25 de maio de 2013

Sofrimento e Fragilidade

“A civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto”
  
Neste artigo vamos discorrer sobre aspectos do “mal-estar” na sociedade atual, refletindo sobre renúncia instintual, sofrimento e fragilidade,  tarefa essa nada fácil; por isso, começamos, com a frase de Freud “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” (p.102). Lembremos que Kant também pensou assim ao descrever o imperativo categórico. Essa colocação de Freud não deixa de ser um imperativo categórico. A vida na midiática sociedade atual traz de frente o binômio felicidade X infelicidade como quase sinônimo de sucesso. Se o desconforto ou mal-estar deveria ser só a contramão do estado de hedonismo procurado e “vivenciado” como ilusão, estamos lidando com a relação do real, imaginário e por que não dizer do afastamento do real, ou de sua não simbolização. Os noticiários sobre a violência no mundo nos revelam que as restrições que seriam funções da sociedade e de suas instituições exercerem, ou seja, a lei, está sendo flexibilizada cada vez mais em favor das exigências instintuais ou dos interesses político-econômicos. Estamos às portas do imperativo dos instintos?

Assim podemos começar falado que se o incesto é antissocial e vemos cada vez mais os abusos sexuais contra crianças e adolescentes no ambiente familiar crescerem, para onde caminhamos? O desenvolvimento humano é organicamente determinado pela hereditariedade, mas moldado pela educação. No transcurso desde ocorreu o que Freud denomina de uma “repressão orgânica que prepara o caminho para a civilização”. É nesta concepção que se constrói a noção do superego, como a mais antiga relação objetal do homem, instancia de censura que insere o sujeito na cultura. Essa censura nos leva a consciência do que devemos e não devemos fazer. Se na sociedade em que vivemos parte dessa relação do ego com o superego está sendo flexibilizada e o destino da lei é ser transgredida e ignorada estamos falando de uma estrutura de relações que comporta o contexto do perverso. Por mais que se promulguem leis no Estado de Direito elas  serão ignoradas, pois no seu oposto há leis que se contradizem e práticas político-econômicas liberadoras dos instintos primitivos. Os instintos da agressão e destruição, o prazer pelo sofrimento do outro, o sadismo, ou seja, um instinto que se torna independente e exacerbado assume a posição dominante. Os impulsos de crueldade, de domínio, podem surgir de fontes que são independentes da sexualidade, mas pode estar vinculada a esta. Quando olhamos para os conflitos em Darfur http://www.pordarfur.org e no Iêmen, http://msf.org.br/noticias/1649/ vemos as duas possibilidades.

Para além da preservação da espécie está a preservação da vida em sua essência, liberdade e dignidade. O ódio, este sentimento complexo, diz respeito aqui a uma forma de prazer, por que ele é um negativo que consome grande quantidade de energia do(s) sujeito(s) envolvido(s), ou seja, se auto consome. Quando olhamos para Darfur vemos algo de um processo autofágico e divergimos de Freud quando diz que ao início da vida, toda a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o exterior, e que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava” (p.64). O que vemos no decorrer da vida é que toda a libido e também a agressividade está sendo dirigida para o exterior, pela flexibilização do superego. Mas de forma acertada ele dirá: “as pessoas buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida” (p. 63). Na contramão dessa lógica vemos “oásis” no mundo habitados pelo humano, essencialmente humano, com instintos sublimados em suas relações com o mundo em que vive. Se o sentimento subjetivo que os habita é de eternidade, enquanto conteúdo ideacional necessário à vida é por que deste mundo não “é possível pular”, ou seja, esse é um vínculo indissolúvel com o mundo externo, ou poderíamos dizer “só com o real, não é possível dar conta”. O nível de violência na sociedade atual é um sintoma de que a relação conflituosa na arquitetura psíquica, id (inconsciente), ego (a personalidade), superego (a censura) possui profundos problemas gestados culturalmente no conceito do “moderno”. Se tudo passou a ser “natural” é por que aquilo que inseria o sujeito na cultura e o levava a simbolizar o Édipo, a lei, o nome-do-pai está sendo transgredido no conceito de “moderno” e “natural”. E para isso muitas vezes a ciência se coloca a serviço da política pelos subsídios que recebe. A perspectiva é que a humanidade em seu processo de evolução fosse se apropriando cada vez mais do id, sendo o superego um mediador. Mas vemos seja na situação de Darfur http://eyesondarfur.org ou da Síria, ou na economia Europeia a propósito do artigo: Quando a elite perde o senso de realidade:  http://www.zamanfrance.fr/article/quand-lites-perdent-sens-r-el que o id vem se apropriando do ego forçando a economia do superego.

Os sintomas de forma global falam de que estrutura? Podemos pensar que a estrutura cultural em que vivemos é permeada pela transgressão, se há “flexibilização” do superego cultural. Na contraposição podemos colocar que quando o ego se enamora de um objeto o “eu e o tu” são um só e que muitas vezes a própria vida mental em seus pensamentos, sentimentos e percepções parecem estranhas ao ego. Ou seja, o que vemos é a facilidade com a qual o ego se flexibiliza na relação prazer-desprazer. Se todo o humano é evolução supomos que do ego de uma criança ao de um idoso houve um desenvolvimento, se foi quantitativo ou qualitativo é outra questão que diz respeito às vicissitudes e ao destino que cada um dá aos seus desejos e conflitos. No ego muitas possibilidades de sofrimento pode afastá-lo da realidade, negá-la pelo exercício do princípio do prazer. Então isolar do ego tudo o que pode ser fonte de desprazer, possibilitando a formação de um “puro ego em busca de prazer”, no escopo do moderno, “uma questão de Direito”, temos um problema de fronteira com a lei. Se a realidade não possibilita mediações para simbolização, como elaborar os sofrimentos externos e internos que interagem entre si? Aqui Freud nos lembra da importância de “dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro” (p.76). Talvez não estejamos no futuro e a relação do ego com o mundo que o cerca seja frágil, descartável, na relação online. Mas a mente não perdeu sua complexidade e nossa história primitiva lá está preservada e só dessa forma podemos compreender a violência, o ódio, o embrutecimento e a falta da lei. Não esquecemos; os resíduos mnêmicos estão todos preservados. Ou seja, na vida mental, “nada do que uma vez se formou pode perecer e que ante a regressão, em circunstâncias apropriadas pode ser trazido de novo à luz” (p.78).

