22 de fevereiro de 2014

Anotações Sobre as Lembranças na Acrópole


Em Janeiro de 1936 Freud escreveu a Romain Rolland por ocasião de seu setuagésimo aniversário. Freud tinha especial estima por esse grande escritor. Considerava-o entre suas preciosas amizades. A carta versa sobre o que Freud considera Um Distúrbio de Memória na Acrópole, por ocasião de sua viagem a Atenas. Após as considerações sobre a viagem ele relata aquilo que muito o impressionou, ao qual citaremos alguns trechos que consideramos significativos. As reminiscências das lembranças da infância tornam-se para ele enigmáticas, uma vez que as remete ao inconsciente, a algo do qual não havia se apropriado. O enigma da memória e as provas às quais ela remete a nossa consciência, que nem sempre encontra esclarecimentos acalentadores, mesmo nos deslocamentos que faz ao passado ou aos objetos. Esse estranhamento sobre algo ainda não visto, mas familiar, quando visto, são difíceis de serem compreendidos, por que nos habita sem o sabermos, apesar dos longos caminhos que percorrem. Fiquemos com recortes de suas reflexões.

...“Quando, por fim, na tarde após nossa chegada eu me encontrava na Acrópole e pousava meus olhos sobre o cenário; um pensamento surpreendente passou rápido em minha mente: ‘Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!’” ...
...“Ora, seria fácil argumentar que esse estranho pensamento que me ocorreu na Acrópole só serve para acentuar o fato de que ver algo com os próprios olhos é, afinal, coisa muito diferente de ouvir contar ou de ler a respeito. Mas continuaria sendo uma forma muito estranha de explicar um lugar-comum sem interesse. Ou então, seria possível afirmar que era verdade que, quando eu era um colegial, pensara estar convencido da realidade histórica da cidade de Atenas e de sua história, mas que a ocorrência dessa ideia na Acrópole justamente mostrara que, em meu inconsciente, eu não tinha acreditado, e que só agora estava adquirindo uma convicção que ‘atingia o fundo do inconsciente’”...
... “ O Destino, que esperamos nos trate tão mal, é materialização de nossa consciência, do severo superego que há dentro de nós, sendo ele próprio um remanescente da instância primitiva de nossa infância”...
... “Quando relembro meu vivo desejo de viajar e ver o mundo, que me dominava nos tempos de colégio e posteriormente, e quanto tempo se passara até que meu desejo se concretizasse, não me surpreendo com esse efeito retardado na Acrópole; eu tinha, então, quarenta e oito anos”...
... “a incredulidade — realmente estava contido na própria distorção: ‘Pela evidência dos meus sentidos, estou agora na Acrópole, mas não consigo acreditar nisto.’ Essa incredulidade, essa dúvida quanto a um aspecto da realidade, estava, contudo, duplamente deslocada em sua expressão real: primeiro, estava atribuída ao passado e, segundo, estava transportada de minha relação para com a Acrópole, para a própria existência da Acrópole”...
... “o fator original deve ter sido o sentimento do inacreditável e do irreal na situação daquele momento. A situação incluía a mim próprio, a Acrópole e a minha percepção dela. Eu não podia explicar essa dúvida; evidentemente, não podia ligar a dúvida às minhas impressões sensoriais referentes à Acrópole. Lembrei-me, contudo, de que, no passado, tivera uma dúvida a respeito de algo relacionado precisamente a esse local e, assim, encontrei o meio de deslocar a dúvida para o passado”...
... “toda essa situação psíquica, de aparência tão confusa e tão difícil de descrever, pode ser elucidada satisfatoriamente supondo-se que, no momento, tive (ou poderia ter tido) um sentimento instantâneo: ‘O que estou vendo aqui não é real.‘ Tal sentimento é conhecido como ‘sentimento de desrealização’ [‘Entfremdungsgefühl‘]. Fiz um intento de afastar esse sentimento, e o consegui à custa de uma falsa afirmação acerca do passado”...
“Essas desrealizações são fenômenos notáveis, ainda pouco compreendidos. Diz-se serem ‘sensações’, mas, evidentemente, são processos complexos, vinculados a conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses conteúdos”.
“Esses fenômenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha”.
... “Existe mais um outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas — é o que se conhece como ‘fausse reconnaissance‘, ‘déjà vu’, ‘déjà raconté’, etc. ilusões em que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como, nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós”...
... “Tudo isso, contudo, é tão obscuro e tem sido tão mal dominado cientificamente, que tenho de me abster de lhe falar mais a respeito dessas coisas”...
... “Mas justamente minha própria experiência na Acrópole, que realmente culminou num distúrbio de memória e numa falsificação do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexão. Não é procedente o fato de que, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez, duvidasse da existência real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria a ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possível, eu, algum dia, viajar tão longe — eu ‘percorrer um caminho tão longo’”...
...Quando, pela primeira vez, uma pessoa enxerga o mar, cruza o oceano e sente como realidades as cidades e os países que por tanto tempo tinham sido distantes, inatingíveis coisas desejadas, então a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de inimaginável grandeza”...
... “Nosso pai se dedicara ao comércio, não tinha tido instrução secundária, e Atenas podia não ter significado muito para ele. Assim, o que interferia em nossa satisfação de viajar a Atenas era um sentimento de respeito filial. E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho de ter paciência e não posso mais viajar”...

