30 de setembro de 2015

Anotações sobre a Culpa

Nos tempos atuais, em que não escrevemos mais cartas, e que as redes sociais ocupam um espaço de escrita, onde “o pessoal” é exposto, sem que o sujeito resguarde sua privacidade, é o sujeito egoico, narcísico, que se expande, revelando seu narcisismo primário impossibilitado de diferenciar o público do privado. Assim as cartas que Freud escreveu a Fliess teve uma importância fundamental nesse sentido, não só pela troca de reflexões cientificas, mas principalmente pessoais.  Cartas essas que foram fundamentais na autoanálise de Freud abriu um novo caminho ao conhecimento do psiquismo humano. Em um trecho dessas cartas a número 66 de 7 de julho de 1897 Freud escreve algo muito importante sobre as lembranças e que a defesa dessas cria estruturas psíquicas superiores: “Pois bem, vejo que a defesa contra as lembranças não impede que estas deem origem a estruturas psíquicas superiores, que persistem por algum tempo e, depois, são elas mesmas submetidas à defesa. Esta, porém, é de um tipo específico mais elevado — precisamente como nos sonhos, que contêm in nuce [numa casca de noz] a psicologia das neuroses, muito genericamente. O que temos diante de nós são falsificações da memória e fantasias — estas referentes ao passado ou ao futuro. Conheço mais ou menos as leis segundo as quais se agrupam essas estruturas e os motivos pelos quais são mais fortes do que as lembranças verdadeiras;” Podemos supor que uma das estruturas psíquicas superiores, importante, é o esquecimento. Claro que existem outras como a condensação, as representações, os “saltos” de marcas mnêmicas, que se liga a outras, que também estarão submetidas à defesa. O psiquismo luta para que nada transborde que venha a causar dor, culpa. Mas como o reprimido sempre volta, porque a lei do universo é o equilíbrio, e isso passa pela verdade do sujeito e aquilo que ele guardou no seu mais recôndito Ser, vai está sempre demandando o retorno da verdade, porque o universo não funciona com mentiras, então o caminho de equilíbrio do sujeito é sempre a busca da verdade. Verdades essas que em um primeiro instante pode apresentar-se veladas, repletas de marcas mnêmicas. As “verdades” da história do sujeito traz sempre muita dor e a primeira que se coloca nesse caminho de auto-reconstrução é o sentimento ou afeto a que se denomina “culpa”, que é da ordem da subjetividade de um significante, que muitas vezes não é possível localizar no tempo. Há que se perguntar: culpa de que? Isso implica em um sentimento de angústia, um incômodo psíquico, que remonta a memórias, nem sempre consciente de ter agido de determinada forma que prejudicou, lesionou ou teve participação ativa, mesmo que por omissão no sofrimento do outro. Então temos que pensar que esse afeto remonta a um passado, que o sujeito não se lembra, pois nem sempre é possível localizar os fatos na existência. É de algo, que muitas vezes não se sabe de que, mesmo que existam comportamentos repetitivos que possam sinalizar a origem desse afeto. Da passagem ao ato perverso pelo prazer, ambição, arrogância, poder, segue-se o ódio, o ressentimento, a mágoa, o arrependimento e a culpa. Por isso Freud pensa a perversão como o contraponto da neurose. Nessa sequência, autoperdão é sempre o mais difícil e demorado, porque requer humildade e um sentimento amoroso que iria se interpor a resinificar o sofrimento, que “começou” em um ato perverso. Fala-se muito que “não é possível voltar atrás e mudar o que houve, mas que é possível construir um futuro diferente”. Mas um futuro diferente não se constrói com ódio, ressentimento, remorso e culpa. Então muitas vezes é preciso “voltar” e “consertar” através de uma mudança que já esteja em andamento aquilo no qual o sujeito esteve implicado. É sua reforma moral, que começa com o sentimento de culpa, passa pela humildade e reconhecimento do Ser falível, faltante, imperfeito, que muito prejuízo psíquico pode ter causado, mas que sempre é tempo de começar um novo caminho. Enquanto estamos a caminho o perdão é a única porta possível de passagem a um outro ato, que não o perverso, mas ao amoroso.

Referência
FREUD, S. CARTA 66 - 7 de julho de 1897. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.

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