Por maiores que sejam os escombros dos conflitos seja em Darfur, na Síria, no mundo árabe ou em várias partes do planeta, do trabalho escravo http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=75451 no futuro encontraremos vestígios dessas tragédias. Estarão todas lá, como estão os acontecimentos da civilização egípcia. O sintoma que é a violência, o ódio é o retorno do recalcado que não foi simbolizado, não entrou na lei. O passado retorna nos assombrando com vestimentas da atualidade. Na mente nada desaparece, todas as fases de seu desenvolvimento na história humana e na história individual continuam a existir e com fortes demandas. Da mesma forma os vestígios do embrião nas células do adulto leva a ciência hoje a estudar a engenharia genética. Sabemos o quanto a vida é árdua, seus inúmeros sofrimentos e muitas vezes tarefas que parecem impossíveis. Necessitamos de acolhimento, escuta e compreensão. As satisfações substitutivas sejam cultivando seu próprio jardim, nas diversas formas de arte, através do conhecimento, no cultivo das formas de vida saudável, no esperar, no aquietar-se, no contato com o universo, nos trabalhos voluntários, são caminhos que aliviam a vida cotidiana.

Não é possível viver sem o sofrimento, seja ele em que medida, intensidade, pois ele atinge o nosso corpo que inexoravelmente envelhece, vem do mundo externo seja da natureza ou dos relacionamentos muitas vezes  de forma esmagadora e impiedosa, embora estes últimos sejam os mais penosos. Mas uma satisfação irrestrita de todas as necessidades como muitas vezes temos acompanhado na sociedade atual, significa colocar o gozo como “direito ao prazer” acarretando implicações nefastas a depender da estrutura psíquica do(s) sujeito(s). Ou seja, o sofrimento só existe se o sentimos e o sentimos também em função de certas formas pelas quais vivemos e pensamos que desencadeiam substancias químicas tóxicas mentais. Freud escreve que “é extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico” (p.85), mas muitas são as contribuições da neurociência hoje nesse sentido. Mas a flexibilidade de nosso aparelho mental permite reorientar os objetivos instintivos como forma de lidar com as frustações do mundo interno e externo pela construção de ilusões através da imaginação. Nem sempre é possível realizar essas articulações mentais e nos sofrimentos da vida a realidade torna-se insuportável possibilitando “marcas” no ego. É o que Freud nos dirá: “cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranoico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade” (p. 89). Diante dos sofrimentos da vida muitas vezes o sujeito prende-se aos objetos pertencentes a este mundo, assim vemos os diversos estados de depressão, mania e compulsão, mantendo uma relação emocional com os objetos.

A escolha dos objetos na sociedade atual está em sua maioria vinculado ao poder seja do dinheiro, do status social, do número de relacionamentos, da visibilidade,  a beleza do corpo, da marca do carro, do ipod, tablets, da marca da roupa, da juventude eterna. É possível que estas escolhas estejam no plano do gozo narcísico, pois estes objetos são representantes do ego em seus significantes como “indispensável” para as relações. Então “a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente” (Freud, 1930 p.95). Assim quando olhamos para Darfur, Síria, os refugiados, nos interrogamos quais são seus objetos de escolha. E compreendemos que seus objetos de escolha estão mais vinculados à sobrevivência física e psíquica. Mas nada nos impede de afirmar que as escolhas da sociedade “dos bem sucedidos” podem estar vinculados também a sobrevivência física e psíquica, com formatações diferentes, onde a economia de energia é despendida no consumo supérfluo no extrapolar da constituição psíquica para sobreviver mesmo que seja pela aproximação de uma forma mais perversa. Estes são muitas vezes a fonte de muitos sofrimentos os quais o homem não tem como intervir na grande maioria das vezes. O poder da natureza, a fragilidade de nossos corpos e o difícil ajuste aos relacionamentos seja na família, trabalho, sociedade leva-nos muitas vezes a submeter-nos ao inevitável, mesmo que esse inevitável seja uma parcela de nossa constituição psíquica que ainda não está pronta para lidar com determinadas circunstancias. Freud em um desabafo de sua desilusão para com a civilização escreve: “o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas... todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização” (p.93). Há milhares de anos o homem anseia com o controle das forças da natureza, com uma vida fácil e feliz, mesmo que a custa ao longo da história de muita opressão, derramamento de sangue, escravidão, venda de seres humanos, órgãos, matança, guerras em função de crenças religiosas. Se o sentimento de prazer é algo subjetivo, o significado e significante para cada ser humanos ou grupos são diversos de acordo com o superego, o destino que dão ao seu desejo. Se desde a nossa mais remota origem o homem através da utilização de instrumentos “recria seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento” (Freud, 1930 p.97). Há que interrogarmos o que representa os objetos criados pelo homem moderno para seu uso pessoal. Um retorno ao narcisismo primário? Podemos aqui associar alguns objetos como as câmaras fotográficas e filmadoras materializam a rememoração, memória, a casa como o útero materno, a escrita como a voz de uma pessoa ausente, etc. Se cada vez mais a sociedade através da cultura, das leis, não renúncia ao Édipo e dá livre curso ao incesto, seja esse compreendido em sua forma literal ou em outros significantes mais invisíveis que se revelam nos sintomas através de suas diversas doenças físicas adquiridas, herdadas, desenvolvidas ou psíquicas nesta mesma configuração, havemos de concordar com a desilusão da frase de Freud ou nos iludirmos que o homem será capaz de retroceder, para continuar evoluindo, ou seja, terá que retomar a lei e ao recalque.

O aspecto contraditório das religiões de ao tempo em que foi motivo de muitas guerras, também contribuíram para elevar o nível da civilização, ainda necessita ser apaziguado. A categoria “civilização” entra em cena para regular os relacionamentos sociais, tanto que é muito comum a frase “vamos resolver isso civilizadamente”. Quando isso não é possível os relacionamentos ficam “sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo”, ou seja, vale a lei do mais forte, o que remete até onde cada indivíduo está disposto a renunciar aos seus instintos com a finalidade de não deixar o outro a “mercê da força bruta”. O conjunto dos homens que compõe a sociedade imprimem também modificações aos instintos, o que não deixa de ser a tarefa econômica de todas as vidas, e sua sublimação, que torna possíveis atividades psíquicas superiores, científicas, artística. Embora para algumas seja mais difícil em função de determinados traços de caráter.

