25 de maio de 2013

Sofrimento e Fragilidade

“A civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto”
  
Neste artigo vamos discorrer sobre aspectos do “mal-estar” na sociedade atual, refletindo sobre renúncia instintual, sofrimento e fragilidade,  tarefa essa nada fácil; por isso, começamos, com a frase de Freud “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” (p.102). Lembremos que Kant também pensou assim ao descrever o imperativo categórico. Essa colocação de Freud não deixa de ser um imperativo categórico. A vida na midiática sociedade atual traz de frente o binômio felicidade X infelicidade como quase sinônimo de sucesso. Se o desconforto ou mal-estar deveria ser só a contramão do estado de hedonismo procurado e “vivenciado” como ilusão, estamos lidando com a relação do real, imaginário e por que não dizer do afastamento do real, ou de sua não simbolização. Os noticiários sobre a violência no mundo nos revelam que as restrições que seriam funções da sociedade e de suas instituições exercerem, ou seja, a lei, está sendo flexibilizada cada vez mais em favor das exigências instintuais ou dos interesses político-econômicos. Estamos às portas do imperativo dos instintos?

Assim podemos começar falado que se o incesto é antissocial e vemos cada vez mais os abusos sexuais contra crianças e adolescentes no ambiente familiar crescerem, para onde caminhamos? O desenvolvimento humano é organicamente determinado pela hereditariedade, mas moldado pela educação. No transcurso desde ocorreu o que Freud denomina de uma “repressão orgânica que prepara o caminho para a civilização”. É nesta concepção que se constrói a noção do superego, como a mais antiga relação objetal do homem, instancia de censura que insere o sujeito na cultura. Essa censura nos leva a consciência do que devemos e não devemos fazer. Se na sociedade em que vivemos parte dessa relação do ego com o superego está sendo flexibilizada e o destino da lei é ser transgredida e ignorada estamos falando de uma estrutura de relações que comporta o contexto do perverso. Por mais que se promulguem leis no Estado de Direito elas  serão ignoradas, pois no seu oposto há leis que se contradizem e práticas político-econômicas liberadoras dos instintos primitivos. Os instintos da agressão e destruição, o prazer pelo sofrimento do outro, o sadismo, ou seja, um instinto que se torna independente e exacerbado assume a posição dominante. Os impulsos de crueldade, de domínio, podem surgir de fontes que são independentes da sexualidade, mas pode estar vinculada a esta. Quando olhamos para os conflitos em Darfur http://www.pordarfur.org e no Iêmen, http://msf.org.br/noticias/1649/ vemos as duas possibilidades.

Para além da preservação da espécie está a preservação da vida em sua essência, liberdade e dignidade. O ódio, este sentimento complexo, diz respeito aqui a uma forma de prazer, por que ele é um negativo que consome grande quantidade de energia do(s) sujeito(s) envolvido(s), ou seja, se auto consome. Quando olhamos para Darfur vemos algo de um processo autofágico e divergimos de Freud quando diz que ao início da vida, toda a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o exterior, e que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava” (p.64). O que vemos no decorrer da vida é que toda a libido e também a agressividade está sendo dirigida para o exterior, pela flexibilização do superego. Mas de forma acertada ele dirá: “as pessoas buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida” (p. 63). Na contramão dessa lógica vemos “oásis” no mundo habitados pelo humano, essencialmente humano, com instintos sublimados em suas relações com o mundo em que vive. Se o sentimento subjetivo que os habita é de eternidade, enquanto conteúdo ideacional necessário à vida é por que deste mundo não “é possível pular”, ou seja, esse é um vínculo indissolúvel com o mundo externo, ou poderíamos dizer “só com o real, não é possível dar conta”. O nível de violência na sociedade atual é um sintoma de que a relação conflituosa na arquitetura psíquica, id (inconsciente), ego (a personalidade), superego (a censura) possui profundos problemas gestados culturalmente no conceito do “moderno”. Se tudo passou a ser “natural” é por que aquilo que inseria o sujeito na cultura e o levava a simbolizar o Édipo, a lei, o nome-do-pai está sendo transgredido no conceito de “moderno” e “natural”. E para isso muitas vezes a ciência se coloca a serviço da política pelos subsídios que recebe. A perspectiva é que a humanidade em seu processo de evolução fosse se apropriando cada vez mais do id, sendo o superego um mediador. Mas vemos seja na situação de Darfur http://eyesondarfur.org ou da Síria, ou na economia Europeia a propósito do artigo: Quando a elite perde o senso de realidade:  http://www.zamanfrance.fr/article/quand-lites-perdent-sens-r-el que o id vem se apropriando do ego forçando a economia do superego.

