Em
Janeiro de 1936 Freud escreveu a Romain Rolland por ocasião de seu setuagésimo
aniversário. Freud tinha especial estima por esse grande escritor.
Considerava-o entre suas preciosas amizades. A carta versa sobre o que Freud
considera Um Distúrbio de Memória na Acrópole, por ocasião de sua viagem a
Atenas. Após as considerações sobre a viagem ele relata aquilo que muito o
impressionou, ao qual citaremos alguns trechos que consideramos significativos.
As reminiscências das lembranças da infância tornam-se para ele enigmáticas,
uma vez que as remete ao inconsciente, a algo do qual não havia se apropriado.
O enigma da memória e as provas às quais ela remete a nossa consciência, que
nem sempre encontra esclarecimentos acalentadores, mesmo nos deslocamentos que
faz ao passado ou aos objetos. Esse estranhamento sobre algo ainda não visto, mas familiar,
quando visto, são difíceis de serem compreendidos, por que nos habita sem o
sabermos, apesar dos longos caminhos que percorrem. Fiquemos com recortes de suas
reflexões.
...“Quando, por fim,
na tarde após nossa chegada eu me encontrava na Acrópole e pousava meus olhos
sobre o cenário; um pensamento surpreendente passou rápido em minha mente:
‘Então tudo isso realmente existe mesmo,
tal como aprendemos no colégio!’” ...
...“Ora, seria fácil
argumentar que esse estranho pensamento que me ocorreu na Acrópole só serve
para acentuar o fato de que ver algo com os próprios olhos é, afinal, coisa
muito diferente de ouvir contar ou de ler a respeito. Mas continuaria sendo uma
forma muito estranha de explicar um lugar-comum sem interesse. Ou então, seria
possível afirmar que era verdade que, quando eu era um colegial, pensara estar convencido da realidade
histórica da cidade de Atenas e de sua história, mas que a ocorrência dessa ideia
na Acrópole justamente mostrara que, em meu inconsciente, eu não tinha acreditado, e que só agora
estava adquirindo uma convicção que ‘atingia o fundo do inconsciente’”...
... “ O Destino, que
esperamos nos trate tão mal, é materialização de nossa consciência, do severo
superego que há dentro de nós, sendo ele próprio um remanescente da instância
primitiva de nossa infância”...
... “Quando relembro
meu vivo desejo de viajar e ver o mundo, que me dominava nos tempos de colégio
e posteriormente, e quanto tempo se passara até que meu desejo se
concretizasse, não me surpreendo com esse efeito retardado na Acrópole; eu
tinha, então, quarenta e oito anos”...
... “a incredulidade
— realmente estava contido na própria distorção: ‘Pela evidência dos meus
sentidos, estou agora na Acrópole, mas não consigo acreditar nisto.’ Essa
incredulidade, essa dúvida quanto a um aspecto da realidade, estava, contudo,
duplamente deslocada em sua expressão real: primeiro, estava atribuída ao
passado e, segundo, estava transportada de minha relação para com a Acrópole,
para a própria existência da Acrópole”...
... “o fator
original deve ter sido o sentimento do inacreditável e do irreal na situação
daquele momento. A situação incluía a mim próprio, a Acrópole e a minha
percepção dela. Eu não podia explicar essa dúvida; evidentemente, não podia
ligar a dúvida às minhas impressões sensoriais referentes à Acrópole.
Lembrei-me, contudo, de que, no passado, tivera uma dúvida a respeito de algo
relacionado precisamente a esse local e, assim, encontrei o meio de deslocar a
dúvida para o passado”...
... “toda essa
situação psíquica, de aparência tão confusa e tão difícil de descrever, pode ser
elucidada satisfatoriamente supondo-se que, no momento, tive (ou poderia ter
tido) um sentimento instantâneo: ‘O
que estou vendo aqui não é real.‘ Tal sentimento é conhecido como
‘sentimento de desrealização’ [‘Entfremdungsgefühl‘].
Fiz um intento de afastar esse sentimento, e o consegui à custa de uma falsa
afirmação acerca do passado”...
“Essas
desrealizações são fenômenos notáveis, ainda pouco compreendidos. Diz-se serem
‘sensações’, mas, evidentemente, são processos complexos, vinculados a
conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses
conteúdos”.
“Esses fenômenos
podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da
realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha”.
... “Existe mais um
outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas
positivas — é o que se conhece como ‘fausse
reconnaissance‘, ‘déjà vu’,
‘déjà raconté’, etc. ilusões em
que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como,
nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós”...
... “Tudo isso,
contudo, é tão obscuro e tem sido tão mal dominado cientificamente, que tenho
de me abster de lhe falar mais a respeito dessas coisas”...
... “Mas justamente
minha própria experiência na Acrópole, que realmente culminou num distúrbio de
memória e numa falsificação do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexão.
Não é procedente o fato de que, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez,
duvidasse da existência real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria a
ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possível, eu, algum dia, viajar tão
longe — eu ‘percorrer um caminho tão longo’”...
...Quando, pela
primeira vez, uma pessoa enxerga o mar, cruza o oceano e sente como realidades
as cidades e os países que por tanto tempo tinham sido distantes, inatingíveis
coisas desejadas, então a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de
inimaginável grandeza”...
... “Nosso pai se
dedicara ao comércio, não tinha tido instrução secundária, e Atenas podia não
ter significado muito para ele. Assim, o que interferia em nossa satisfação de
viajar a Atenas era um sentimento de respeito
filial. E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a
lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois
que envelheci, agora que tenho de ter paciência e não posso mais viajar”...
FREUD, S. – UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE (1936), Obras Completas de Psicanálise -
volume XXII. Rio de Janeiro, Imago - 1996.
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