1 de novembro de 2014

“Tratamento da Alma” – “corte epistemológico”

Se pensássemos em uma cronologia metodológica esse seria o primeiro escrito a ser publicado nesse espaço. Mas lidamos com a livre associação e só agora foi possível esse texto. Muito se fala e escreve sobre tratamento psíquico. Importante relembrarmos que a psicanálise é uma concepção de pensar e tratar os fenômenos patológicos da alma ou de parte da alma, pela palavra ou linguagem e que atua em primeiro lugar na alma. Então “Psyche” uma palavra grega traduzida do alemão significa alma. Assim não é necessário rever a concepção de matéria, para concebermos a existência de uma alma. E como a palavra, a linguagem é um meio de representação, de acesso, cura, não deixa de ser mágica, misteriosa, cheia de significados e significantes. Em função dos grandes avanços, descobertas, na compreensão do corpo humano, foi delegada à filosofia a compreensão da alma.  Já faz um século que os médicos se preocupam com o tratamento desta.

Os estudos da medicina até então, com exceção de determinadas áreas da Psiquiatria, que continuam as pesquisas separando o físico do anímico, ou seja, mantendo a concepção de que as causas das doenças começam e terminam no físico, tem evoluído no sentido do que Freud tentou esboçar de uma metapsicologia. A relação entre o físico e o anímico é recíproca, embora em muitas circunstancias o anímico possa determinar o físico. São conhecidas pesquisas envolvendo conflitos psíquicos, e o desenvolvimento de doenças orgânicas. Há uma “variedade multiforme do quadro patológico; não podem fazer nenhum trabalho intelectual, em consequência de dores de cabeça ou insuficiência da atenção, seus olhos doem durante a leitura, suas pernas se cansam ao andar, ficando pesadas, doloridas ou dormentes, sua digestão é perturbada por sensações dolorosas, eructações ou espasmos gástricos, a defecação não se dá sem a ajuda de laxativos, o sono é abolido etc. Eles podem ter todos esses males simultaneamente ou em sucessão, ou sofrer apenas de uma seleção deles” (p.271-273). Esses sintomas falam de ansiedades, angústias, medos, que uma vez reelaborados terminam sem deixar nenhum vestígio. São as dores da alma que falam. Até o momento não foi possível encontrar relação entre esses sintomas e doenças no sistema nervoso como um todo, ou anomalias cerebrais. Em grande parte a influência da vida anímica, coloca-se como causa, possibilitando a interrogação do tempo e lugar dessa(s) causa(s).

O caminho de compreensão do normal pelo patológico é o viés de compreensão da mudança pelo sofrimento. Ao expressar as emoções, o humano, manifesta sua essência anímica. Assim as manifestações físicas das emoções muitas vezes revelam intenções, pensamentos que estão muito escondidos. E não há outra forma de dizer que “em certos estados anímicos chamados de “afetos”, a participação do corpo é tão evidente e intensa que alguns estudiosos da alma chegaram até a pensar que a essência do afeto consistiria apenas nessas suas exteriorizações físicas. São genericamente conhecidas as extraordinárias mudanças na expressão facial, na circulação sanguínea, nas secreções e nos estados de excitação da musculatura voluntária sob a influência, por exemplo, do medo, da cólera, da dor psíquica e do deleite sexual. Menos conhecidos, embora estabelecidos com plena certeza, são outros efeitos físicos dos afetos que já não são próprios da expressão deles. Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer, “depressiva”, tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da “felicidade”, vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afetos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas;” (p.274-275). As frustrações, derrotas, perdas, vulnerabiliza a saúde e o sistema imunológico, pelo estresse que causam, potencializando pré-disposições. Assim como a doença pode ser agravada por conflitos e afetos desagradáveis pode também obter melhoras significativas por afetos agradáveis, como o amor.