Os sintomas de forma global falam de que estrutura? Podemos pensar que a estrutura cultural em que vivemos é permeada pela transgressão, se há “flexibilização” do superego cultural. Na contraposição podemos colocar que quando o ego se enamora de um objeto o “eu e o tu” são um só e que muitas vezes a própria vida mental em seus pensamentos, sentimentos e percepções parecem estranhas ao ego. Ou seja, o que vemos é a facilidade com a qual o ego se flexibiliza na relação prazer-desprazer. Se todo o humano é evolução supomos que do ego de uma criança ao de um idoso houve um desenvolvimento, se foi quantitativo ou qualitativo é outra questão que diz respeito às vicissitudes e ao destino que cada um dá aos seus desejos e conflitos. No ego muitas possibilidades de sofrimento pode afastá-lo da realidade, negá-la pelo exercício do princípio do prazer. Então isolar do ego tudo o que pode ser fonte de desprazer, possibilitando a formação de um “puro ego em busca de prazer”, no escopo do moderno, “uma questão de Direito”, temos um problema de fronteira com a lei. Se a realidade não possibilita mediações para simbolização, como elaborar os sofrimentos externos e internos que interagem entre si? Aqui Freud nos lembra da importância de “dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro” (p.76). Talvez não estejamos no futuro e a relação do ego com o mundo que o cerca seja frágil, descartável, na relação online. Mas a mente não perdeu sua complexidade e nossa história primitiva lá está preservada e só dessa forma podemos compreender a violência, o ódio, o embrutecimento e a falta da lei. Não esquecemos; os resíduos mnêmicos estão todos preservados. Ou seja, na vida mental, “nada do que uma vez se formou pode perecer e que ante a regressão, em circunstâncias apropriadas pode ser trazido de novo à luz” (p.78).

Por maiores que sejam os escombros dos conflitos seja em Darfur, na Síria, no mundo árabe ou em várias partes do planeta, do trabalho escravo http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=75451 no futuro encontraremos vestígios dessas tragédias. Estarão todas lá, como estão os acontecimentos da civilização egípcia. O sintoma que é a violência, o ódio é o retorno do recalcado que não foi simbolizado, não entrou na lei. O passado retorna nos assombrando com vestimentas da atualidade. Na mente nada desaparece, todas as fases de seu desenvolvimento na história humana e na história individual continuam a existir e com fortes demandas. Da mesma forma os vestígios do embrião nas células do adulto leva a ciência hoje a estudar a engenharia genética. Sabemos o quanto a vida é árdua, seus inúmeros sofrimentos e muitas vezes tarefas que parecem impossíveis. Necessitamos de acolhimento, escuta e compreensão. As satisfações substitutivas sejam cultivando seu próprio jardim, nas diversas formas de arte, através do conhecimento, no cultivo das formas de vida saudável, no esperar, no aquietar-se, no contato com o universo, nos trabalhos voluntários, são caminhos que aliviam a vida cotidiana.