FREUD, S.  – UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE (1936),  Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

19 de fevereiro de 2014

Arqueólogo Psíquico


“Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se defronta o arqueólogo é, notoriamente, a determinação da idade relativa de seus achados, e se um objeto faz seu aparecimento em determinado nível, frequentemente resta decidir se ele pertence a esse nível ou se foi carregado para o mesmo devido a alguma perturbação subsequente. É fácil imaginar as dúvidas correspondentes que surgem no caso das construções analíticas” (Freud 1937, p.277).

16 de fevereiro de 2014

Direitos Humanos e Saúde Mental: O sofrimento silencioso de crianças cambojanas

Psicanálise: uma relação intersubjetiva

“... vemos emanar da psicanálise métodos que, eles sim, tendem a objetivar modos de agir sobre o homem, objeto humano. Não passam, contudo, de técnicas derivadas dessa arte fundamental que é a psicanálise, na medida em que é constituída por essa relação intersubjetiva que não pode, como lhes disse, esgotar-se, pois ela é o que nos faz homens. É, no entanto, o que somos levados a procurar exprimir, apesar de tudo, numa formulação que dê a conhecer o seu essencial, e é justamente por isso que existe no seio da experiência analítica algo que é propriamente falando, um mito”.
“O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso  à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la – e isso de forma mítica. Nesse sentido é que se pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza a relação intersubjetiva, e que é o complexo de Édipo, tem valor de mito” (Lacan, p.13).

Nesse trecho em que Lacan fala de poesia e verdade, vemos que, o que se designa por psicanálise, possui uma leve brisa de arte, pela relação intersubjetiva entre analista e analisando, e que por nos fazer humanos, transcende. E por transcender ela possui algo de mito, mítico, naquilo em que não pode ser traduzido em palavras, embora progrida, contraditoriamente pela palavra. Mas como a palavra exprime uma verdade, mas não apreende a essência, essência essa que remete às provações triangulares da existência humana.

Referência
LACAN, Jacques - O Mito Individual do Neurótico – Jorge Zahar Editores, 2008 

14 de fevereiro de 2014

Poesia - Saber Viver


Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais para nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração
das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta, nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar


Cora Coralina

12 de fevereiro de 2014

Lembrança e Esquecimento – Pensamento, Palavra e Silêncio

“fé dos antepassados’ não pode ser renegada impunemente quando se é filho e se tem filhos.”(Freud, 1901 p.103)

Quando Freud pesquisou e escreveu o livro Psicopatologia da Vida Cotidiana, uma de suas obras mais traduzidas foi um ambicioso projeto de catalogação dos possíveis sintomas encontrados no dia a dia, que se expressam na forma de sermos, cujas consequências temos que inserir no binômio quantidade e qualidade de energia psíquica. O objetivo dessas reflexões, que valeu o volume VI das obras completas é recolocar a importância e significado desse recurso da memória, que é a lembrança e esquecimento, principalmente em uma sociedade de consumo, descartável, em que “esquecer” significa obter um novo objeto. Lembrança é o que permanece e esquecimento é uma forma de conservar a lembrança e desloca-la para outros objetos. O esforço de compreender o patológico pelo saudável é o mesmo esforço de compreender os sofrimentos psíquicos pelo não sofrimento, portanto um esforço difícil e complexo, quase impossível, por isso a expressão “psicopatologia”. Sabemos que o psiquismo retira não só de si mesmo, como do corpo, por isso os sintomas, a energia para suportar as dores.

