“fé dos
antepassados’ não pode ser renegada impunemente quando se é filho e se tem
filhos.”(Freud, 1901 p.103)
Quando Freud pesquisou e escreveu o livro Psicopatologia da Vida
Cotidiana, uma de suas obras mais traduzidas foi um ambicioso projeto de
catalogação dos possíveis sintomas encontrados no dia a dia, que se expressam
na forma de sermos, cujas consequências temos que inserir no binômio quantidade
e qualidade de energia psíquica. O objetivo dessas reflexões, que valeu o
volume VI das obras completas é recolocar a importância e significado desse
recurso da memória, que é a lembrança e esquecimento, principalmente em uma
sociedade de consumo, descartável, em que “esquecer” significa obter um novo
objeto. Lembrança é o que permanece e esquecimento é uma forma de conservar a
lembrança e desloca-la para outros objetos. O esforço de compreender o
patológico pelo saudável é o mesmo esforço de compreender os sofrimentos
psíquicos pelo não sofrimento, portanto um esforço difícil e complexo, quase
impossível, por isso a expressão “psicopatologia”. Sabemos que o psiquismo
retira não só de si mesmo, como do corpo, por isso os sintomas, a energia para
suportar as dores.
Quando nos referimos aos esquecimentos, lapsos da fala, de
escrita, equívocos na ação, o esquecimento de nomes e sequências de palavras, atos casuais e sintomáticos, os erros, o
esquecimento de impressões e intenções, temos que lembrar que nossa memória
existe sob o véu do esquecimento, como recurso de defesa. É o sofrimento que
não é possível ser resgatado naquele momento, daquela forma e assim se faz
presente como recurso simbólico. A resistência à lembrança atua sob a forma do
racionalismo, de arrogância, do egoísmo, do gozo narcísico, dos argumentos
inflexíveis, da equivocada análise sobre o “outro”, dos sintomas. Será, então, necessária
uma construção “paralela”, uma reconstrução simbólica, para que sejam
lembrados, se possível com o mínimo de dor, ou sem dor.
O cotidiano das relações é permeado, por jogos de palavras,
dissimulações, agressões veladas, muitas vezes difíceis de traduzir e de causas
variadas, com substitutos incompreensíveis, pois sem desvelar, lembrar, não é
possível compreendê-las. Assim os fatos psíquicos são determinados por eventos que estão distantes de sua
expressão e diz respeito aos processos anímicos. Nesse sentido o esquecimento
de um nome, motivado pelo recalque, ocorre por um deslocamento (como uma ilusão
de memória) sendo substituído por outro, mais fácil de lembrar, sem dor, sem os
sofrimentos aos quais estão vinculados. Esse deslocamento lembra o que se
desejava esquecer e o que desejava recordar, bem como o tema ao qual se refere
o recalcado, que através da associação retorna ou mantém recalcado, se as
condições para ser revelado não forem satisfatórias. O evento recalcado e a
substituição estão associados e vinculados. É só uma forma de expressão
possível, sem ameaçar o ego. Portanto “eles
exibem então com o elemento recalcado e com o nome ausente a mesma relação que
teriam caso tivessem aparecido espontaneamente” (Freud, 1901 p.23).
É fato que nosso vocabulário é protegido contra o esquecimento.
Embora haja uma predisposição para esquecer palavras estrangeiras, onde são
difíceis substitutos na memória. Isso demonstra o quanto estamos vinculados a
formação inicial das palavras e sua vivência. A continuidade temporal, muitas
vezes não é suficiente para interpretar, relacionar os temas em questão,
ficando no recalque a palavra, que se revelará mediante experiências
reveladoras. O esquecimento de palavras revela que assuntos remotos, investidos
de afeto, continuam com sua demanda em função de sofrimentos latentes. O
esquecido através de uma associação ou substituição a um conteúdo de pensamento
inconsciente, que é fonte do esquecido. O fato de na sociedade atual haver um
volume grande de informações a disposição, de certa forma ela também é
selecionada pelo inconsciente, que se liga aos conteúdos que representa sua
vivência temporal e atemporal. Por certo o estresse, o cansaço, os problemas de
saúde, as perdas, frustações, tragédias da vida impulsionam a necessidade de esquecer.
“O nome perdido toca num complexo pessoal”. Vários podem ser as razões para o
esquecimento de nomes, por exemplo, um ressentimento, não resolvido. Lembranças
carregadas de afeto não reelaborado possibilitam esquecimento.