Não é possível viver sem o sofrimento, seja ele em que medida, intensidade, pois ele atinge o nosso corpo que inexoravelmente envelhece, vem do mundo externo seja da natureza ou dos relacionamentos muitas vezes  de forma esmagadora e impiedosa, embora estes últimos sejam os mais penosos. Mas uma satisfação irrestrita de todas as necessidades como muitas vezes temos acompanhado na sociedade atual, significa colocar o gozo como “direito ao prazer” acarretando implicações nefastas a depender da estrutura psíquica do(s) sujeito(s). Ou seja, o sofrimento só existe se o sentimos e o sentimos também em função de certas formas pelas quais vivemos e pensamos que desencadeiam substancias químicas tóxicas mentais. Freud escreve que “é extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico” (p.85), mas muitas são as contribuições da neurociência hoje nesse sentido. Mas a flexibilidade de nosso aparelho mental permite reorientar os objetivos instintivos como forma de lidar com as frustações do mundo interno e externo pela construção de ilusões através da imaginação. Nem sempre é possível realizar essas articulações mentais e nos sofrimentos da vida a realidade torna-se insuportável possibilitando “marcas” no ego. É o que Freud nos dirá: “cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranoico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade” (p. 89). Diante dos sofrimentos da vida muitas vezes o sujeito prende-se aos objetos pertencentes a este mundo, assim vemos os diversos estados de depressão, mania e compulsão, mantendo uma relação emocional com os objetos.

A escolha dos objetos na sociedade atual está em sua maioria vinculado ao poder seja do dinheiro, do status social, do número de relacionamentos, da visibilidade,  a beleza do corpo, da marca do carro, do ipod, tablets, da marca da roupa, da juventude eterna. É possível que estas escolhas estejam no plano do gozo narcísico, pois estes objetos são representantes do ego em seus significantes como “indispensável” para as relações. Então “a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente” (Freud, 1930 p.95). Assim quando olhamos para Darfur, Síria, os refugiados, nos interrogamos quais são seus objetos de escolha. E compreendemos que seus objetos de escolha estão mais vinculados à sobrevivência física e psíquica. Mas nada nos impede de afirmar que as escolhas da sociedade “dos bem sucedidos” podem estar vinculados também a sobrevivência física e psíquica, com formatações diferentes, onde a economia de energia é despendida no consumo supérfluo no extrapolar da constituição psíquica para sobreviver mesmo que seja pela aproximação de uma forma mais perversa. Estes são muitas vezes a fonte de muitos sofrimentos os quais o homem não tem como intervir na grande maioria das vezes. O poder da natureza, a fragilidade de nossos corpos e o difícil ajuste aos relacionamentos seja na família, trabalho, sociedade leva-nos muitas vezes a submeter-nos ao inevitável, mesmo que esse inevitável seja uma parcela de nossa constituição psíquica que ainda não está pronta para lidar com determinadas circunstancias. Freud em um desabafo de sua desilusão para com a civilização escreve: “o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas... todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização” (p.93). Há milhares de anos o homem anseia com o controle das forças da natureza, com uma vida fácil e feliz, mesmo que a custa ao longo da história de muita opressão, derramamento de sangue, escravidão, venda de seres humanos, órgãos, matança, guerras em função de crenças religiosas. Se o sentimento de prazer é algo subjetivo, o significado e significante para cada ser humanos ou grupos são diversos de acordo com o superego, o destino que dão ao seu desejo. Se desde a nossa mais remota origem o homem através da utilização de instrumentos “recria seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento” (Freud, 1930 p.97). Há que interrogarmos o que representa os objetos criados pelo homem moderno para seu uso pessoal. Um retorno ao narcisismo primário? Podemos aqui associar alguns objetos como as câmaras fotográficas e filmadoras materializam a rememoração, memória, a casa como o útero materno, a escrita como a voz de uma pessoa ausente, etc. Se cada vez mais a sociedade através da cultura, das leis, não renúncia ao Édipo e dá livre curso ao incesto, seja esse compreendido em sua forma literal ou em outros significantes mais invisíveis que se revelam nos sintomas através de suas diversas doenças físicas adquiridas, herdadas, desenvolvidas ou psíquicas nesta mesma configuração, havemos de concordar com a desilusão da frase de Freud ou nos iludirmos que o homem será capaz de retroceder, para continuar evoluindo, ou seja, terá que retomar a lei e ao recalque.