Quando nos referimos aos esquecimentos, lapsos da fala, de escrita, equívocos na ação, o esquecimento de nomes e sequências de palavras,  atos casuais e sintomáticos, os erros, o esquecimento de impressões e intenções, temos que lembrar que nossa memória existe sob o véu do esquecimento, como recurso de defesa. É o sofrimento que não é possível ser resgatado naquele momento, daquela forma e assim se faz presente como recurso simbólico. A resistência à lembrança atua sob a forma do racionalismo, de arrogância, do egoísmo, do gozo narcísico, dos argumentos inflexíveis, da equivocada análise sobre o “outro”, dos sintomas. Será, então, necessária uma construção “paralela”, uma reconstrução simbólica, para que sejam lembrados, se possível com o mínimo de dor, ou sem dor.

O cotidiano das relações é permeado, por jogos de palavras, dissimulações, agressões veladas, muitas vezes difíceis de traduzir e de causas variadas, com substitutos incompreensíveis, pois sem desvelar, lembrar, não é possível compreendê-las. Assim os fatos psíquicos são determinados  por eventos que estão distantes de sua expressão e diz respeito aos processos anímicos. Nesse sentido o esquecimento de um nome, motivado pelo recalque, ocorre por um deslocamento (como uma ilusão de memória) sendo substituído por outro, mais fácil de lembrar, sem dor, sem os sofrimentos aos quais estão vinculados. Esse deslocamento lembra o que se desejava esquecer e o que desejava recordar, bem como o tema ao qual se refere o recalcado, que através da associação retorna ou mantém recalcado, se as condições para ser revelado não forem satisfatórias. O evento recalcado e a substituição estão associados e vinculados. É só uma forma de expressão possível, sem ameaçar o ego. Portanto “eles exibem então com o elemento recalcado e com o nome ausente a mesma relação que teriam caso tivessem aparecido espontaneamente” (Freud, 1901 p.23).

É fato que nosso vocabulário é protegido contra o esquecimento. Embora haja uma predisposição para esquecer palavras estrangeiras, onde são difíceis substitutos na memória. Isso demonstra o quanto estamos vinculados a formação inicial das palavras e sua vivência. A continuidade temporal, muitas vezes não é suficiente para interpretar, relacionar os temas em questão, ficando no recalque a palavra, que se revelará mediante experiências reveladoras. O esquecimento de palavras revela que assuntos remotos, investidos de afeto, continuam com sua demanda em função de sofrimentos latentes. O esquecido através de uma associação ou substituição a um conteúdo de pensamento inconsciente, que é fonte do esquecido. O fato de na sociedade atual haver um volume grande de informações a disposição, de certa forma ela também é selecionada pelo inconsciente, que se liga aos conteúdos que representa sua vivência temporal e atemporal. Por certo o estresse, o cansaço, os problemas de saúde, as perdas, frustações, tragédias da vida impulsionam a necessidade de esquecer. “O nome perdido toca num complexo pessoal”. Vários podem ser as razões para o esquecimento de nomes, por exemplo, um ressentimento, não resolvido. Lembranças carregadas de afeto não reelaborado possibilitam esquecimento.

