3 de setembro de 2013

A CARTA 56: Divisão da Consciência e Dor


“…Aliás, que diria você se eu lhe contasse que toda aquela minha história da histeria, história original e novinha em folha, já era conhecida e tinha sido publicada repetidamente uma centena de vezes — há alguns séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão pelo demônio, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e de uma divisão (splitting) da consciência? Mas por que é que o diabo, que se apossava das pobres bruxas, invariavelmente as desonrava, e de forma revoltante? Por que as confissões delas sob tortura tanto se assemelham às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico? Dentro em breve, precisarei pesquisar a bibliografia do assunto. Aliás, as crueldades possibilitam o entendimento de alguns sintomas da histeria, que até agora têm permanecido obscuros. Os alfinetes que aparecem das formas mais surpreendentes, as agulhas que fazem com que as pobres criaturas tenham seus seios operados, e que são invisíveis aos raios X, embora possam ser encontradas na história de sua sedução… Mais uma vez, os inquisidores espetam agulhas para descobrir os estigmas do demônio, e, numa situação parecida, as vítimas inventam a mesma cruel e velha história (ajudadas, talvez, pelos disfarces do sedutor). Assim, não só as vítimas, mas também os seus algozes, relembram nisso os primórdios de sua adolescência”.

Quando falamos em dor recordamos que em algumas de suas cartas, Freud inquietou-se com a crueldade da inquisição e seus representantes psíquicos. Dentre eles a tortura, dor. Nesta carta enigmática sugere que a suposta possessão alegada pelos meios eclesiásticos, seria um processo de divisão de consciência, processo ao qual, as mulheres poderiam desenvolver em função da opressão a que estavam submetidas na época. Recusar a relação com um homem ou ter habilidades que lhes desse autonomia, era motivo para serem encarceradas, possuídas, queimadas. As agulhas enquanto instrumento de tortura, possibilitavam os estigmas que procuravam os inquisidores, para possuí-las, encarcerá-las e queimá-las.

Assim “uma bruxa disfarçada, era enviada para o calabouço, fogueira”, seu ego dividido, como consequência da tortura. Necessário que fossem “bruxas”, mulheres com autonomia diferenciada, que ao recusarem ser “possuídas”, eram possuídas pelos mandatários eclesiásticos e então alvo fácil da inquisição. Como iriam possuir essas mulheres, encarcera-las e queimá-las, se não tivesse a designação de “bruxas”? “Bruxas” seriam as que passaram por um processo de desagregação da consciência pela “possessão”, de que? Lembremos o filme “Sombras de Goya”, 2007 de Milos Forman ao narrar à inquisição espanhola. 

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