2 de setembro de 2015

“O princípio do prazer” e as Barreiras

O retorno do reprimido, pela compulsão a repetição, apesar de apresentar-se como prazer, ao contato com a realidade sob comando do superego, assume sua essência que é o desprazer, pois refere-se a impulsos instintuais reprimidos e que precisam ser drenados. O que é interessante, por demandar cura, é que mesmo as experiências dolorosas, destituídas de prazer, estão submetidas à compulsão a repetição, como via, a ser interpretadas e renunciadas em seu processo de cura. A primazia da vida passa por essa repetição, por esse retorno. Se essa compulsão a repetição conflui em uma compulsão do destino, de uma história, é porque não foi esgotada, exaurida em sua energia, possibilitando novos significados. Então as percepções do mundo exterior, as vivências, as falas, os sentimentos, encontram ressonâncias nesses resíduos mnêmicos. É dessa forma que assume importância pensar em um sistema pré-consciente, que fica em uma suposta ausência, mas também no comando, possui recursos de extensão, que está atenta às marcas mnêmicas, embora em sua maioria estas não acessem a consciência.

Quando uma lembrança torna-se consciente, pode deixar atrás de si um traço de memória em seu intrincado sistema, por onde passam as excitações que recebem, como representação. O que faz uma lembrança deixar atrás de si um traço de memória ou não ainda é uma incógnita. Como o pensamento é a essência da alma, a consciência surge como uma apropriação de si mesmo. A especulação sobre a localização da consciência passa pelos processos excitatórios. É como se algo tivesse, constantemente, que estimular determinado campo do pensamento para que fosse possível a manutenção da consciência. Freud descreve isso da seguinte forma: “o sistema nervoso central se origina do ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece um derivado da camada superficial primitiva do organismo e pode ter herdado algumas de suas propriedades essenciais. Seria então fácil supor que, como resultado do impacto incessante de estímulos externos sobre a superfície da vesícula, sua substância, até uma certa profundidade, pode ter sido permanentemente modificada, de maneira que os processos excitatórios nela seguem um curso diferente do seguido nas camadas mais profundas. Formar-se-ia então uma crosta que acabaria por ficar tão inteiramente ‘calcinada’ pela estimulação, que apresentaria as condições mais favoráveis possíveis para a recepção de estímulos e se tornaria incapaz de qualquer outra modificação. Em termos do sistema Consciente. Isso significa que seus elementos não poderiam mais experimentar novas modificações permanentes pela passagem da excitação, porque já teriam sido modificados, a esse respeito, até o ponto mais amplo possível; agora, contudo, se teriam tornado capazes de dar origem à consciência. É possível formar várias ideias, que não podem, de momento, ser verificadas, quanto à natureza dessa modificação da substância e do processo excitatório. Pode-se supor que, ao passar de determinado elemento para outro, a excitação tem de vencer uma resistência e que é a diminuição da resistência assim alcançada que deixa um traço permanente da excitação, isto é, uma facilitação” (p.37). A hipótese orgânica aqui, é que, essa camada interna de tão calcinada, seria mais receptiva aos estímulos, formando a consciência, como um escudo protetor. Mas mesmo na consciência, que não é um órgão, haverá também uma resistência psíquica, para aquilo que é insuportável para o sujeito, ou que é difícil elaborar.

Quando pensamos em como o corpo humano constrói a si mesmo, em sua pulsão, vida e morte temos “a vesícula viva, com sua camada cortical receptiva. Esse pequeno fragmento de substância viva acha-se suspenso no meio de um mundo externo carregado com as mais poderosas energias, e seria morto pela estimulação delas emanadas, se não dispusesse de um escudo protetor contra os estímulos. Ele adquire esse escudo da seguinte maneira: sua superfície mais externa deixa de ter a estrutura apropriada à matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e, daí por diante, funciona como um envoltório ou membrana especial, resistente aos estímulos. Em consequência disso, as energias do mundo externo só podem passar para as camadas subjacentes seguintes, que permaneceram vivas, com um fragmento de sua intensidade original, e essas camadas podem dedicar-se, por trás do escudo protetor, à recepção das quantidades de estímulo que este deixou passar”(p.38). Esse “até certo ponto inorgânica” deve ser compreendido como uma metáfora, pois o mais apropriado seria pensar que essa camada externa, de tanto receber e barrar os estímulos, tornou-se insensível a estes, e ao mesmo tempo, protegeu as camadas mais internas. Então como continua Freud “através de sua morte a camada exterior salvou todas as camadas mais profundas de um destino semelhante, a menos que os estímulos que a atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo protetor”. Assim tão importante quanto receber estímulos, é proteger-se contra os mesmos. A questão da “morte” aqui, também, constitui-se uma metáfora, a sequência da frase assim levanta a hipótese. Fortes cargas de energia sempre existirão, e em virtude de sua quantidade e qualidade poderia representar uma ameaça à existência, ou à estrutura psíquica.

Referência
FREUD, S. ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER (1920). Obras Completas de Psicanálise - volume XVIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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