O mecanismo do esquecimento de nomes sofre a interferência de
uma cadeia de pensamentos inconsciente, pois entre o nome esquecido e o tema
perturbado existe uma conexão pré-existente. É então que muitas vezes ocorrem
os lapsos de fala, onde uma palavra, uma expressão é substituída, contaminada (formação
de compromisso) por outra, o que é o inicio do trabalho de condensação. As
imagens “flutuantes” seguem os processos de linguagem, ou seja, tudo o que se
passa no pensamento de quem fala. O lapso, (o ato falho) ouvido no dia a dia, é
o pensamento que permaneceu inconsciente, que se manifesta e que só é possível
compreender através de uma análise detalhada. Os lapsos na fala, leitura e escrita pertencem à
mesma família. As situações de grande estresse, insegurança, sejam quais forem,
são muito favorecedoras dos lapsos de fala e leitura. Lê e fala-se, muitas
vezes o contrário, pois existe alguma comunicação penosa. O mecanismo do
esquecimento de nomes sofre a interferência de uma cadeia de pensamentos
inconsciente, pois entre o nome esquecido e o tema perturbado existe uma
conexão pré-existente. É então que muitas vezes ocorre os lapsos de fala, onde
uma palavra, uma expressão é substituída, por outra. A censura, recalcada
desaloja da memória a palavra que não deve ser dita e que retorna como lapso de
fala, ou seja, os pensamentos inconsciente desagradáveis, conflituosos, ou
permeados de sofrimentos, ressentimentos, opiniões contrárias, que expõe uma
sinceridade interna. Então há um dito não intencionado, revestido de outro dito
ou de um silêncio. É pelos deslizes da fala, das imagens que o sujeito se
revela cotidianamente. Quando o que incomoda não é a palavra isolada, mas o
som, o ritmo da frase, também estamos diante de um conflito interno.
A velocidade de informação atual atesta a capacidade de nossa
memória, em que o estudo sobre o esquecimento de impressões, intenções e
conhecimentos, está longe de alguma conclusão. Estudos sobre a memória falam da
plasticidade de nossos neurônios e da capacidade de nossa memória. É certo que
o mecanismo da lembrança e do esquecimento, há muito que avançar em estudos.
Esquecemos o que nos faz sofrer e lembramos o que já temos condições de ser
apropriado, compreendido. No esquecimento existe um decurso de tempo, mas o
fundamental ainda é a angústia que o sujeito consegue suportar, ou aquilo que
não desestrutura seu ego. A vida cotidiana é rica em impressões, intenções e
conhecimentos, que são escolhidos para serem lembrados ou não. Essa seleção é
tão complexa de conexões entre passado, presente e futuro, que o tempo parece
não existir, pelo menos como o pensamos numericamente. A resistência sempre se
opõe à lembrança de pensamentos e impressões aflitivas.
Impressões é tudo que captamos sobre o mundo externo e aquilo
que o inconsciente nos sinaliza, mas não temos certeza. Intenções já contém um
“impulso para a ação”, ação esta a ser exercida no momento adequado, quando não
há impulsividade, podendo ser reavaliada, pois as intenções podem ser
perturbadas muitas vezes por razões enigmáticas. O esquecimento de intenções
pode colocar-se naquilo pelo qual pode ser designado de falsas intenções. Como
o sentido simbólico do ato falho compõe inúmeros significantes, não é tarefa
fácil examiná-los sob a ótica corriqueira do dia a dia. Em algum momento do
cotidiano ocorre “equívocos” nas ações diárias, o que leva constantemente a
autopunição ou formação de um sintoma. Embora a autopunição possa ser um
sintoma, portanto expressam algo que não desejariam fosse revelado. “Conhecemos os atos sintomáticos que as
pessoas casadas costumam executar, tirando e recolocando suas alianças”
(Freud, 1901 p.205). Bem como o hábito de perder coisas, que pode significar a
transferência simbólica para outros objetos, ou seja, a perda de objetos menos
significativos.
A relação entre os afazeres do dia a dia e sua representação
simbólica com os sentimentos, decepções, esperanças, desejos é mais profundo do
que imaginamos. Jung (1907) observou “as melodias que cantarola inintencionalmente e com frequência sem
percebê-lo, poderá descobrir com bastante regularidade a relação entre as
palavras da canção e o assunto que está ocupando sua mente”(Freud, 1901
p.214). Da mesma forma que as palavras que revestem os pensamentos, não são
escolhidas livremente, possuem um sentido mais profundo. Não somos livres para
escolher as palavras. Essa é uma conclusão interessante de Freud. Muitos são os
erros de palavras, que não pertencem a o desconhecimento, cometidas diariamente
e onde ocorre um erro existe um recalcamento. O erro nas palavras indica um
conflito que luta, demanda cura, elaboração, permanecendo na obscuridade. O inconsciente sabe impedir a execução
de uma intenção.
Muitas são as crenças, que suportam as dores, os sofrimentos.
Mas na vida anímica há razões, que muitas vezes, são inexplicáveis. Mas na vida
psíquica, nada é arbitrário ou indeterminado.