O mecanismo do esquecimento de nomes sofre a interferência de uma cadeia de pensamentos inconsciente, pois entre o nome esquecido e o tema perturbado existe uma conexão pré-existente. É então que muitas vezes ocorrem os lapsos de fala, onde uma palavra, uma expressão é substituída, contaminada (formação de compromisso) por outra, o que é o inicio do trabalho de condensação. As imagens “flutuantes” seguem os processos de linguagem, ou seja, tudo o que se passa no pensamento de quem fala. O lapso, (o ato falho) ouvido no dia a dia, é o pensamento que permaneceu inconsciente, que se manifesta e que só é possível compreender através de uma análise detalhada. Os lapsos na fala, leitura e escrita pertencem à mesma família. As situações de grande estresse, insegurança, sejam quais forem, são muito favorecedoras dos lapsos de fala e leitura. Lê e fala-se, muitas vezes o contrário, pois existe alguma comunicação penosa. O mecanismo do esquecimento de nomes sofre a interferência de uma cadeia de pensamentos inconsciente, pois entre o nome esquecido e o tema perturbado existe uma conexão pré-existente. É então que muitas vezes ocorre os lapsos de fala, onde uma palavra, uma expressão é substituída, por outra. A censura, recalcada desaloja da memória a palavra que não deve ser dita e que retorna como lapso de fala, ou seja, os pensamentos inconsciente desagradáveis, conflituosos, ou permeados de sofrimentos, ressentimentos, opiniões contrárias, que expõe uma sinceridade interna. Então há um dito não intencionado, revestido de outro dito ou de um silêncio. É pelos deslizes da fala, das imagens que o sujeito se revela cotidianamente. Quando o que incomoda não é a palavra isolada, mas o som, o ritmo da frase, também estamos diante de um conflito interno.

A velocidade de informação atual atesta a capacidade de nossa memória, em que o estudo sobre o esquecimento de impressões, intenções e conhecimentos, está longe de alguma conclusão. Estudos sobre a memória falam da plasticidade de nossos neurônios e da capacidade de nossa memória. É certo que o mecanismo da lembrança e do esquecimento, há muito que avançar em estudos. Esquecemos o que nos faz sofrer e lembramos o que já temos condições de ser apropriado, compreendido. No esquecimento existe um decurso de tempo, mas o fundamental ainda é a angústia que o sujeito consegue suportar, ou aquilo que não desestrutura seu ego. A vida cotidiana é rica em impressões, intenções e conhecimentos, que são escolhidos para serem lembrados ou não. Essa seleção é tão complexa de conexões entre passado, presente e futuro, que o tempo parece não existir, pelo menos como o pensamos numericamente. A resistência sempre se opõe à lembrança de pensamentos e impressões aflitivas.

Impressões é tudo que captamos sobre o mundo externo e aquilo que o inconsciente nos sinaliza, mas não temos certeza. Intenções já contém um “impulso para a ação”, ação esta a ser exercida no momento adequado, quando não há impulsividade, podendo ser reavaliada, pois as intenções podem ser perturbadas muitas vezes por razões enigmáticas. O esquecimento de intenções pode colocar-se naquilo pelo qual pode ser designado de falsas intenções. Como o sentido simbólico do ato falho compõe inúmeros significantes, não é tarefa fácil examiná-los sob a ótica corriqueira do dia a dia. Em algum momento do cotidiano ocorre “equívocos” nas ações diárias, o que leva constantemente a autopunição ou formação de um sintoma. Embora a autopunição possa ser um sintoma, portanto expressam algo que não desejariam fosse revelado. “Conhecemos os atos sintomáticos que as pessoas casadas costumam executar, tirando e recolocando suas alianças” (Freud, 1901 p.205). Bem como o hábito de perder coisas, que pode significar a transferência simbólica para outros objetos, ou seja, a perda de objetos menos significativos.

A relação entre os afazeres do dia a dia e sua representação simbólica com os sentimentos, decepções, esperanças, desejos é mais profundo do que imaginamos. Jung (1907)  observou “as melodias que cantarola inintencionalmente e com frequência sem percebê-lo, poderá descobrir com bastante regularidade a relação entre as palavras da canção e o assunto que está ocupando sua mente”(Freud, 1901 p.214). Da mesma forma que as palavras que revestem os pensamentos, não são escolhidas livremente, possuem um sentido mais profundo. Não somos livres para escolher as palavras. Essa é uma conclusão interessante de Freud. Muitos são os erros de palavras, que não pertencem a o desconhecimento, cometidas diariamente e onde ocorre um erro existe um recalcamento. O erro nas palavras indica um conflito que luta, demanda cura, elaboração, permanecendo na obscuridade. O inconsciente sabe impedir a execução de uma intenção.