O aspecto contraditório das religiões de ao tempo em que foi motivo de muitas guerras, também contribuíram para elevar o nível da civilização, ainda necessita ser apaziguado. A categoria “civilização” entra em cena para regular os relacionamentos sociais, tanto que é muito comum a frase “vamos resolver isso civilizadamente”. Quando isso não é possível os relacionamentos ficam “sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo”, ou seja, vale a lei do mais forte, o que remete até onde cada indivíduo está disposto a renunciar aos seus instintos com a finalidade de não deixar o outro a “mercê da força bruta”. O conjunto dos homens que compõe a sociedade imprimem também modificações aos instintos, o que não deixa de ser a tarefa econômica de todas as vidas, e sua sublimação, que torna possíveis atividades psíquicas superiores, científicas, artística. Embora para algumas seja mais difícil em função de determinados traços de caráter.

Diante das tragédias no mundo atual, olhamos para o homem “primevo” e vemos suas articulações e mediações para sobreviver: “o outro passou a ser um companheiro de trabalho de valor, a família foi o lugar de segurança para sua satisfação genital, pois “não apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente” (p. 105). Agora ele não precisa lutar para satisfazer-se sexualmente. Na sequencia Freud escreverá: “Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte” (p.105). Então que aconteceu com a civilização? Por que a sociedade atual caminha para destituir a família de sua função, o que será colocado no lugar? O homem voltará a caçar para se alimentar e para dá livre fluxo aos seus instintos sexuais? Se a função de vencer os tabus foi fazer valer o poder do amor, “que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada — seu filho” (p.106), a flexibilidade do superego imposta pela cultura, coloca em discussão que “amor e necessidade são também os pais da civilização”. Reconhecer que o amor é um investimento que requer uma reserva defensiva contra possíveis sofrimentos de perda por infidelidade ou morte é o que os sábios de todos os tempos advertem. Muitas são as direções do amor, “talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade... essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar ” (Freud, 1930 p.107).

A vida em família é o modo mais antigo filogeneticamente na história da humanidade. Separar-se da família sempre foi algo difícil. A sociedade atual através da mídia e das leis tem construído uma concepção de que família “é antiquado”, “não é necessário, cada um pode viver sozinho”, o Estado dará a segurança em relação a desagregação subjetiva inerente à existência humana e o Direito vem sustentando isso. É comum ouvir de juristas que a instituição família nos moldes pai, mãe e filho faliu. Supomos e já o dissemos, que o que vem fracassando na família diz respeito a lei, ao nome-do-pai, a castração ao superego, ao recalque. Ou seja, uma família sem lei tem que fracassar e esse fracasso delineará um sintoma que refletirá na sociedade. Se a sociedade dos primórdios necessitou em sua fase totêmica da lei para se constituir enquanto tal, para desconstruir hoje é necessário “retirar” a lei. É assim que Freud vai nos lembrar:“A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente” (Freud, 1930 p.110).  A sociedade não se contenta com as relações que lhe são “oferecidas” como vínculos uns com os outros pelo trabalho, interesses e afinidades comuns.  Contenta-se somente em extrair sua energia da sexualidade. Nos mostra que ainda temos longos caminhos a percorrer na reelaboração da energia libidinal, de forma a fortalecer os vínculos comunitários e quem sabe assim muitas formas de violência deixem de existir. Nos instintos humanos devemos levar em conta uma grande dose de agressividade. Assim seu próximo torna-se um objeto sexual, um ajudante, alguém em quem ele pode descarregar sua agressividade, violenta-lo sexualmente, explorar sua capacidade de trabalho com uma compensação irrisória, roubar-se “legalmente” seus bens, torturá-lo psicológica e fisicamente não só literalmente no real, mas através de jornadas e exigências de trabalho impossíveis de serem cumpridas, humilhá-lo dizendo que está dando feedback, ou “falando a verdade” sobre a pessoa, enfim causar-lhe todo tipo de sofrimento, tortura-lo e matá-lo. Quando pensamos em todos os conflitos armados ao longo da história e os atuais como Darfur http://veja.abril.com.br/241208/p_088.shtml revela o homem como uma “besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho” (p.116). Isso significa que a civilização necessita de esforços imensos para manter sob controle os instintos agressivos, sádicos e cruéis do homem, mas a lei do Direito ainda não é capaz de cercear as manifestações mais refinadas da agressividade humana do campo do perverso, que convive em sociedade como se fosse uma neurose comum.

Nessas fronteiras geográficas e mentais o ego se acha cheio de libido narcísica e objetal que delineará as fronteiras das estruturas neuróticas, psicóticas e perversas. Assim nessas fronteiras ao lado do impulso para preservar a vida há inexoravelmente um impulso contrário. Nessa dialética se o equilíbrio de rompe e o que prevalece é o instinto de morte, a vida se esvai em seus mais variados sintomas, mas vinculado ao instinto de agressividade está o sadismo, que mesmo destituído de satisfação sexual é marcado por um elevado grau narcisista, que presenteia o ego com uma suposta onipotência. Se prevalece a pulsão de vida uma parte do ego se coloca contra o ego constituindo o superego, que em forma de consciência barrando os instintos agressivos através de sentimento de culpa, seja como consequência de atos de agressão imaginados ou realizados, que podem revelar o remorso. Como nada pode ser escondido do superego, então uma mudança só é possível se a autoridade é internalizada pelo superego. “Os fenômenos da consciência atingem então um estágio mais elevado”, onde os homens podem desenvolver sua virtuosidade no campo da ética, do bem comum. Se o homem primitivo atribuía a culpa de seus atos aos fetiches ou mitos, numa defesa projetiva, não avançamos muito em relação a essa relação com os fetiches e mitos. A autoridade seja externa ou interna do superego sempre motivou o homem ao sentimento de culpa e na sequencia o remorso e quando não se tem o medo da autoridade e do superego, resta a violência em todos os seus níveis e instituições. A renúncia das satisfações instintivas, mesmo que escondida do superego, e a punição exigida por este, que é uma continuidade da introjeção da autoridade externa é fundamental para o estabelecimento de relações harmônicas. Nas relações de poder e na inversão de papeis e funções na sociedade atual nas relações pais e filhos fica fragilizada a elaboração dos instintos primários e a consciência que é a causa da renúncia do instinto, ao mesmo tempo em que a renúncia ao instinto é uma fonte de consciência necessita ser repensado. Por isso a estrutura familiar tem sua importância, deveria ser o escoadouro, o espaço de renúncia aos instintos, o lugar da identificação com a autoridade, da lei, onde os instintos agressivos seriam apaziguados sem necessitar serem transferidos para outros objetos na sociedade.

Todos participamos do desenvolvimento da humanidade e ao mesmo tempo percorremos nosso destino. Não só no universo e a astronomia tem demonstrado isso, mas também em todos os processos que envolvem o homem, seja filogenético, psíquico, social forças lutam entre si o que resulta em permanente mudança, mas para onde caminha essa mudança quando pensamos o psiquismo do homem. Sem o desenvolvimento do superego no sentido de uma evolução cultural, o superego do indivíduo poderá não realizar a lei necessária para sua evolução. Se uma ética não tocar nas dores da civilização, em seus equívocos, no sentido de uma “tentativa terapêutica - como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais” (p.145), sabemos que a agressividade mútua, a violência a inexistência de valores, tenderá a aumentar, já existe até o que se costuma chamar “a indústria do medo”. O que Freud chama de “as ordens culturais do superego, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo” (p. 145), possui o significado da saúde mental a ser conquistada pelo homem.A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade” (p.147). Mesmo com o sofrimento que a sociedade atual pode nos causar, ou pelo destino que damos ao nosso desejo, nos achamos indefesos contra o sofrimento  diante das vicissitudes da vida, das intempéries da natureza, quando amamos, quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Mas mesmo assim o amor, as criações científicas, as atitudes estéticas, a relação com a natureza, com o universo, continuam sendo caminhos pelo qual o homem apazigua-se. A questão de quanta satisfação o homem pode obter no mundo e de como tornar-se independente dele é o que cada um  tem que descobrir em seu  mundo interior e que pode salvá-lo dele mesmo.

Referencia
FREUD, S.  -  O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930 [1929]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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