Diante das tragédias no mundo atual, olhamos para o homem “primevo” e vemos suas articulações e mediações para sobreviver: “o outro passou a ser um companheiro de trabalho de valor, a família foi o lugar de segurança para sua satisfação genital, pois “não apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente” (p. 105). Agora ele não precisa lutar para satisfazer-se sexualmente. Na sequencia Freud escreverá: “Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte” (p.105). Então que aconteceu com a civilização? Por que a sociedade atual caminha para destituir a família de sua função, o que será colocado no lugar? O homem voltará a caçar para se alimentar e para dá livre fluxo aos seus instintos sexuais? Se a função de vencer os tabus foi fazer valer o poder do amor, “que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada — seu filho” (p.106), a flexibilidade do superego imposta pela cultura, coloca em discussão que “amor e necessidade são também os pais da civilização”. Reconhecer que o amor é um investimento que requer uma reserva defensiva contra possíveis sofrimentos de perda por infidelidade ou morte é o que os sábios de todos os tempos advertem. Muitas são as direções do amor, “talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade... essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar ” (Freud, 1930 p.107).

A vida em família é o modo mais antigo filogeneticamente na história da humanidade. Separar-se da família sempre foi algo difícil. A sociedade atual através da mídia e das leis tem construído uma concepção de que família “é antiquado”, “não é necessário, cada um pode viver sozinho”, o Estado dará a segurança em relação a desagregação subjetiva inerente à existência humana e o Direito vem sustentando isso. É comum ouvir de juristas que a instituição família nos moldes pai, mãe e filho faliu. Supomos e já o dissemos, que o que vem fracassando na família diz respeito a lei, ao nome-do-pai, a castração ao superego, ao recalque. Ou seja, uma família sem lei tem que fracassar e esse fracasso delineará um sintoma que refletirá na sociedade. Se a sociedade dos primórdios necessitou em sua fase totêmica da lei para se constituir enquanto tal, para desconstruir hoje é necessário “retirar” a lei. É assim que Freud vai nos lembrar:“A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente” (Freud, 1930 p.110).  A sociedade não se contenta com as relações que lhe são “oferecidas” como vínculos uns com os outros pelo trabalho, interesses e afinidades comuns.  Contenta-se somente em extrair sua energia da sexualidade. Nos mostra que ainda temos longos caminhos a percorrer na reelaboração da energia libidinal, de forma a fortalecer os vínculos comunitários e quem sabe assim muitas formas de violência deixem de existir. Nos instintos humanos devemos levar em conta uma grande dose de agressividade. Assim seu próximo torna-se um objeto sexual, um ajudante, alguém em quem ele pode descarregar sua agressividade, violenta-lo sexualmente, explorar sua capacidade de trabalho com uma compensação irrisória, roubar-se “legalmente” seus bens, torturá-lo psicológica e fisicamente não só literalmente no real, mas através de jornadas e exigências de trabalho impossíveis de serem cumpridas, humilhá-lo dizendo que está dando feedback, ou “falando a verdade” sobre a pessoa, enfim causar-lhe todo tipo de sofrimento, tortura-lo e matá-lo. Quando pensamos em todos os conflitos armados ao longo da história e os atuais como Darfur http://veja.abril.com.br/241208/p_088.shtml revela o homem como uma “besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho” (p.116). Isso significa que a civilização necessita de esforços imensos para manter sob controle os instintos agressivos, sádicos e cruéis do homem, mas a lei do Direito ainda não é capaz de cercear as manifestações mais refinadas da agressividade humana do campo do perverso, que convive em sociedade como se fosse uma neurose comum.

Nessas fronteiras geográficas e mentais o ego se acha cheio de libido narcísica e objetal que delineará as fronteiras das estruturas neuróticas, psicóticas e perversas. Assim nessas fronteiras ao lado do impulso para preservar a vida há inexoravelmente um impulso contrário. Nessa dialética se o equilíbrio de rompe e o que prevalece é o instinto de morte, a vida se esvai em seus mais variados sintomas, mas vinculado ao instinto de agressividade está o sadismo, que mesmo destituído de satisfação sexual é marcado por um elevado grau narcisista, que presenteia o ego com uma suposta onipotência. Se prevalece a pulsão de vida uma parte do ego se coloca contra o ego constituindo o superego, que em forma de consciência barrando os instintos agressivos através de sentimento de culpa, seja como consequência de atos de agressão imaginados ou realizados, que podem revelar o remorso. Como nada pode ser escondido do superego, então uma mudança só é possível se a autoridade é internalizada pelo superego. “Os fenômenos da consciência atingem então um estágio mais elevado”, onde os homens podem desenvolver sua virtuosidade no campo da ética, do bem comum. Se o homem primitivo atribuía a culpa de seus atos aos fetiches ou mitos, numa defesa projetiva, não avançamos muito em relação a essa relação com os fetiches e mitos. A autoridade seja externa ou interna do superego sempre motivou o homem ao sentimento de culpa e na sequencia o remorso e quando não se tem o medo da autoridade e do superego, resta a violência em todos os seus níveis e instituições. A renúncia das satisfações instintivas, mesmo que escondida do superego, e a punição exigida por este, que é uma continuidade da introjeção da autoridade externa é fundamental para o estabelecimento de relações harmônicas. Nas relações de poder e na inversão de papeis e funções na sociedade atual nas relações pais e filhos fica fragilizada a elaboração dos instintos primários e a consciência que é a causa da renúncia do instinto, ao mesmo tempo em que a renúncia ao instinto é uma fonte de consciência necessita ser repensado. Por isso a estrutura familiar tem sua importância, deveria ser o escoadouro, o espaço de renúncia aos instintos, o lugar da identificação com a autoridade, da lei, onde os instintos agressivos seriam apaziguados sem necessitar serem transferidos para outros objetos na sociedade.