Muitas são as crenças, que suportam as dores, os sofrimentos. Mas na vida anímica há razões, que muitas vezes, são inexplicáveis. Mas na vida psíquica, nada é arbitrário ou indeterminado.
“Embora admitamos que estas nossas observações de maneira alguma esgotam a psicologia da superstição, somos forçados pelo menos a tocar numa questão: se devemos negar inteiramente as raízes reais da superstição, se de fato não existem pressentimentos, sonhos proféticos, experiências telepáticas, manifestações de forças sobrenaturais e coisas semelhantes. Estou longe de pretender condenar tão cabalmente esses fenômenos, dos quais tantas observações detalhadas têm sido feitas inclusive por homens de intelecto destacado, e que melhor seria transformar em objeto de outras investigações. É até de se esperar que parte dessas observações venha a ser explicada por nosso reconhecimento incipiente dos processos anímicos inconscientes, sem que haja necessidade de modificações radicais nas concepções que hoje sustentamos. Se ficasse provada a existência de ainda outros fenômenos — por exemplo, os afirmados pelos espíritas —, trataríamos apenas de modificar nossas “leis” da maneira exigida pelo novo saber, sem abalarmos nossa crença na coerência das coisas no mundo” (Freud, 1901 p.256).
Freud refere-se nesse estudo às suas experiências, que poderiam ser telepáticas, a crença nos sonhos proféticos, e de como é errôneo “chamar de ilusão o sentimento de já ter  vivenciado alguma coisa antes. É que nesses momentos realmente se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não pode ser lembrado conscientemente porque nunca foi consciente” (Freud 10901 p.261). Assim lembremos que da origem das fantasias inconscientes, retorna um sentimento de familiaridade com as coisas que vemos no dia a dia como já vividas, ou seja, um fragmento recalcado, guardado, esquecido, que retorna. Os pensamentos, conflitos, desejos recalcados não produzem por si próprios, atos falhos ou sintomáticos, para que isso ocorra é necessário inervações de estímulos externos, que atingindo o recalcado é explorado pelo inconsciente para retornar a consciência. A questão dos determinantes dos atos falhos e sintomáticos que transitam entre os motivos inconscientes e fisiológicos, que se encontram, permanece aberta enquanto questão.

O pensamento relaciona-se com outro pensamento por associações inconscientes, nas mais diversas origens, por similaridades. São as marcas do recalcado que se confluem. Nem tudo que supomos esquecido, assim o está. Os sentimentos de inveja, ódios, rancores, orgulhos, vaidades, arrogâncias, “se valem dos atos falhos para expressarem seu poder”. Quanto mais efetivo for o processo de recalque, maiores dificuldades terão os conteúdos em um “relaxamento” do superego. Mesmo porque as formações de compromisso, as condensações, as associações externas dos pensamentos inconscientes faz com que seja expresso de forma modificada. Dessa forma a fronteira entre as estruturas clínicas é fluida. Freud dirá, “a saber, que a fronteira entre a norma e a anormalidade nervosas é fluida” (p.272). A esperança que nos alimenta é que, por mais difícil que seja algumas lembranças inconscientes podem ser rastreadas.

É fato que as mais remotas lembranças parecem preservar aquilo que é aparentemente sem importância, embora na memória faça uma seleção das impressões oferecidas e muitas vezes não se encontre nenhum vestígio das mesmas enquanto lembranças, bem como dos afetos. Mas nada fica estático, pois o movimento, a atemporalidade desloca, substitui, na reprodução mnêmica aquilo que consegue vencer a resistência. Assim as lembranças “indiferentes” ou difíceis, são preservadas porque associam seu conteúdo a um outro conteúdo recalcado, sendo denominadas como “lembranças encobridoras”, que falamos em http://www.caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/02/lembrancas-e-paranoia-memoria.html  em que em seus inúmeros vínculos e sentidos, longe de se perderem no tempo, retornam até o desvelamento do véu que as encobre. É possível também que uma lembrança recente se vincule a conteúdos antigos, que não foi possível de retorno pela resistência. A questão é o que está atrás da lembrança encobridora. Se a lembrança encobridora se vincula a uma impressão encoberta pela afinidade temporal, temos aqui algo de contiguidade. Difícil dizer quanto de lembrança encobridora há em nossa reserva mnêmica, mas a lembrança encobridora tem por base o esquecimento, e o esquecimento de eventos importantes. Essa formação substitutiva que se forma por deslocamento, tende sempre a buscar sua origem. Permanece a interrogação de até onde recuam nossas lembranças, pois Forças poderosas de épocas posteriores da vida modelaram a capacidade de lembrar as vivências infantis — provavelmente, as mesmas forças responsáveis por nos termos alienado tanto da compreensão dos anos de nossa infância” (Freud, 1901 p.62).

