito desse caso, que projeta uma luz sobre três formas de doença.
(2) As perversões normalmente levam à zoofilia e têm uma característica animal. São explicadas não pelo funcionamento das zonas erógenas que foram posteriormente abandonadas, mas sim pela atuação de sensações erógenas, que depois perdem essa intensidade. Com relação a isto, convém recordar que o principal órgão dos sentidos nos animais (para fins sexuais, bem como para outros fins) é o sentido do olfato, que perdeu essa posição nos seres humanos. Na medida em que é dominante o olfato (ou o paladar), o cabelo, as fezes e toda a superfície do corpo — e também o sangue — têm um efeito sexualmente excitante. Sem dúvida está em conexão com isso o aumento do sentido do olfato na histeria. O fato de que os grupos de sensações têm muito a ver com a estratificação psicológica parece ser dedutível a partir da distribuição deles nos sonhos e, sem dúvida, têm uma conexão direta com o mecanismo da anestesia histérica".
FREUD, S.  – CARTA 55 (1950 (1892-1899)), Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago - 1996.

Nessa carta do período 1892-1899, Freud fala de suas descobertas sobre como o abuso sexual pode desencadear transtornos diversos, possível de sintomas e estruturas de defesa. Pode ir da neurose histérica ou obsessiva às psicoses e perversões. No transcurso das gerações, as situações de abuso não circunscrevem somente a uma geração, perpetuando-se entre gerações, seja como repetição enquanto ato, seja pelo “inconsciente transgeracional”, até que a interdição e incorporação da lei se façam. Como em sua grande maioria ocorrem na família, sejam por cuidadores, familiares em diversos graus, consanguíneos ou não, abusos esses que fazem uma passagem ao ato ou permanecem como relações sedutoras, que alimentam a fantasia do desejo, do gozo e vão conformando uma teia de romances familiares. O mundo moderno e midiático está permeado delas com muito mais força do que no século XIX. A ênfase da sociedade moderna nos instintos mais primitivos do homem banaliza a lei, e tudo que a compõe, pois no discurso do “direito a fazer e dizer o que quiser”, a chamada “expressão de liberdade”, possibilita a transgressão, e o caminho ao qual  se supõe deveria seguir os instintos, no sentido de realização de desejo em percurso de sublimação, é impossibilitado, mantendo a patologia das relações. 

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