Todos participamos do desenvolvimento da humanidade e ao mesmo tempo percorremos nosso destino. Não só no universo e a astronomia tem demonstrado isso, mas também em todos os processos que envolvem o homem, seja filogenético, psíquico, social forças lutam entre si o que resulta em permanente mudança, mas para onde caminha essa mudança quando pensamos o psiquismo do homem. Sem o desenvolvimento do superego no sentido de uma evolução cultural, o superego do indivíduo poderá não realizar a lei necessária para sua evolução. Se uma ética não tocar nas dores da civilização, em seus equívocos, no sentido de uma “tentativa terapêutica - como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais” (p.145), sabemos que a agressividade mútua, a violência a inexistência de valores, tenderá a aumentar, já existe até o que se costuma chamar “a indústria do medo”. O que Freud chama de “as ordens culturais do superego, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo” (p. 145), possui o significado da saúde mental a ser conquistada pelo homem.A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade” (p.147). Mesmo com o sofrimento que a sociedade atual pode nos causar, ou pelo destino que damos ao nosso desejo, nos achamos indefesos contra o sofrimento  diante das vicissitudes da vida, das intempéries da natureza, quando amamos, quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Mas mesmo assim o amor, as criações científicas, as atitudes estéticas, a relação com a natureza, com o universo, continuam sendo caminhos pelo qual o homem apazigua-se. A questão de quanta satisfação o homem pode obter no mundo e de como tornar-se independente dele é o que cada um  tem que descobrir em seu  mundo interior e que pode salvá-lo dele mesmo.

Referencia
FREUD, S.  -  O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930 [1929]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

15 de maio de 2013

Sonhos e Realidades

A revista Scientific American – Mente Cérebro publica neste mês de maio este belíssimo artigo, que fala através de metáfora, dos mestres Freud e Jung, da sensibilidade, do amor, da condição do humano, que nos habita e a fugacidade de nossas vidas, a qual temos cotidianamente elaborar, “dar conta”.



14 de maio de 2013

Psicanálise: a arte da fala e da escrita


“A psicanálise, devo lembrar a título de preâmbulo, é uma disciplina que no conjunto das ciências se apresenta a nós com uma posição realmente particular. Costumam dizer que ela não é uma ciência propriamente dita, o que parece implicar por contraste que ela é simplesmente uma arte. É um erro, se por isso entendermos que ela é tão semente uma técnica, um método operacional, um conjunto de receitas”.
“Mas não é um erro se empregarmos essa palavra “arte”, no sentido em que era empregada na Idade Média, quando se falava das artes liberais – vocês conhecem a série que vai da astronomia à dialética, passando pela aritmética, a geometria, a música e a gramática”.
“É nos certamente difícil apreender hoje, dessas artes ditas liberais, a função e alcance na vida e no pensamento dos mestre medievais. No entanto, é certo que o que as caracteriza e as distingue das ciências que delas teriam se originado é que conservam em primeiro plano o que se pode chamar uma relação fundamental com a medida do homem”.
“Pois bem, a psicanálise talvez seja atualmente a única disciplina comparável a essas artes liberais, pelo que preserva dessa relação de medida do homem consigo mesmo – relação interna, fechada sobre si mesma, inesgotável, cíclica, que o uso da fala comporta por excelência. É justamente por isso que a experiência analítica não é objetivável. Comporta sempre no seio de si mesma a emergência de uma verdade que não pode ser dita, porque o que a constitui é a fala e seria preciso, de certo modo, dizer a própria fala, o que é, propriamente falando, o que não pode ser dito enquanto fala”.
O Mito Individual do Neurótico – Jacques Lacan

Na série Paradoxos de Lacan acompanhamos suas falas, naquilo que muitas vezes parecem estar na contramão, mas é apenas uma forma de recolocar os profundos dilemas da existência humana. Em O Mito Individual do Neurótico vemos a fala sobre a psicanálise de forma particular, articulando-a como uma arte, como na Idade Média colocava-se  a astronomia, a dialética, aritmética, a geometria, a música e a gramática e que conservam uma relação fundamental com o humano. A psicanálise conserva essa relação com o humano de forma única, pois o acesso ao profundo, pela fala permite o acesso ao que não pode ser dito pela fala. E a psicanálise é uma técnica científica e também uma arte, na medida em que permite ao sujeito, a livre expressão de seu inconsciente, seja através da literatura, do teatro, do cinema, da música da imagem fotográfica e da fala, que resinifica a história do sujeito. 

12 de maio de 2013

"A bondade sublime é como a água"


A bondade sublime é como a água
A água, na sua bondade, beneficia os dez mil seres sem preferência
Permanece nos lugares desprezados pelos outros
Por isso assemelha-se ao Caminho
Viva com bondade na terra
Pense com bondade, como um lago
Conviva com bondade, como irmãos
Fale com a bondade de quem tem palavra
Governe com a bondade de quem tem ordem
Realize com a bondade de quem é capaz
Aja com bondade todo o tempo
Não dispute, assim não haverá rivalidade


TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

8 de maio de 2013

Direitos Humanos e Saúde Mental

Há que se pensar a questão de Direitos Humanos e Saúde Mental nas categorias do outro dialético, constituído de responsabilidade e liberdade, que é a condição da razão. Se há prejuízo em sua capacidade de julgamento e contato com o real, há liberdade e responsabilidade. O sujeito não está destituído de sua subjetividade e seus afetos. O problema ético é de direção clínica. A crise e seus sintomas sejam eles delírios, manias, depressão, alucinação, processos obsessivos compulsivos, uso de substancias psicoativas, ansiedade, angústia, sadismo, masoquismo, etc. Que em muitos sujeitos podem estar “colados” ao ego como parte integrante deste, não pode prescindir da alteridade do sujeito, sua autonomia e respeito. Se os sintomas de defesa são incapacitantes para o trabalho ou para a autonomia, há que resgatá-los para facilitar o processo transferencial necessário às associações inconscientes em um tratamento humanizado, de acolhimento, escuta “fina”, resgate da história do sujeito para que seja possível a simbolização de seu mundo interno e ele não seja morto simbolicamente. Só assim é possível contrapor a estigmatização, (que abrange negros, mulheres, crianças, desempregados, pobres, pessoas com dificuldades, idosos, "doentes mentais") que se apoia em uma “condição original” e anula a condição humana. O direito ao atendimento médico-psicológico em liberdade, a falar em vez de calar com o medicamento (a medicação é necessária em alguns casos, mas não como clínica), pois como clínica aliena o sujeito a si próprio, ao trabalho e moradia, ao acompanhamento das famílias, para que sejam preparadas a cuidar de quem precisa de cuidados específicos. As situações mais graves dizem respeito às crianças e adolescentes que são colocadas em instituições para medicalização.
  