A angústia de não visualizar a si mesmo, persegue todos os seres humanos. Esse esquecer-se permite também a reelaboração de sofrimentos talvez inimagináveis, que sofreu influência de forças psíquicas, ainda desconhecidas. Assim as lembranças encobridoras, as condensações os deslocamentos são alentos de que algo está se processando independente de nossa consciência e que pode remeter simbolicamente a um passado inacessível, onde povoam as fantasias, símbolos, imagens, lendas e mitos.

Referência
FREUD, S.  – SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA (1901),  Obras Completas de Psicanálise - volume VI. Rio de Janeiro, Imago - 1996.  

9 de fevereiro de 2014

Freud e a Carta 101

…Em primeiro lugar: uma pequena parte de minha autoanálise progrediu e confirmou que as fantasias são produtos de períodos posteriores e são projetadas para o passado, desde o que era então o presente até épocas mais remotas da infância; o modo como isso ocorre também emergiu — mais uma vez, um vínculo verbal.
À pergunta: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá. Seria fácil e maravilhoso contar-lhe como é a coisa; mas seria necessária uma meia dúzia de páginas para eu escrever tudo isso por extenso, e por isso vou guardá-lo para nosso encontro na Páscoa, com algumas outras informações a respeito de meus primeiros anos (de vida).
Além disso, encontrei um outro elemento psíquico que considero ter significado geral e ser uma fase preliminar dos sintomas, anterior, mesmo, à fantasia.
(4 de janeiro.) Ontem, fiquei cansado, e hoje, não consigo continuar escrevendo de acordo com o que pretendia, porque a coisa está crescendo. Há qualquer coisa aí. Está começando a despontar. Nos próximos dias, por certo haverá algum acréscimo. Então, quando a coisa ficar aclarada, eu lhe escreverei. Apenas lhe revelarei que o padrão onírico é passível da mais genérica aplicação, e que também compreendo por que, a despeito de todos os meus esforços, ainda não concluí o livro dos sonhos. Se eu esperar um pouco mais, conseguirei descrever o processo mental que ocorre nos sonhos, de tal maneira que ele também inclua o processo que ocorre na formação dos sintomas histéricos. Portanto, esperemos.

O interessante nessa carta é a interrogação de Freud sobre os processos oníricos e as lembranças. Até onde lembramos? Como está guardado esse material? Nessas interrogações, há que pensar na possibilidade do trajeto de uma lembrança até sua origem como algo difícil e complexo. O que diz a fantasia sobre as lembranças e como articulá-las é algo possível, mas ainda requer pesquisas.

Referência
FREUD, S.  – CARTA 101 (1899),  Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.

5 de fevereiro de 2014

"Corte sem Incisão"


Conhecendo o masculino, resguardando o feminino
Sendo a ravina sob o céu
Sem se afastar da Virtude Eterna
Retornará a ser criança.
Conhecendo o branco, resguardando o negro
Sendo o modelo sob o céu
Sem se enganar com a Virtude Eterna
Retornará à Extremidade-Inexistente
Conhecendo a glória, resguardando a humildade
Sendo o vale sob o céu
Sendo o vale sob o céu, completará a Virtude Eterna
E retornará a ser madeira bruta
A madeira bruta partida transforma-se em instrumentos
E o Homem Sagrado utiliza-os através de um regente
Isto tudo é um grande corte sem incisão

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng