“A
civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto”
Neste
artigo vamos discorrer sobre aspectos do “mal-estar” na sociedade atual,
refletindo sobre renúncia instintual, sofrimento e fragilidade, tarefa essa nada fácil; por
isso, começamos, com a frase de Freud “A primeira exigência
da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei,
uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” (p.102). Lembremos que Kant também pensou assim
ao descrever o imperativo categórico. Essa colocação de Freud não deixa de ser
um imperativo categórico. A vida na midiática sociedade atual traz de frente o
binômio felicidade X infelicidade como quase sinônimo de sucesso. Se o
desconforto ou mal-estar deveria ser só a contramão do estado de hedonismo procurado
e “vivenciado” como ilusão, estamos lidando com a relação do real, imaginário e
por que não dizer do afastamento do real, ou de sua não simbolização. Os
noticiários sobre a violência no mundo nos revelam que as restrições que seriam
funções da sociedade e de suas instituições exercerem, ou seja, a lei, está
sendo flexibilizada cada vez mais em favor das exigências instintuais ou dos
interesses político-econômicos. Estamos às portas do imperativo dos instintos?
Assim
podemos começar falado que se o incesto é antissocial e vemos cada vez mais os
abusos sexuais contra crianças e adolescentes no ambiente familiar crescerem,
para onde caminhamos? O desenvolvimento humano é organicamente determinado pela
hereditariedade, mas moldado pela educação. No transcurso desde ocorreu o que
Freud denomina de uma “repressão orgânica
que prepara o caminho para a civilização”. É nesta concepção que se constrói a
noção do superego, como a mais antiga relação objetal do homem, instancia de
censura que insere o sujeito na cultura. Essa censura nos leva a consciência do
que devemos e não devemos fazer. Se na sociedade em que vivemos parte dessa
relação do ego com o superego está sendo flexibilizada e o destino da lei é ser
transgredida e ignorada estamos falando de uma estrutura de relações que
comporta o contexto do perverso. Por mais que se promulguem leis no Estado de
Direito elas serão
ignoradas, pois no seu oposto há leis que se contradizem e práticas
político-econômicas liberadoras dos instintos primitivos. Os instintos da
agressão e destruição, o prazer pelo sofrimento do outro, o sadismo, ou seja,
um instinto que se torna independente e exacerbado assume a posição dominante.
Os impulsos de crueldade, de domínio, podem surgir de fontes que são
independentes da sexualidade, mas pode estar vinculada a esta. Quando olhamos para os conflitos em
Darfur http://www.pordarfur.org e no
Iêmen, http://msf.org.br/noticias/1649/ vemos
as duas possibilidades.
Para além
da preservação da espécie está a preservação da vida em sua essência, liberdade
e dignidade. O ódio, este
sentimento complexo, diz respeito aqui a uma forma de prazer, por que ele é um
negativo que consome grande quantidade de energia do(s) sujeito(s)
envolvido(s), ou seja, se auto consome. Quando
olhamos para Darfur vemos algo de um processo autofágico e divergimos de Freud
quando diz que “ao início da
vida, toda a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o
exterior, e que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava” (p.64). O que vemos no decorrer da vida é que
toda a libido e também a agressividade está sendo dirigida para o exterior,
pela flexibilização do superego. Mas de forma acertada ele
dirá: “as pessoas buscam
poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando
tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida” (p. 63). Na contramão dessa lógica vemos
“oásis” no mundo habitados pelo humano, essencialmente humano, com instintos
sublimados em suas relações com o mundo em que vive. Se o sentimento subjetivo
que os habita é de eternidade, enquanto conteúdo ideacional necessário à vida é
por que deste mundo não “é possível pular”,
ou seja, esse é um vínculo indissolúvel com o mundo externo, ou poderíamos
dizer “só com o real, não é possível dar conta”. O nível de violência na
sociedade atual é um sintoma de
que a relação conflituosa na arquitetura psíquica, id (inconsciente), ego (a
personalidade), superego (a censura) possui profundos problemas gestados
culturalmente no conceito do “moderno”. Se tudo passou a ser “natural” é por
que aquilo que inseria o sujeito na cultura e o levava a simbolizar o Édipo, a
lei, o nome-do-pai está sendo transgredido no conceito de “moderno” e
“natural”. E para isso muitas vezes a ciência se coloca a serviço da política
pelos subsídios que recebe. A perspectiva é que a humanidade em seu processo de
evolução fosse se apropriando cada vez mais do id, sendo o superego um mediador.