A lei de internamento compulsório, ou seja, de um internamento judicial ou um sistema que se estabelece de controle judicial de internamento e assim de limpeza higiênica histórica da sociedade? Lembremo-nos dos leprosos dos tempos remotos e as leis que os segregavam. Esta tem sido a história da humanidade. Se a família não consegue lidar com os sintomas de seus membros cabe essa transferência no sentido psicanalítico ao Estado de Direito? Como é possível construir uma “clínica da cura” com segregação? Seja no sentido do preconceito, da higienização ou do “status” do “lugar de poder” em que o profissional se coloca? Afinal “há um outro”, doente, no sentido a que Lacan se refere, onde não há implicação dos profissionais e do próprio Estado. No mundo em que vivemos precisamos como os Médicos Sem Fronteiras de Psicólogos Sem Fronteiras.

Quando são noticiados os casos de refugiados, prisioneiros, trabalho escravo, moradores de rua, miséria, não há palavras articulando Direitos Humanos e Saúde Mental, destas categorias constituintes do Estados de Direito. Qual ética está sendo articulada? O direito a liberdade para uma saúde mental que já possui seus comprometimentos, é o direito de falar, de significar, reconstruir a subjetividade, a identidade, um ideal de ego. Então podemos interrogar: como matar um sujeito que leva o diagnóstico de “doente mental”? Pelo diagnóstico, pelo tratamento sem humanização, sem acolhimento e  escuta. É a morte simbólica por que a palavra está ausente, já se matou a palavra. A morte física é uma decorrência, para um sujeito em que “não existe para a sociedade”, ele é invisível. Mas que dizer da infinidade de diagnósticos “autismo”, “síndromes” diversas, “espectros” diversos, “dificuldades” diversas, etc. que aflige a condição humana e que é tratado de forma “política” sem levar em consideração suas subjetividades, desejos, sexualidade, alteridade, autonomia, como se na arquitetura psíquica desses sujeitos não houvesse um id, ego, superego? Todos sabemos que a “clínica política” da ritalina, com status para  convencimento dos pais, amordaça o sujeito. A medicalização é um suporte terapêutico em determinado momento, afora isso como clínica ela anestesia o sujeito e fomenta a indústria farmacêutica, que é das mais rentáveis do mundo. Suportar a dor das violências vivenciadas na infância ou em circunstancias da vida sem a palavra que inclui o acolhimento, a compreensão, a interpretação e resinificação das histórias e significantes não é tarefa fácil.
  
Dessa forma o que vemos nas categorias abordadas acima é a morte civil do sujeito, a loucura “fabricada”, produzida. Há que se interrogar: se as circunstancias e vicissitudes fossem outras mesmo a despeito da filogenética, quais seriam os destinos desses sujeitos? Os medicamentos? Os erros de diagnóstico? Existe diagnóstico diferencial ou a grande maioria são enquadrados em uma sigla? no Iêmen, imigrantes são libertados  de contrabandistas: "A maioria dos imigrantes referidos para o hospital de Al-Mazraq foram vítimas de tráfico de pessoas e submetidos a trabalho análogo à escravidão. Eles apresentavam sintomas de tortura e abusos verbal, físico e sexual. Alguns deles tiveram suas unhas arrancadas ou suas línguas parcialmente cortadas; outros levaram surras. A equipe de MSF também tratou pessoas com doenças graves que podem ameaçar suas vidas, como pneumonia, malária grave ou dengue". http://www.msf.org.br/noticias/1649/no-iemen-imigrantes-sao-libertados-de-contrabandistas

Da dicotomia loucura-razão é possível interditar-se um sujeito, com abordagens “técnicas”, subjetivas, "jurídicas". É muito comum ouvir dos pacientes internados em instituições psiquiátricas: “se quiser sair daqui tem que se comportar como eles querem”. Assim muitas têm sido as Declarações de Direitos Humanos e Saúde Mental, citamos aqui alguns trechos nos endereços abaixo:
 
O direito ao consentimento informado completo 
Divulgação completa de todos os riscos documentados de qualquer droga ou “tratamento” proposto. 
O direito de ser informado de todos os tratamentos médicos disponíveis, que não incluem a administração de um medicamento ou tratamento psiquiátrico. 
O direito de recusar qualquer tratamento que o paciente considere prejudicial. 
Não pode ser administrada a nenhuma pessoa tratamento psiquiátrico ou psicológico contra a sua vontade. 
A nenhuma pessoa, homem, mulher ou criança, pode ser negada a sua liberdade pessoal devido a suposta doença, mental sem um julgamento justo pela justiça e com representação legal apropriada. 
O paciente tem: 
O direito a ser tratado com dignidade como ser humano. 
O direito a ter um exame físico e clínico completo por um médico de medicina geral registrado e competente de escolha pessoal, para assegurar que a condição mental de uma pessoa não é causada por qualquer doença física, ferimento ou defeito, não detectada e sem tratar e o direito a procurar uma segunda opinião médica da sua escolha. 
O direito a instalações médicas totalmente equipadas e pessoal médico treinado de forma apropriada nos hospitais, para que possam ser executados exames clínicos e físicos competentes. 
O direito a escolher o gênero ou tipo de terapia a ser utilizado e o direito a discutir isto com um médico de medicina geral, ou de escolha pessoal. 
O direito a que todos os efeitos secundários de qualquer tratamento oferecido sejam tornados conhecidos e compreensíveis para o paciente, por escrito e na língua materna do paciente. 
O direito de aceitar ou recusar tratamento, mas em particular, o direito de recusar a esterilização, tratamento de eletrochoque, choque de insulina, a lobotomia (ou qualquer outra operação cerebral psicocirúrgica), terapia de aversão, narcoterapia, terapia de sono profundo e quaisquer drogas que produzem efeitos secundários indesejados. 
O direito a fazer queixas oficiais, sem represálias, a um quadro independente, que é composto por pessoal não psiquiátrico, advogados e leigos. As queixas podem abranger quaisquer tratamentos ou punições tortuosos, cruéis, desumanos ou degradantes recebidos enquanto sob cuidado psiquiátrico. 
 O direito a ter aconselhamento privado e individual. 
O direito a se libertar de uma instalação psiquiátrica em qualquer altura e a estar livre sem confinamentos. 
O direito a gerir a sua própria propriedade e assuntos com um conselheiro legal, se necessário, ou se considerado incompetente por um tribunal, a ter um advogado executor nomeado pelo Estado para gerir tais propriedades até ser considerado competente. Tal executor é responsável perante a família próxima do paciente, ou conselheiro legal ou tutor. 
O direito a ver e a possuir os registros hospitalares pessoais e a agir legalmente de acordo a qualquer informação falsa aí contida que possa ser prejudicial para a reputação pessoal. 
O direito a procurar ação criminal, com a ajuda plena de agentes da autoridade, contra qualquer psiquiatra, psicólogo ou pessoal hospitalar no caso de qualquer abuso, falsa detenção, agressão como resultado do tratamento, abuso ou violação sexual, ou qualquer violação da saúde mental ou de outra lei. E o direito a uma lei de saúde mental que não indeniza ou modifica as penas para o tratamento criminoso, abusivo ou negligente de pacientes, cometido por qualquer psiquiatra, psicólogo ou pessoal hospitalar. 
O direito a processar os psiquiatras, as suas associações e faculdades, a instituição, ou o pessoal por detenção ilegal, relatórios falsos ou tratamento prejudicial. 
O direito à educação ou treino para capacitar uma pessoa a ganhar o seu sustento quando recebe alta e o direito de escolha quanto ao tipo de educação ou treino que é recebido. 
O direito a receber visitas e um ministro da sua fé. 
O direito de fazer e receber telefonemas e o direito à privacidade respeitante a toda a correspondência de e para qualquer pessoa. 
O direito a associar–se livremente ou não com qualquer grupo ou pessoa numa instituição, hospital ou instalação psiquiátrica. 
O direito a um ambiente seguro sem ter nesse ambiente pessoas quer foram colocadas aí por razões de crime. 
O direito a estar com outras pessoas do seu grupo etário. 
O direito a usar roupas pessoais, a ter pertences pessoais e a ter um lugar seguro onde os colocar. 
O direito a uma dieta e nutrição apropriada e a três refeições diárias. 
O direito a instalações higiênicas e não superlotadas, e a tempo de lazer e descanso suficiente e imperturbável.
 Sugestões de consulta:

