Nos tempos atuais, em que não
escrevemos mais cartas, e que as redes sociais ocupam um espaço de escrita,
onde “o pessoal” é exposto, sem que o sujeito resguarde sua privacidade, é o
sujeito egoico, narcísico, que se expande, revelando seu narcisismo primário
impossibilitado de diferenciar o público do privado. Assim as cartas que Freud
escreveu a Fliess teve uma importância fundamental nesse sentido, não só pela
troca de reflexões cientificas, mas principalmente pessoais. Cartas essas
que foram fundamentais na autoanálise de Freud abriu um novo caminho ao
conhecimento do psiquismo humano. Em um trecho dessas cartas a número 66 de 7
de julho de 1897 Freud escreve algo muito importante sobre as lembranças e que
a defesa dessas cria estruturas psíquicas superiores: “Pois bem, vejo que a
defesa contra as lembranças não impede que estas deem origem a estruturas
psíquicas superiores, que persistem por algum tempo e, depois, são elas mesmas
submetidas à defesa. Esta, porém, é de um tipo específico mais elevado — precisamente
como nos sonhos, que contêm in nuce [numa casca de noz] a psicologia das
neuroses, muito genericamente. O que temos diante de nós são falsificações da
memória e fantasias — estas referentes ao passado ou ao futuro. Conheço mais ou
menos as leis segundo as quais se agrupam essas estruturas e os motivos pelos
quais são mais fortes do que as lembranças verdadeiras;” Podemos supor que uma
das estruturas psíquicas superiores, importante, é o esquecimento. Claro que
existem outras como a condensação, as representações, os “saltos” de marcas
mnêmicas, que se liga a outras, que também estarão submetidas à defesa. O
psiquismo luta para que nada transborde que venha a causar dor, culpa. Mas como
o reprimido sempre volta, porque a lei do universo é o equilíbrio, e isso passa
pela verdade do sujeito e aquilo que ele guardou no seu mais recôndito Ser, vai
está sempre demandando o retorno da verdade, porque o universo não funciona com
mentiras, então o caminho de equilíbrio do sujeito é sempre a busca da verdade.
Verdades essas que em um primeiro instante pode apresentar-se veladas, repletas
de marcas mnêmicas. As “verdades” da história do sujeito traz sempre muita dor
e a primeira que se coloca nesse caminho de auto-reconstrução é o sentimento ou
afeto a que se denomina “culpa”, que é da ordem da subjetividade de um
significante, que muitas vezes não é possível localizar no tempo. Há que se
perguntar: culpa de que? Isso implica em um sentimento de angústia, um incômodo
psíquico, que remonta a memórias, nem sempre consciente de ter agido de
determinada forma que prejudicou, lesionou ou teve participação ativa, mesmo
que por omissão no sofrimento do outro. Então temos que pensar que esse afeto
remonta a um passado, que o sujeito não se lembra, pois nem sempre é possível
localizar os fatos na existência. É de algo, que muitas vezes não se sabe de
que, mesmo que existam comportamentos repetitivos que possam sinalizar a origem
desse afeto. Da passagem ao ato perverso pelo prazer, ambição, arrogância,
poder, segue-se o ódio, o ressentimento, a mágoa, o arrependimento e a culpa.
Por isso Freud pensa a perversão como o contraponto da neurose. Nessa
sequência, autoperdão é sempre o mais difícil e demorado, porque requer
humildade e um sentimento amoroso que iria se interpor a resinificar o
sofrimento, que “começou” em um ato perverso. Fala-se muito que “não é possível
voltar atrás e mudar o que houve, mas que é possível construir um futuro
diferente”. Mas um futuro diferente não se constrói com ódio, ressentimento,
remorso e culpa. Então muitas vezes é preciso “voltar” e “consertar”
através de uma mudança que já esteja em andamento aquilo no qual o sujeito
esteve implicado. É sua reforma moral, que começa com o sentimento de culpa,
passa pela humildade e reconhecimento do Ser falível, faltante, imperfeito, que
muito prejuízo psíquico pode ter causado, mas que sempre é tempo de começar um
novo caminho. Enquanto estamos a caminho o perdão é a única porta possível de
passagem a um outro ato, que não o perverso, mas ao amoroso.
Referência
FREUD, S. CARTA 66 - 7 de julho de 1897. Obras Completas de Psicanálise
- volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
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