Mas vemos seja na situação de Darfur http://eyesondarfur.org ou da Síria, ou na economia
Europeia a propósito do artigo: Quando a elite perde o senso de realidade: http://www.zamanfrance.fr/article/quand-lites-perdent-sens-r-el que o id vem se apropriando do ego forçando a
economia do superego.
Os sintomas de forma global falam de que estrutura? Podemos pensar que
a estrutura cultural em que vivemos é permeada pela transgressão, se há
“flexibilização” do superego cultural. Na contraposição podemos colocar que
quando o ego se enamora de um objeto o “eu e o tu” são um só e que muitas vezes
a própria vida mental em seus pensamentos, sentimentos e percepções parecem
estranhas ao ego. Ou seja, o que vemos é a facilidade com a qual o ego se
flexibiliza na relação prazer-desprazer. Se todo o humano é evolução supomos
que do ego de uma criança ao de um idoso houve um desenvolvimento, se foi
quantitativo ou qualitativo é outra questão que diz respeito às vicissitudes e
ao destino que cada um dá aos seus desejos e conflitos. No ego muitas possibilidades
de sofrimento pode afastá-lo da realidade, negá-la pelo exercício do princípio
do prazer. Então isolar do ego tudo o que pode ser fonte de desprazer,
possibilitando a formação de um “puro ego
em busca de prazer”, no escopo do moderno, “uma questão de Direito”, temos um problema de
fronteira com a lei. Se a realidade não possibilita mediações para
simbolização, como elaborar os sofrimentos externos e internos que interagem
entre si? Aqui Freud nos lembra da importância de “dá-se o
primeiro passo no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve
dominar o desenvolvimento futuro” (p.76). Talvez não estejamos no futuro e a relação do
ego com o mundo que o cerca seja frágil, descartável, na relação online. Mas a
mente não perdeu sua complexidade e nossa história primitiva lá está preservada
e só dessa forma podemos compreender a violência, o ódio, o embrutecimento e a
falta da lei. Não esquecemos; os resíduos mnêmicos estão todos preservados. Ou
seja, na vida mental, “nada do que uma vez
se formou pode perecer e que ante a regressão, em circunstâncias apropriadas
pode ser trazido de novo à luz” (p.78).
Por
maiores que sejam os escombros dos conflitos seja em Darfur, na Síria, no mundo
árabe ou em várias partes do planeta, do trabalho escravo http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=75451 no futuro encontraremos vestígios dessas
tragédias. Estarão todas lá, como estão os acontecimentos da civilização
egípcia. O sintoma que é a violência, o ódio é o retorno do recalcado que não
foi simbolizado, não entrou na lei. O passado retorna nos assombrando com
vestimentas da atualidade. Na mente nada desaparece, todas as fases de seu
desenvolvimento na história humana e na história individual continuam a existir
e com fortes demandas. Da mesma forma os vestígios do embrião nas células do
adulto leva a ciência hoje a estudar a engenharia genética. Sabemos o quanto a
vida é árdua, seus inúmeros sofrimentos e muitas vezes tarefas que parecem
impossíveis. Necessitamos de acolhimento, escuta e compreensão. As satisfações
substitutivas sejam cultivando seu próprio jardim, nas diversas formas de arte,
através do conhecimento, no cultivo das formas de vida saudável, no esperar, no
aquietar-se, no contato com o universo, nos trabalhos voluntários, são caminhos
que aliviam a vida cotidiana.
Não é
possível viver sem o sofrimento, seja ele em que medida, intensidade, pois ele
atinge o nosso corpo que inexoravelmente envelhece, vem do mundo externo seja
da natureza ou dos relacionamentos muitas vezes de forma esmagadora e impiedosa,
embora estes últimos sejam os mais penosos. Mas uma satisfação irrestrita de
todas as necessidades como muitas vezes temos acompanhado na sociedade atual,
significa colocar o gozo como “direito ao prazer” acarretando implicações
nefastas a depender da estrutura psíquica do(s) sujeito(s). Ou seja, o
sofrimento só existe se o sentimos e o sentimos também em função de certas formas
pelas quais vivemos e pensamos que desencadeiam substancias químicas tóxicas
mentais. Freud escreve que “é extremamente
lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado
ao exame científico” (p.85), mas muitas são as contribuições da
neurociência hoje nesse sentido. Mas a flexibilidade de nosso aparelho mental
permite reorientar os objetivos instintivos como forma de lidar com as
frustações do mundo interno e externo pela construção de ilusões através da
imaginação. Nem sempre é possível realizar essas articulações mentais e nos
sofrimentos da vida a realidade torna-se insuportável possibilitando “marcas”
no ego. É o que Freud nos dirá: “cada um de nós se
comporta, sob determinado aspecto, como um paranoico, corrige algum aspecto do
mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse
delírio na realidade” (p. 89). Diante
dos sofrimentos da vida muitas vezes o sujeito prende-se aos objetos
pertencentes a este mundo, assim vemos os diversos estados de depressão, mania
e compulsão, mantendo uma relação emocional com os objetos.