6 de maio de 2013

Ser inacabado...


você é um universo, uma coletânea de mundos dentro de outros mundos. Seu cérebro é provavelmente o sistema mais complicado que existe. Com a sua ação você é capaz de fazer arte, ciência, filosofia, amar, odiar e fazer caridade. Você é o enigma mais desafiador que já se escreveu às vezes um mistério até para você mesmo. Suas ideias, emoções e atitudes - e a de seus familiares e amigos – são o assunto mais fascinante que eu já imaginei. Tudo de interessante e importante no mundo está relacionado ao comportamento humano”.
“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando afinam e desafinam”.

Guimarães Rosa – Grandes Sertões

5 de maio de 2013

O ideal do ego e a formação de valores

“a propriedade de ser consciente ou não constitui, em última análise, o nosso único farol na treva da psicologia profunda”. Freud

O ideal seja em relação às quais objetos e experiências, perseguem nossa curta existência na terra. Desejamos uma vida ideal, uma casa ideal, uma família ideal, um país ideal um amor ideal, um planeta ideal. Nosso psiquismo também deseja um ideal. Mas não é fácil, é tarefa árdua e de infindáveis séculos. No que diz respeito ao processo de defesa, o ego funciona como um guerreiro com superpoderes para agir em todos os flancos. Mas a vida é para guerreiros e somos todos guerreiros em nossa vida diária.

Construído ao longo da história do homem desde a concepção em seu processo neuronal, foi projetado para lidar com  situações de extrema pressão. Reconhece o perigo real, e reconhecendo-o decide se dá passagem e renuncia a satisfação instintual ou convence-se de que não há razão para o medo, rejeitando assim a realidade e mantendo a satisfação a despeito do perigo real. Essa defesa depende do tipo de funcionamento psíquico de cada sujeito. O conflito com o qual o ego se depara é da seguinte forma:
1. Rejeitar a realidade e qualquer proibição;
2. Reconhece o perigo da realidade, assume o medo e tenta livra-se do medo. Ou seja, coloca-se em grande dificuldade.

Permitir a satisfação ou mostrar um “respeito pela realidade” tem um custo psíquico alto que é o desencadeamento de uma cisão no ego que segundo Freud “nunca se cura” e que “aumenta à medida que o tempo passa”. Essas reações diferentes e contrarias ao conflito com o qual o ego se depara é o ponto central da divisão. Não podemos esquecer que a despeito dessa cisão há uma função sintética no ego. é a partir dessa função sintética que supomos possível a cura.

E o inconsciente, o que podemos falar sobre ele? Que se manifesta principalmente pelo consciente preenchendo determinadas lacunas desse conflito, que é o conflito do real, imaginário e fantasia. Aqui vai situar-se a representação, instancia reprimida e instancia repressora, onde o que é reprimido possui maior vinculação com o inconsciente e a repressão com o consciente. Mas o inconsciente faz parte do ego e grande parte desse é inconsciente. Aqui retomamos o conceito de pré-consciente (também possui conteúdos inconsciente) de Freud como uma instancia que facilita a mobilidade dos conteúdos inconsciente-consciente.

“Estar consciente” é algo extremamente móvel, pois uma ideia não permanece consciente por muito tempo, pode ser rápida sua permanência na consciência, podendo ficar latente (inconsciente), e voltar à consciência. Existem experiências infantis que são muito impactantes, que podem nunca vir a se tornar conscientes, podendo gerar processos mentais poderosos, produzindo efeitos que podem tornar-se conscientes como ideias, embora as experiências em si não se tornem conscientes, pois uma barreira, como defesa, resistência, os impede, e uma vez reveladas aumenta a cisão do ego e compromete a saúde mental.

É genial e intuitivo quando Freud obtém o conceito de inconsciente, colocando que os filósofos o chamariam de “psicóide”.  É complexa a percepção do que é consciente e do que é inconsciente, bem como a organização coerente de processos mentais. Pela vastidão em que se pode conceber o inconsciente, haverá sempre experiências as quais as lembranças não voltarão à consciência nem como representações, como real ou mesmo como delírio. Sabemos que o inconsciente não coincide com o reprimido e tudo que é reprimido é inconsciente, mas nem tudo que é  inconsciente é reprimido, pois é parte do ego, embora a maior parte seja inconsciente. O inconsciente que habita o ego não está em estado latente, mais difícil de tornar-se consciente do que os conteúdos do pré-consciente. A questão é se existe como coloca Freud um “terceiro inconsciente” que não é reprimido. Quando Freud pensa a topografia mental ele o faz a luz das experiências perceptivas externas e internas. Suas interrogações surgem quando se depara com o enigma: Os processos internos (pensamentos, sentimentos) avançam gerando a consciência ou a consciência abre caminho até eles? E assim ele coloca uma  terceira alternativa: o inconsciente é efetuado em algum material que permanece desconhecido, enquanto o pré-consciente é colocado em vinculação com representações verbais, que são resíduos de lembranças.