Os afetos são independentes do corpo, embora encontrem correspondência nesse. Os estados d’alma, como os pensamentos são afetivos e não necessitam de manifestações físicas. O estado psíquico assertivo, alegre, motivado para um objetivo, tranquilizador, pode influenciar em processos físicos de doenças. Mesmo que a dor não encontre um correspondente físico, ela não deixa de ser real, podendo ser reduzida ou elevada dependendo do limiar de dor do sujeito ou de sua resiliência. Dessa forma, frente a uma doença, os sentimentos do sujeito relativos à vontade de viver, de curar-se, a busca da espiritualidade, como demonstra estudos científicos http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34s1/a02v34s1.pdf http://scholar.google.com.br/scholar?q=psiquiatria+e+espiritualidade&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart&sa=X&ei=UBRVVLnyEY-eyATKooLQAQ&ved=0CBoQgQMwAA  contribui no processo de cura ou agravamento da doença. Uma doença que é recebida com afetos de raiva, ódio e revolta, desanimo, agregam componentes tóxicos ao organismo. De forma geral adoecem com mais frequências às pessoas que possuem medo de adoecer. Mas quando diante de uma doença há uma posição de aceitação, aprendizado, assertividade, confiança na cura, as expectativas de melhoras são muito maiores. Então não é prudente “recusar crédito a essas curas milagrosas e pretender explicar os relatos feitos sobre elas através de uma combinação de engodo devoto e observação inexata. Por mais que essa tentativa de explicação possa amiúde justificar-se, ainda assim não tem o poder de descartar por completo o fato das curas miraculosas. Elas realmente ocorrem, deram-se em todas as épocas e dizem respeito não só às doenças de origem anímica, ou seja, àquelas que se fundamentam na “imaginação” e podem justamente ser afetadas de maneira especial pelas circunstâncias da romaria, mas também aos estados patológicos fundamentados no “orgânico” e até então resistentes a todos os esforços médicos.” (p.277). O poder da fé recebe forças pulsionais, independente da concepção religiosa. A arte medicinal vem deste os primórdios da humanidade e tem passado por várias concepções, principalmente se compreendermos as diferenças entre ocidente e oriente.

Os profissionais de saúde que concebem sua atividade como um sacerdócio, do servir, uma arte, adentra ao estudo do espírito humano, sua essência e desenvolve uma relação de empatia com seus pacientes, que contribui e muito na melhora destes. Desde os tempos mais remotos, se busca a cura para os problemas da alma. Se o tratamento psíquico possibilita estados de alma favorecedores a cura, só resgatamos o que a humanidade faz a milhões de anos. Vários foram os métodos que o homem utilizou ao longo de sua história em busca de cura: desde os banhos com ervas para purificar, os oráculos, a meditação, as práticas de elevação espiritual, “só podem ter-se tornado curativos por via psíquica”. Assim há uma transferência da arte curativa das mãos dos sacerdotes e espiritualistas para os médicos e profissionais de saúde e nos tempos atuais vários grupos profissionais, principalmente de saúde mental retoma essa discussão pela via da espiritualidade, principalmente as pesquisas da psiquiatria e neurociência, o retorno aos estudos de Jung e os estudos da psicologia transpessoal, e da física quântica.

Nesse mundo “mágico” que é a psique, a “magia” das palavras assume um lugar de mediação do vínculo terapêutico. Como a palavra provoca modificações no sujeito ao serem faladas, pois ele se escuta e ao mesmo tempo essas palavras encontram ressonância no terapeuta e é por esse “devolvida” como interrogação, interpretação, reflexão, contribuindo para resinificar sofrimentos, eliminando sintomas patológicos. A possibilidade de não possuir o direito de escolher livremente seu médico, terapeuta, seja pela configuração do sistema de saúde pública ou pela configuração do sistema privado de saúde, somente sendo possível em atendimento particular, “aniquila-se uma importante precondição para influenciar o sujeito que sofre em termos anímicos”. Inexoravelmente, o “destino muitas vezes cura as doenças através das grandes emoções de alegria, da satisfação das necessidades e da realização dos desejos, com os quais o médico, amiúde impotente fora de sua arte, não pode rivalizar” (p.280). Seja qual for a abordagem terapêutica, o fundamental é o vínculo de confiança, estima e amorosidade que potencializa a relação de transferência, fundamental para a direção clínica, pois não é tarefa fácil o sujeito renunciar a seus sofrimentos, sintomas e gozos.

Referência
FREUD, S.  – TRATAMENTO PSÍQUICO (OU ANÍMICO) (1905), Obras Completas de Psicanálise - volume VII. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

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