A escolha
dos objetos na sociedade atual está em sua maioria vinculado ao poder seja do
dinheiro, do status social, do número de relacionamentos, da visibilidade, a beleza do corpo, da marca do carro,
do ipod, tablets, da marca da roupa, da juventude eterna. É possível que estas
escolhas estejam no plano do gozo narcísico, pois estes objetos são
representantes do ego em seus significantes como “indispensável” para as
relações. Então “a maioria dessas
satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer
obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite
de inverno e recolhê-la novamente” (Freud, 1930 p.95). Assim
quando olhamos para Darfur, Síria,
os refugiados, nos interrogamos quais são seus objetos de escolha. E compreendemos que seus objetos de
escolha estão mais vinculados à sobrevivência física e psíquica. Mas nada nos
impede de afirmar que as escolhas da sociedade “dos bem sucedidos” podem estar
vinculados também a sobrevivência física e psíquica, com formatações
diferentes, onde a economia de energia é despendida no consumo supérfluo no
extrapolar da constituição psíquica para sobreviver mesmo que seja pela aproximação
de uma forma mais perversa. Estes são muitas vezes a fonte de muitos
sofrimentos os quais o homem não tem como intervir na grande maioria das vezes.
O poder da natureza, a fragilidade de nossos corpos e o difícil ajuste aos
relacionamentos seja na família, trabalho, sociedade leva-nos muitas vezes a
submeter-nos ao inevitável, mesmo que esse inevitável seja uma parcela de nossa
constituição psíquica que ainda não está pronta para lidar com determinadas
circunstancias. Freud em um desabafo de sua desilusão para com a civilização
escreve: “o que
chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça
e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às
condições primitivas... todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos
contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma
civilização” (p.93). Há
milhares de anos o homem anseia com o controle das forças da natureza, com uma
vida fácil e feliz, mesmo que a custa ao longo da história de muita opressão,
derramamento de sangue, escravidão, venda de seres humanos, órgãos, matança,
guerras em função de crenças religiosas. Se o sentimento de prazer é algo
subjetivo, o significado e significante para cada ser humanos ou grupos são
diversos de acordo com o superego, o destino que dão ao seu desejo. Se desde a
nossa mais remota origem o homem através da utilização de instrumentos “recria seus próprios
órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento” (Freud,
1930 p.97). Há que
interrogarmos o que representa os objetos criados pelo homem moderno para seu
uso pessoal. Um retorno ao narcisismo primário? Podemos aqui associar alguns
objetos como as câmaras fotográficas e filmadoras materializam a rememoração, memória,
a casa como o útero materno, a escrita como a voz de uma pessoa ausente, etc.
Se cada vez mais a sociedade através da cultura, das leis, não renúncia ao
Édipo e dá livre curso ao incesto, seja esse compreendido em sua forma literal
ou em outros significantes mais invisíveis que se revelam nos sintomas através
de suas diversas doenças físicas adquiridas, herdadas, desenvolvidas ou
psíquicas nesta mesma configuração, havemos de concordar com a desilusão da
frase de Freud ou nos iludirmos que o homem será capaz de retroceder, para
continuar evoluindo, ou seja, terá que retomar a lei e ao recalque.
O aspecto
contraditório das religiões de ao tempo em que foi motivo de muitas guerras,
também contribuíram para elevar o nível da civilização, ainda necessita ser
apaziguado. A categoria “civilização” entra em cena para regular os
relacionamentos sociais, tanto que é muito comum a frase “vamos resolver isso
civilizadamente”. Quando isso não é possível os relacionamentos ficam “sujeitos à vontade
arbitrária do indivíduo”, ou
seja, vale a lei do mais forte, o que remete até onde cada indivíduo está
disposto a renunciar aos seus instintos com a finalidade de não deixar o outro
a “mercê da força bruta”. O conjunto dos homens que compõe a sociedade imprimem
também modificações aos instintos, o que não deixa de ser a tarefa econômica de
todas as vidas, e sua sublimação, que torna possíveis atividades psíquicas
superiores, científicas, artística. Embora para algumas seja mais difícil em
função de determinados traços de caráter.