Tudo o que é produzido pelas experiências infantis, sejam através de vivências, ou do imaginário para tornar-se consciente devem ligar-se a percepções externas presentes. Para Freud as lembranças residuais estão contidas próximas ao consciente, e sua energia pode estender-se para o consciente. Quando uma lembrança é revivida sua energia permanece na lembrança, enquanto que uma alucinação que não é distinguível de uma percepção pode surgir quando a energia se transfere inteiramente para o pré-consciente, sem se estender pelas lembranças. Se em análise aflora através de vínculos, que vai ser denominada de “associação livre”. As vivências infantis barradas pelo inconsciente, tidas como desprazeirosas, no transcurso do desenvolvimento em um sentido de mudança, de descarga, ou seja, há um aumento da necessidade de liberação necessitando da construção de vínculos representações para se tornarem conscientes. Podemos pensar em um ego móvel. O ego infantil não é o mesmo de um jovem e na sequencia de um adulto ou idoso, mas em cada um há traços de seu desenvolvimento e marcas dos conflitos e sofrimentos pelos quais passou. Esse movimento do psiquismo é abrangente, pois durante o sono sejam através dos sonhos ou não complexas elaborações e ações estão a se processar.

Na construção e desenvolvimento da estrutura psíquica o processo de identificação (ideal do ego) com o pai ou com a mãe, é uma operação do ego, mas não só com um ego do aqui, agora. É uma possibilidade de o inconsciente abandonar seus objetos e estabelecer a relação com o outro. Então é possível o ego assumir as características do objeto desejado pelo inconsciente, criando uma ilusão de satisfação para o inconsciente. Na origem do ideal do ego há a identificação com os pais e suas escolhas objetais, bem como as escolhas do próprio sujeito. Dessas identificações e no contexto dessa relação triangular ocorre a formação de precipitados no ego que o modifica, confrontando-o com outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego, assim o ideal do ego tem a missão de reprimir os instintos.

Não há garantias de que quanto mais cedo os desejos e fantasias infantis sucumbirem ao superego, estarão “a salvo” de um retorno deslocado da realidade, depende do poder (da quantidade, intensidade e qualidade) dos desejos que habitam o ser da criança. A diferenciação do superego a partir do ego não é obra do acaso, pois na natureza nada é obra do acaso, é resultado do desenvolvimento da espécie humana em seu processo de evolução e perpetuação. Sem o desenvolvimento das tendências morais e estéticas do ego não seria possível incentivar a repressão. Portanto na medida em que as civilizações “perdem” suas tendências morais, éticas e estéticas, os “portões” da repressão afrouxam e as tendências instintuais primitivas dominam. O ideal do ego permitiu ao ego dominar as situações edipianas podendo “barrar” o id. Vimos no artigo http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/04/arquitetura-psiquica.html que o ego é o representante do mundo externo e o superego representante do mundo interno, do id, mas essa dinâmica é dialética, pois existem conteúdos do id representados no superego, uma vez que é no mundo externo que o ego e o id se representam. Quando o ego forma o superego a partir do id, pode estar revivendo traços de antigos egos. Por certo as longas experiências do ego parecem perder-se no tempo da herança, pensamos que nunca vamos reencontrá-las, mas quando insistem em se repetir com intensidade em cada sujeito e suas sucessivas gerações passamos a vê-las como experiências do id, preservadas “por herança”. Assim Freud nos lembra dos resíduos das existências de incontáveis egos, que se encontram no id.

A comunicação entre o ideal e os impulsos instintuais do Ics. revela como é que o próprio ideal pode permanecer inconsciente e inacessível ao ego, o combate nos estratos mais profundos da mente, e quanto longe está de chegar ao fim. Podemos dizer que sem o ideal do ego não saberíamos onde estaríamos na escala da evolução, pois ele contém o “germe do autojulgamento” em que se produz o sentimento de humildade. O ideal do ego sob a forma de consciência  exerce a censura moral. Mas os vínculos maiores pertencem à herança filogenética, a herança arcaica, ou seja, em nosso processo de evolução a parte inferior da vida mental vai sendo transformado pela formação do ideal “no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores”.

Referencia
 FREUD, S. - A DIVISÃO DO EGO NO PROCESSO DE DEFESA (1940 [1938]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
_________ O Ego e o Id (1923). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

1 de maio de 2013

Ética - Judiciário e Legalidade

JUDICIÁRIO - Legalidade, Finalidade e Bem Comum

Muitos têm sido os escritos sobre estatutos, códigos, leis que versam sobre o Estado de Direito e Legalidade. Mas quando vemos o judiciário que deve ser uma instituição de aplicação da justiça humana, tornar-se motivo de investigação por “aplicação” de injustiças, ou seja, podemos afirmar que temos uma instituição legal para execução das injustiças? Por certo que não, mas é possível interrogar, pois na inquisição também tínhamos uma instituição que se autodenominava com o direito de aplicar a justiça Divina. Há que se pensar que ao examinar as práticas que possuem por base a legalidade, e os códigos de ética refletir sobre a “finalidade” da retidão moral, do agir “por dever”, da “boa intenção”,  que para Kant é o “estado” transcendental para onde caminha o “espírito” humano. É necessário pontuar as reflexões sobre o que é possível conhecer e fazer que esteja no plano da razão pura ou prática: “O nosso conhecimento representa o produto da elaboração de uma série harmônica de sensações com as ajudas necessárias da inteligência”... “Só enquanto podemos experimentar as impressões que nos facultam; encontram aplicação os princípios fundamentais da razão”... “Tendo como realista a orientação que parte das coisas e por idealista a que assenta nas ideias”... “A vontade moral quando não colide com qualquer fim secundário diante de si mesma; é aquela que pratica o bem pelo prazer de praticá-lo. Nem no universo nem fora dele, poderemos imaginar o que possa considerar-se, sem qualquer limitação, como bom; mas é possível a algo impor-se como uma boa intenção. Cumpramos o dever pelo próprio dever”... “A reta intenção o que de mais elevado existe no universo, todos os seres humanos devem ser tratados com respeito”... (Crp. – p.10, 11,12). Que alguns “juristas” possam ter “esquecido” o que “aprenderam” na academia ou nos estudos para os concursos públicos é da ordem da memória ou da estrutura psíquica e de caráter do sujeito que exerce o jurídico? É uma passagem ao ato no campo do perverso na medida em que se “burla” a lei? Se a lei é um imperativo, os homens de “razão incorruptível” irão agir de acordo com a lei. E esta razão para ser incorruptível  correlaciona os princípios da vontade em uma ação consigo mesma, ou seja, a priori, assim os motivos determinantes da vontade, possibilitam a construção de uma lei para todos os seres racionais. É possível interrogar aqui que juízos os homens articulam sobre a correlação de suas ações à lei? Como no homem a lei é um imperativo, a razão incorruptível é por si mesma um imperativo, e considerada como prática a priori. Mas nessa vontade há interferência de causas sensíveis, portanto como diz Kant “não pode supor nela uma vontade santa”. Só a vontade santa transforma a lei moral, num imperativo. Assim quando a relação da vontade com a lei é de dependência, é denominado dever. Quando não há correspondência da vontade com a lei o arbítrio é “patologicamente afetado” o que são os casos dos noticiários sobre corrupção no judiciário, em função das causas subjetivas. Necessita-se então de uma coação interna, estabelecida pela lei, que se efetiva no sujeito, cujas representações são objetos da razão.