“Embora
admitamos que estas nossas observações de maneira alguma esgotam a psicologia
da superstição, somos forçados pelo menos a tocar numa questão: se devemos
negar inteiramente as raízes reais da superstição, se de fato não existem
pressentimentos, sonhos proféticos, experiências telepáticas, manifestações de
forças sobrenaturais e coisas semelhantes. Estou longe de pretender condenar
tão cabalmente esses fenômenos, dos quais tantas observações detalhadas têm
sido feitas inclusive por homens de intelecto destacado, e que melhor seria
transformar em objeto de outras investigações. É até de se esperar que parte
dessas observações venha a ser explicada por nosso reconhecimento incipiente
dos processos anímicos inconscientes, sem que haja necessidade de modificações
radicais nas concepções que hoje sustentamos. Se ficasse provada a existência
de ainda outros fenômenos — por exemplo, os afirmados pelos espíritas —,
trataríamos apenas de modificar nossas “leis” da maneira exigida pelo novo
saber, sem abalarmos nossa crença na coerência das coisas no mundo” (Freud,
1901 p.256).
Freud refere-se nesse estudo às suas experiências, que poderiam
ser telepáticas, a crença nos sonhos proféticos, e de como é errôneo “chamar de ilusão o sentimento de já ter vivenciado alguma coisa antes. É que nesses
momentos realmente se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não
pode ser lembrado conscientemente porque nunca foi consciente” (Freud
10901 p.261). Assim lembremos que da origem das fantasias inconscientes,
retorna um sentimento de familiaridade com as coisas que vemos no dia a dia como
já vividas, ou seja, um fragmento recalcado, guardado, esquecido, que retorna.
Os pensamentos, conflitos, desejos recalcados não produzem por si próprios, atos
falhos ou sintomáticos, para que isso ocorra é necessário inervações de
estímulos externos, que atingindo o recalcado é explorado pelo inconsciente
para retornar a consciência. A questão dos determinantes dos atos falhos e
sintomáticos que transitam entre os motivos inconscientes e fisiológicos, que
se encontram, permanece aberta enquanto questão.
O pensamento relaciona-se com outro pensamento por associações
inconscientes, nas mais diversas origens, por similaridades. São as marcas do
recalcado que se confluem. Nem tudo que supomos esquecido, assim o está. Os
sentimentos de inveja, ódios, rancores, orgulhos, vaidades, arrogâncias, “se
valem dos atos falhos para expressarem seu poder”. Quanto mais efetivo for o
processo de recalque, maiores dificuldades terão os conteúdos em um
“relaxamento” do superego. Mesmo porque as formações de compromisso, as
condensações, as associações externas dos pensamentos inconscientes faz com que
seja expresso de forma modificada. Dessa forma a fronteira entre as estruturas
clínicas é fluida. Freud dirá, “a saber,
que a fronteira entre a norma e a anormalidade nervosas é fluida” (p.272).
A esperança que nos alimenta é que, por mais difícil que seja algumas
lembranças inconscientes podem ser rastreadas.
É fato que as mais remotas lembranças parecem preservar aquilo
que é aparentemente sem importância, embora na memória faça uma seleção das
impressões oferecidas e muitas vezes não se encontre nenhum vestígio das mesmas
enquanto lembranças, bem como dos afetos. Mas nada fica estático, pois o
movimento, a atemporalidade desloca, substitui, na reprodução mnêmica aquilo
que consegue vencer a resistência. Assim as lembranças “indiferentes” ou
difíceis, são preservadas porque associam seu conteúdo a um outro conteúdo
recalcado, sendo denominadas como “lembranças encobridoras”, que falamos em http://www.caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/02/lembrancas-e-paranoia-memoria.html
em que em seus inúmeros vínculos e sentidos, longe de se perderem no
tempo, retornam até o desvelamento do véu que as encobre. É possível também que
uma lembrança recente se vincule a conteúdos antigos, que não foi possível de
retorno pela resistência. A questão é o que está atrás da lembrança
encobridora. Se a lembrança encobridora se vincula a uma impressão encoberta
pela afinidade temporal, temos aqui algo de contiguidade. Difícil dizer quanto
de lembrança encobridora há em nossa reserva mnêmica, mas a lembrança
encobridora tem por base o esquecimento, e o esquecimento de eventos
importantes. Essa formação substitutiva que se forma por deslocamento, tende
sempre a buscar sua origem. Permanece a interrogação de até onde recuam nossas
lembranças, pois “Forças poderosas de épocas posteriores da
vida modelaram a capacidade de lembrar as vivências infantis — provavelmente,
as mesmas forças responsáveis por nos termos alienado tanto da compreensão dos
anos de nossa infância” (Freud, 1901 p.62).
A angústia de não visualizar a si mesmo, persegue todos os seres
humanos. Esse esquecer-se permite também a reelaboração de sofrimentos talvez
inimagináveis, que sofreu influência de forças psíquicas, ainda desconhecidas.
Assim as lembranças encobridoras, as condensações os deslocamentos são alentos
de que algo está se processando independente de nossa consciência e que pode
remeter simbolicamente a um passado inacessível, onde povoam as fantasias, símbolos,
imagens, lendas e mitos.
Referência
FREUD, S. – SOBRE A PSICOPATOLOGIA DA
VIDA COTIDIANA (1901), Obras Completas de Psicanálise -
volume VI. Rio de Janeiro, Imago - 1996.
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