11 de setembro de 2015

A “substancia viva” que nos habita

Quando Freud pensou nos protozoários, como indivíduos com um enigma de eternidade, pela sua composição, e os seres evoluídos com pulsão de morte, estava, talvez sem o saber, falando que os seres evoluídos caminham para a morte porque são habitados pelos seres unicelulares. Então se a morte dá ao homem a eternidade é porque este contém em si algo que está “além do princípio do prazer”. O princípio do prazer-desprazer é como o equilíbrio entre a vida e a morte, por isso a compulsão a repetição é um “ponto de partida” nesse equilíbrio e ao mesmo tempo ao funcionamento psíquico condicionado. Se um instinto é um impulso determinado hereditariamente, ele não é somente inerente à vida orgânica, mas a vida psíquica também, que tende a restaurar estados psíquicos anteriores. Assim é possível falar não somente em uma elasticidade orgânica, mas uma elasticidade psíquica, a resiliência. A vida orgânica é um espelho da alma. Portanto “vemos como o germe de um animal vivo é obrigado, no curso de sua evolução, a recapitular (mesmo se de maneira transitória e abreviada) as estruturas de todas as formas das quais se originou, em vez de avançar rapidamente, pela via mais curta, até sua forma final. Esse comportamento é, apenas em grau muito tênue, atribuível a causas mecânicas, e, por conseguinte, a explicação histórica não pode ser desprezada. Assim também o poder de regenerar um órgão perdido, fazendo crescer de novo um outro exatamente semelhante, estende-se bem acima do reino animal” (p.48). Dessa forma a vida está sempre se refazendo nascendo e morrendo, fluindo em um movimento de equilíbrio. As bactérias que um dia consumirá nosso organismo já habitam dentro de nós desde o nascimento.

Não é possível desvincular nosso passado do passado da terra e do universo. E Freud vai afirmar isso quando diz que “o que deixou sua marca sobre o desenvolvimento dos organismos deve ter sido a história da Terra em que vivemos e de sua relação com o Sol” (p.48). Assim há muito de repetição em nossa psique. Essa “necessidade” de retorno diz respeito a uma possível experiência primeira saudável ou a nossa queda aos instintos primitivos, que demanda elaboração. Essa luta interna que todos os organismos fizeram em sua evolução entre vida e morte diz respeito a uma lei do universo e da natureza, que tudo nasce, morre e nasce. A semente de uma árvore não é a árvore, e ao mesmo tempo é ela modificada. Como até o presente momento a ciência debate se a vida surgiu no “caldo primitivo” ou se veio na “poeira estelar” é questão que ainda demanda séculos. O objetivo é sempre a vida, que está “além do princípio do prazer”. “Daí surgir a situação paradoxal de que o organismo vivo luta com toda a sua energia contra fatos (perigos, na verdade) que poderiam auxiliá-lo a atingir mais rapidamente seu objetivo de vida, (que é morrer)* por uma espécie de curto-circuito” (p.50), o que é contraditório com “além do princípio do prazer”. O enigma da vida e morte é uma interrogação para todos, e Freud acalenta sua angústia com a afirmação de que “a totalidade do caminho do desenvolvimento para a morte natural não é percorrido por todas as entidades elementares que compõem o complicado corpo de um dos organismos mais elevados. Algumas delas, as células germinais, provavelmente retêm a estrutura original da matéria viva e, após certo tempo, com todo o seu complemento de disposições instintuais herdadas e recentemente adquiridas, separam-se do organismo como um todo. Essas duas características podem ser exatamente aquilo que as capacita a ter uma existência independente. Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se, isto é, a repetir o desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais uma vez uma parte de sua substância leva sua evolução a um término, ao passo que outra parte reverte novamente, como um germe residual novo, ao início do processo de desenvolvimento. Essas células germinais, portanto, trabalham contra a morte da substância viva e têm êxito em conseguir para ela o que só podemos encarar como uma imortalidade potencial, ainda que isso possa significar nada mais do que um alongamento da estrada para a morte. Temos de considerar como significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da célula germinal ser reforçada, ou só tornada possível, se ela fundir-se com outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela” (p.50-51). Nesse trecho o artigo reforça a ideia de um princípio ativo, uma substancia viva, composto de uma energia que habita o corpo humano e que sobrevive a ele, na concepção de eternidade, pois, ao mesmo tempo em que evolui e termina, outra parte evolui e continua.