Diante das
tragédias no mundo atual, olhamos para o homem “primevo” e vemos suas
articulações e mediações para sobreviver: “o outro passou a ser
um companheiro de trabalho de valor, a família foi o lugar de segurança para
sua satisfação genital, pois “não apareceu mais como um hóspede que surge
repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo
tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente” (p.
105). Agora ele não precisa
lutar para satisfazer-se sexualmente. Na sequencia Freud escreverá: “Quando isso
aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou,
em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea,
não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no
interesse deles, a permanecer com o macho mais forte” (p.105). Então que aconteceu com a
civilização? Por que a sociedade atual caminha para destituir a família de sua
função, o que será colocado no lugar? O homem voltará a caçar para se alimentar
e para dá livre fluxo aos seus instintos sexuais? Se a função de vencer os
tabus foi fazer valer o poder do amor, “que fez o homem
relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em privar-se
daquela parte de si própria que dela fora separada — seu filho” (p.106), a flexibilidade do superego imposta
pela cultura, coloca em discussão que “amor e necessidade
são também os pais da civilização”. Reconhecer
que o amor é um investimento que requer uma reserva defensiva contra possíveis
sofrimentos de perda por infidelidade ou morte é o que os sábios de todos os
tempos advertem. Muitas são as direções do amor, “talvez São Francisco
de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar
um sentimento interno de felicidade... essa disposição para o amor universal
pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar
” (Freud, 1930 p.107).
A vida em
família é o modo mais antigo filogeneticamente na história da humanidade.
Separar-se da família sempre foi algo difícil. A sociedade atual através da
mídia e das leis tem construído uma concepção de que família “é antiquado”,
“não é necessário, cada um pode viver sozinho”, o Estado dará a segurança em
relação a desagregação subjetiva inerente à existência humana e o Direito vem
sustentando isso. É comum ouvir de juristas que a instituição família nos
moldes pai, mãe e filho faliu. Supomos e já o dissemos, que o que vem
fracassando na família diz respeito a lei, ao nome-do-pai, a castração ao
superego, ao recalque. Ou seja, uma família sem lei tem que fracassar e esse
fracasso delineará um sintoma que refletirá na sociedade. Se a sociedade dos
primórdios necessitou em sua fase totêmica da lei para se constituir enquanto
tal, para desconstruir hoje é necessário “retirar” a lei. É assim que Freud vai
nos lembrar: “A vida
sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada;
dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função,
tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente,
justifica-se supor que sua importância enquanto fonte de sentimentos de
felicidade e, portanto, na realização de nosso objetivo na vida, diminuiu
sensivelmente” (Freud, 1930 p.110).
A sociedade não se contenta com as relações que lhe são “oferecidas” como
vínculos uns com os outros pelo trabalho, interesses e afinidades comuns. Contenta-se somente em extrair sua
energia da sexualidade. Nos mostra que ainda temos longos caminhos a percorrer
na reelaboração da energia libidinal, de forma a fortalecer os vínculos
comunitários e quem sabe assim muitas formas de violência deixem de existir.
Nos instintos humanos devemos levar em conta uma grande dose de agressividade.
Assim seu próximo torna-se um objeto sexual, um ajudante, alguém em quem ele
pode descarregar sua agressividade, violenta-lo sexualmente, explorar sua
capacidade de trabalho com uma compensação irrisória, roubar-se “legalmente”
seus bens, torturá-lo psicológica e fisicamente não só literalmente no real,
mas através de jornadas e exigências de trabalho impossíveis de serem
cumpridas, humilhá-lo dizendo que está dando feedback, ou “falando a verdade”
sobre a pessoa, enfim causar-lhe todo tipo de sofrimento, tortura-lo e matá-lo.
Quando pensamos em todos os conflitos armados ao longo da história e os atuais
como Darfur http://veja.abril.com.br/241208/p_088.shtml revela o homem como uma “besta selvagem, a
quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho” (p.116). Isso significa que a civilização
necessita de esforços imensos para manter sob controle os instintos agressivos,
sádicos e cruéis do homem, mas a lei do Direito ainda não é capaz de cercear as
manifestações mais refinadas da agressividade humana do campo do perverso, que
convive em sociedade como se fosse uma neurose comum.