Essa distância entre, a aplicação da lei e a finalidade diz respeito aos deveres do direito. E esse direito objetiva prevenir todo tipo de maldade entre os homens, mas não impede que elas sejam realizadas. Ele existe para o erro, porque se este não existisse, enquanto inclinação, não seria necessário a lei, o direito; e estar-se-ia diante de uma “inteligência bastante a si mesma”, ou seja do “conceito de santidade acima de todas as leis práticas”. Como a santidade da vontade que conduz ao bem comum é algo de mais elevado que a razão pura prática acima das leis práticas, a legalidade é a representação de um caminho que deve ser percorrido no caminho para autonomia do livre-arbítrio. Pode-se supor que em várias circunstâncias a vocação do Estado é conflitiva com a vocação do sujeito (com o livre arbítrio), estado em que a finalidade não se configura em “imperativo categórico” no plano do sujeito. Para o “servidor público” o espectro deve ser o cumprimento do dever, enquanto lei moral, pois esta exprime a liberdade e a autonomia da razão, estando contidas todas as máximas. Se não o for este sujeito não impõe o objeto de desejo, à vontade, à lei o que seria o livre-arbítrio, e segue impulsos e inclinações peregrinando por máximas, suposições do senso comum, leis patológicas, que jamais serão legislação universal ou terá legalidade. Kant na Paz Perpétua, fala da complexidade dessa questão: “Mais incerto ainda é um direito das gentes, supostamente estabelecido sobre estatutos redigidos segundo planos ministeriais, que na verdade é apenas uma palavra sem conteúdo e repousa sobre contratos que no próprio ato de sua conclusão contém igualmente a cláusula secreta de sua transgressão”(TS –p.146). Assim o dever nas leis é possibilitar o próprio bem-estar (amor-próprio, que pressupõe a preservação da vida) e o bem-estar dos outros. Essa lei não é um objeto do livre arbítrio, mas indica a forma de universalidade necessária  pela razão como condição de valor da própria lei, objetiva à máxima do amor próprio e chega a ser o fundamento determinante da vontade. Se há o desejo a finalidade do bem comum, há que se pensar no dever descrito por Kant: “O que se deva fazer, segundo o princípio da autonomia do livre arbítrio, é facílimo de intuir sem qualquer vacilação, até para a mais vulgar das inteligências; mas o que se deva fazer debaixo da suposição da heteronomia do mesmo é difícil, exigindo conhecimento do mundo, ou seja, o que é dever se apresenta por si mesmo a cada um... A lei moral, porém ordena a cada um o mais pontual dos cumprimentos... Satisfazer o mandato categórico da moralidade está, a qualquer tempo, na faculdade de cada um; satisfazer, porém, o preceito empírico da felicidade condicionada não é dado a cada um, sendo possível apenas raras vezes, ainda quando em relação a uma única intenção. No primeiro só se trata da máxima que deve ser verdadeira e pura; no segundo, todavia, tratamos também das forças e da potencialidade física de produzir realmente um objeto desejado. Seria insensatez um mandato segundo o qual cada um deve tratar de tornar-se feliz, porque nunca se ordena que alguém faça o que por si mesmo indefectivelmente deseje” (Crp. – p.66 – 67). Ordenar, a moralidade sob o nome de dever é razoável, pois onde os sujeitos em seus preceitos não desejam a vivência da lei, vendo na mesma um contraste às suas inclinações. Dever-se-ia ordenar-lhe, ou antes, facultar-lhe, as medidas que tem de tomar, porque o sujeito não pode tudo o que quer. Mas qual a finalidade da lei? Falar de finalidade é falar de “perpetuidade obrigatória do esforço moral”, da vontade inteiramente boa independente de todas as influências das contingências que a experiência possibilita. E o percurso da perpetuidade obrigatória é o dever, a legalidade, o “imperativo categórico”. Estar-se-á diante da constante luta entre a pureza das intenções e as inclinações humanas. E neste trânsito entre a pureza das intenções e as inclinações humanas encontram-se a legalidade e o direito, pois para todo dever há um direito. Então a máxima da prudência aconselha que a lei da moralidade seja determinante. 

Referência
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática – 1788. Tradução de Bertagnoli, Afonso. 3ª edição. Edições e Publicações Brasil Editora S.A – São Paulo 1959. 

Formas de amar...


“Uma pessoa pode amar:
(1) Em conformidade com o tipo narcisista:
(a) o que ela própria é (isto é, ela mesma),
(b) o que ela própria foi,
(c) o que ela própria gostaria de ser,
(d) alguém que foi uma vez parte dela mesma.

(2) Em conformidade com o tipo analítico de ligação:
(a) a mulher que a alimenta,
(b) o homem que a protege,
e a sucessão de substitutos que tomam o seu lugar”. Freud

Uma pessoa pode amar em conformidade de suas experiências de vida, de seus recursos psíquicos e de sua evolução para um sentimento sublime, que é o amor.