Por certo que em todos os revezes do homem no planeta, entre avanços e recuos, há em sua maioria uma necessidade de evoluir, de realização intelectual e “sublimação ética” e, portanto moral. Muitas atrocidades têm sido cometidas na história humana entre os homens. Mas há sempre um instinto, uma pulsão, uma energia para a sublimação da alma, em contraposição a instintos primitivos. Essas cargas de energia contrárias estarão em luta, onde os instintos para sublimação terão que ser maiores, para que a compulsão a repetição, passe a se dar com um fluir contínuo de energia. Se o corpo em seu incessante renovar de células aponta uma questão de imortalidade é porque como diz Fliess (1906) em “sua morte estão vinculados à conclusão de períodos fixos, os quais expressam a dependência de dois tipos de substância viva (um masculino e outro feminino) quanto ao ano solar” (p.55). A concepção biológica de imortalidade se dá pela compreensão através das células germinais, seu plasma germinal e as forças que operam nele, e por ser um fluido traz uma herança de renovação da vida.

A vida e morte na terra são uma adaptação e uma evolução dos seres multicelulares. Esse ciclo, morrer e viver são o ciclo corpo e plasma. Se a imortalidade dos protozoários pode ser experimentalmente demonstrável na medida em que é introduzido em seu fluido nutrientes enriquecedores, a imortalidade dos seres multicelulares diz respeito ao plasma, e a morte ao nível de toxinas que deterioram o corpo. “Nesse ponto, bem pode surgir em nosso espírito a dúvida quanto, a saber, se servimos a algum objetivo ao tentar solucionar o problema da morte natural a partir do estudo dos protozoários. A organização primitiva dessas criaturas pode ocultar-nos condições importantes que, embora de fato presentes nelas também, só se tornam visíveis nos animais superiores, quando podem encontrar expressão morfológica. E, se abandonarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos o dinâmico, torna-se-nos completamente indiferente poder demonstrar se a morte natural ocorre ou não nos protozoários. A substância que posteriormente é reconhecida como imortal, neles não se separou ainda da mortal” (p. 59-60). Se no humano a substancia imortal separou-se da mortal, o corpo, então é possível acreditar que a morte, pode fazer parte do ciclo da vida, e o desejo de viver está ligada a quantidade de energia que circunda o ser humano. Quando as descobertas cientificas aprofundarem as pesquisas sobre o plasma, que no momento são restritas ao plasma sanguíneo e não a quantidade de energia que o compõe, ao plasma que compõe as células, continuaremos no campo da hipótese, quanto a pulsão de vida e morte.

Essa pulsão de vida remonta aos primórdios da humanidade e torna-se uma provação, quando a energia é direcionada em função do instinto sexual. Então é importante remontar na história a hipótese de como “Platão colocou na boca de Aristófanes no Symposium e que trata não apenas da origem do instinto sexual, mas também da mais importante de suas variações em relação ao objeto. ‘A natureza humana original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos eram originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o homem, a mulher, e a união dos dois (…)’ Tudo nesses homens primevos era duplo: tinham quatro mãos e quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá-los em dois, ‘como uma sorva que é dividida em duas metades para fazer conserva’. Depois de feita a divisão, ‘as duas partes do homem, cada uma desejando sua outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por fundir-se” (p.68). Os estudos apontam que é possível que Platão remontasse esses escritos aos Upanishads. “Assim a passagem encontrada no “Brihadâranyaka-upanhishad, onde a origem do mundo a partir do Atman (o Eu, ou Ego) é assim descrita: “Mas não sentiu deleite. Assim também um homem que está solitário não sente deleite. Desejou ter um segundo. Era um homem tão grande quanto marido e mulher juntos. Fez então o seu Eu tombar em dois e surgiram então esposo e esposa. Assim Yagñavalkya disse “Nós somos assim (cada um de nós) como a metade de uma concha”. E dessa maneira o vazio que havia foi preenchido pela esposa” (p.68). O elemento de verdade que possivelmente Platão viu nesses escritos indianos foi a divisão da substancia viva do corpo.

A substancia viva, essa energia está vinculada ao princípio da vida em construção de sua identidade, e que está “além do princípio do prazer”. Mas essa construção passa por vivências, passagens de sofrimentos. Esses sofrimentos e a energia deles descartada pode libertar o “aparelho mental de excitações”, primárias, do começo da vida mental, e outras sequenciais, secundárias, experimentando, assim, uma sensação de alivio. Nossa consciência e nosso superego são vigilantes dedicados. Então o prazer, o desprazer e a tensão interna, quando pressionam por revelar-se, passa pela censura, com inúmeros véus de significantes até serem elaborados novamente.
*Grifos Nossos
         
Referência
FREUD, S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920). Obras Completas de Psicanálise - volume XVIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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