Nessas
fronteiras geográficas e mentais o ego se acha cheio de libido narcísica e
objetal que delineará as fronteiras das estruturas neuróticas, psicóticas e
perversas. Assim nessas fronteiras ao lado do impulso para preservar a vida há
inexoravelmente um impulso contrário. Nessa dialética se o equilíbrio de rompe
e o que prevalece é o instinto de morte, a vida se esvai em seus mais variados
sintomas, mas vinculado ao instinto de agressividade está o sadismo, que mesmo
destituído de satisfação sexual é marcado por um elevado grau narcisista, que
presenteia o ego com uma suposta onipotência. Se prevalece a pulsão de vida uma
parte do ego se coloca contra o ego constituindo o superego, que em forma de
consciência barrando os instintos agressivos através de sentimento de culpa,
seja como consequência de atos de agressão imaginados ou realizados, que podem
revelar o remorso. Como nada pode ser escondido do superego, então uma mudança
só é possível se a autoridade é internalizada pelo superego. “Os fenômenos da
consciência atingem então um estágio mais elevado”, onde os homens podem desenvolver sua
virtuosidade no campo da ética, do bem comum. Se o homem primitivo atribuía a
culpa de seus atos aos fetiches ou mitos, numa defesa projetiva, não avançamos
muito em relação a essa relação com os fetiches e mitos. A autoridade seja
externa ou interna do superego sempre motivou o homem ao sentimento de culpa e
na sequencia o remorso e quando não se tem o medo da autoridade e do superego,
resta a violência em todos os seus níveis e instituições. A renúncia das
satisfações instintivas, mesmo que escondida do superego, e a punição exigida
por este, que é uma continuidade da introjeção da autoridade externa é
fundamental para o estabelecimento de relações harmônicas. Nas relações de
poder e na inversão de papeis e funções na sociedade atual nas relações pais e
filhos fica fragilizada a elaboração dos instintos primários e a consciência
que é a causa da renúncia do instinto, ao mesmo tempo em que a renúncia ao
instinto é uma fonte de consciência necessita ser repensado. Por isso a
estrutura familiar tem sua importância, deveria ser o escoadouro, o espaço de
renúncia aos instintos, o lugar da identificação com a autoridade, da lei, onde
os instintos agressivos seriam apaziguados sem necessitar serem transferidos para
outros objetos na sociedade.
Todos
participamos do desenvolvimento da humanidade e ao mesmo tempo percorremos
nosso destino. Não só no universo e a astronomia tem demonstrado isso, mas
também em todos os processos que envolvem o homem, seja filogenético, psíquico,
social forças lutam entre si o que resulta em permanente mudança, mas para onde
caminha essa mudança quando pensamos o psiquismo do homem. Sem o
desenvolvimento do superego no sentido de uma evolução cultural, o superego do
indivíduo poderá não realizar a lei necessária para sua evolução. Se uma ética
não tocar nas dores da civilização, em seus equívocos, no sentido de uma “tentativa
terapêutica - como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego,
algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades
culturais” (p.145), sabemos
que a agressividade mútua, a violência a inexistência de valores, tenderá a
aumentar, já existe até o que se costuma chamar “a indústria do medo”. O que
Freud chama de “as ordens culturais
do superego, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo” (p. 145), possui o significado da saúde mental a
ser conquistada pelo homem.
“A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que
ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua
vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Os
homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua
ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último
homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação,
de sua infelicidade e de sua ansiedade” (p.147).
Mesmo com o sofrimento que a sociedade atual pode nos causar, ou pelo
destino que damos ao nosso desejo, nos achamos indefesos contra o sofrimento diante das vicissitudes da vida, das intempéries
da natureza, quando amamos, quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor.
Mas mesmo assim o amor, as criações científicas, as atitudes estéticas, a
relação com a natureza, com o universo, continuam sendo caminhos pelo qual o
homem apazigua-se. A questão de quanta satisfação o homem pode obter no mundo e
de como tornar-se independente dele é o que cada um tem que descobrir em seu mundo interior e que pode salvá-lo
dele mesmo.
Referencia
FREUD,
S. - O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930 [1929]). Obras Completas de
Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996.