3 de novembro de 2016

A Contextura Psíquica do ódio - A indiferença como expressão do ódio



3. A indiferença como expressão do ódio

Para odiar há que negar o outro, ser indiferente a esse outro, negar sua subjetividade, olhar para ele como objeto material, de passagem ao ato. Se o masoquismo é um ancoradouro do prazer, na relação do sujeito consigo próprio e com o outro, a indiferença é a ponte para o sadismo, como expressão do ódio. Mas primeiro há que “olhar o olhar do outro”, “mas um olhar não pode ser olhado: desde que olho em direção ao olhar, este se desvanece e não vejo mais do que olhos” (Sartre, p. 473). O outro ao desvanecer, tudo se desmorona, pois o que “resta” é o objeto. A indiferença para com o outro é construir a própria subjetividade desmoronando, desconstruindo a subjetividade do outro. Como essa desconstrução não é possível, mantendo a própria subjetividade no campo da neurose, afasta-se, portanto, desta e aproxima-se da perversão. Estabelecer com o outro uma relação de objeto, requer a manifestação dos instintos primários no corpo, ou seja, o sujeito faz a passagem de objeto de si próprio, o que vai além do narcisismo. 

Para desejar o corpo do outro como puro objeto material é preciso que a relação com o próprio corpo seja objetal. Assim como pode a subjetividade revelar-se, se o desejo diz respeito a matéria? O desejo só pode posicionar-se a si próprio como objeto material a se reelaborar pela sublimação. O desejo embora possa remeter-se a um corpo, mas o fazer-se presente, dar-se por uma imagem simbólica de representatividade do outro. A consciência é desejo de vida. Em que tempo está essa vida, diz respeito ao transcendente. É na relação especular “na reação primordial ao olhar do Outro, com efeito, constituo-me como olhar. Mas, se olho o olhar, a fim de defender-me contra a liberdade do Outro e de transcendê-la como liberdade, a liberdade e o olhar do Outro desmoronam: vejo olhos, vejo um ser-no-meio-do-mundo. Daí por diante o Outro escapa-me: queria agir sobre sua liberdade, apropriar-me dela, ou, ao menos fazer-me reconhecido como liberdade pela liberdade do outro, mas esta liberdade está morta, já não está de forma alguma no mundo em que encontro o Outro-objeto, pois sua característica é ser transcendente ao mundo. Por certo, posso apoderar-me do Outro, agarrá-lo, sacudi-lo; caso disponha de poder, posso constrangê-lo a tais ou quais atos, tais ou quais palavras” (Sartre, p.488); é como abraçar alguém que fugiu deixando seu casaco.

O ódio surge de uma ferida na alma. Nasce da relação sujeito-objeto, na contextura da desconstrução do outro objeto, do narcisismo, vaidade, arrogância. Há uma permeabilidade sujeito-objeto, senhor x escravo, próprio das relações de poder, da escravidão que cada sujeito se insere. Então há um sujeito que “não se conhece”, não conhece seu lugar, sua função, seu destino, sua falta, sua incompletude. O sujeito não possui outro recurso para dar a seu destino, sua mágoa, seu ressentimento e sua própria desagregação, então uma vez objeto, reproduz essa relação, supondo-se sujeito pelo sadismo. Nesse contexto a apreensão do outro é a apreensão do outro enquanto objeto, para prestar contas da sua transcendência, o que não é possível, pois por ser sujeito, escapa com sua transcendência. Então não é possível ter a consciência do que se busca. O desejo está turvado pelo ódio, o que se supõe tocar, segurar; escapa! Se é possível supor uma origem para o sadismo, aqui está. O sadismo é uma obstinação porque se distancia da essência, assume um compromisso, sem saber que valor isso possui. O sádico foge de sua factibilidade, “faz experiência de si mesmo frente ao outro enquanto pura transcendência; tem horror a turvação para si mesmo e considera-a um estado humilhante”; esse estado humilhante, que nasceu de sua própria subjugação a um outro.
(Referências na Síntese do artigo, quando for publicado) 

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