28 de junho de 2015

Quando o inconsciente procura um motivo para esconder a “verdade”

"As Sutilezas de um Ato Falho"

“Eu estava preparando para uma amiga um presente de aniversário — uma pequena pedra preciosa trabalhada, para ser engastada num anel. Ela estava fixa no centro de um recorte de cartolina resistente, e neste escrevi as seguintes palavras: ‘Comprovante para entrega, à firma L., joalheiros, de um anel de ouro… para a pedra anexa, na qual está gravado um barco, com vela e remos.’ Contudo, no ponto em que ali deixei uma lacuna, entre ‘ouro’ e ‘para’ havia uma palavra que eu fora obrigado a riscar por ser inteiramente desnecessária. Era a pequena palavra ‘bis‘ [‘até’, em alemão]. Mas por que eu a teria escrito?”
“Ao ler toda a breve inscrição que havia feito, surpreendeu-me o fato de que continha a palavra ‘für‘ [‘para’] duas vezes, em rápida sucessão: ‘para entrega’ — ‘para a pedra anexa’. Isto pareceu feio, devia ser evitado. Então me ocorreu que ‘bis‘ tinha sido substituído por ‘für’, numa tentativa de evitar a deselegância estilística. Certamente era isto; era, porém, uma tentativa que se utilizava de meios extremamente inadequados. A preposição ‘bis‘ estava muito fora de lugar nesse contexto e não tinha como ser substituída pelo necessário ‘für‘. Assim sendo, por que justamente ‘bis‘?”
“Talvez a palavra ‘bis‘ não fosse a preposição indicativa de tempo-limite. Pode ter sido algo totalmente diferente — a palavra latina ‘bis‘ — ‘uma segunda vez’, que conservou seu significado em francês. ‘Ne bis in idem‘ é uma máxima da lei romana. ‘Bis! bis!‘ é o que grita o francês, quando deseja ver repetida uma apresentação. Assim, esta deve ser a explicação de meu absurdo lapso de escrita. Eu estava sendo advertido contra o segundo ‘für‘, contra uma repetição da mesma palavra. Alguma outra devia ser colocada em seu lugar. A fortuita identidade de som entre a palavra estrangeira ‘bis‘, que incorporava a crítica à fraseologia original, e a preposição alemã possibilitou a inserção de ‘bis‘ em lugar de ‘für‘ na forma de lapso de escrita. Esse engano, todavia, atingiu seu objetivo, não ao ser efetuado, mas somente depois de ter sido corrigido. Tive de riscar o ‘bis‘, e com isto, por assim dizer, eliminei a repetição que me perturbava. Realmente digna de interesse essa variante do mecanismo de uma parapraxia!”
“Senti-me muito satisfeito com essa solução. Na autoanálise, porém, o perigo de fazer coisas incompletas é muito grande. Pode-se, com muita facilidade, ficar satisfeito com uma explicação parcial, atrás da qual a resistência facilmente pode estar ocultando algo que talvez seja mais importante. Contei esta pequena análise a minha filha, e ela imediatamente viu como a coisa acontecera:‘Mas o senhor já deu a ela uma pedra igual a essa, para um anel, anteriormente. Esta é provavelmente a repetição que o senhor quer evitar. As pessoas não gostam de dar sempre o mesmo presente.’ Isto me convenceu; havia realmente a objeção contra uma repetição do mesmo presente, não da mesma palavra. Tinha havido um deslocamento para algo banal com a finalidade de desviar a atenção de algo mais importante: uma dificuldade estética, talvez, em lugar de um conflito instintual.”
“Pois foi fácil descobrir a outra sequencia. Eu estava procurando um motivo para não dar de presente a pedra, e esse motivo foi providenciado pela reflexão de que eu já havia dado o mesmo presente (ou um muito parecido). Por que essa objeção devia ser ocultada, ou disfarçada? Logo vi por quê. Não tinha nenhuma vontade de me desfazer da pedra. Gostava muito dela e a queria para mim.”
“A explicação para essa parapraxia foi encontrada sem maiores dificuldade. Na realidade, logo me ocorreu uma ideia consoladora: pesares desse tipo só aumentam o valor de um presente. Que espécie de presente seria este, se não se lamentasse um pouco dá-lo? Não obstante, o episódio possibilita que se perceba, mais uma vez, como podem ser compilados os processos mentais mais modestos e aparentemente mais simples. Cometi um lapso ao redigir umas anotações — coloquei ‘bis‘ onde devia escrever ‘für‘ —, percebi-o e o corrigi: um pequeno erro, ou antes, uma tentativa de erro, e assim mesmo encerrava tão grande número de premissas e de fatores dinâmicos. Com efeito, o erro não podia ter ocorrido se o material não fosse especialmente favorável.”       

Na psicopatologia da vida cotidiana o inconsciente comanda sem que o sujeito se dê conta do que está ocorrendo com ele e mesmo, sobre o que ele fala e seu significado. Ao falar os signos, que são as palavras do discurso consciente, outros signos vão sendo falados, inseridos no discurso, os quais pertencem ao discurso do inconsciente ou revelam os sentimentos inconsciente, sem que o sujeito se dê conta. Ao falar, seja através de qual representação, o sujeito se revela; é aquilo para o qual o inconsciente requer revelado para que ao fluir, possa ser reelaborado, curado, é o que é possível escapar do superego. O discurso do sujeito está sob um véu, que o protege. Por isso, que desvendar a “verdade”, é difícil para o próprio sujeito. Os “erros” do cotidiano têm sua origem no inconsciente e sempre possuem intenções e significados que o sujeito geralmente desconhece, por onde habitam marcas mnêmicas de um tempo não possível, que trazem algum sofrimento.

Referência
FREUD, S. AS SUTILEZAS DE UM ATO FALHO (1935). Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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