22 de fevereiro de 2014

Anotações Sobre as Lembranças na Acrópole


Em Janeiro de 1936 Freud escreveu a Romain Rolland por ocasião de seu setuagésimo aniversário. Freud tinha especial estima por esse grande escritor. Considerava-o entre suas preciosas amizades. A carta versa sobre o que Freud considera Um Distúrbio de Memória na Acrópole, por ocasião de sua viagem a Atenas. Após as considerações sobre a viagem ele relata aquilo que muito o impressionou, ao qual citaremos alguns trechos que consideramos significativos. As reminiscências das lembranças da infância tornam-se para ele enigmáticas, uma vez que as remete ao inconsciente, a algo do qual não havia se apropriado. O enigma da memória e as provas às quais ela remete a nossa consciência, que nem sempre encontra esclarecimentos acalentadores, mesmo nos deslocamentos que faz ao passado ou aos objetos. Esse estranhamento sobre algo ainda não visto, mas familiar, quando visto, são difíceis de serem compreendidos, por que nos habita sem o sabermos, apesar dos longos caminhos que percorrem. Fiquemos com recortes de suas reflexões.

...“Quando, por fim, na tarde após nossa chegada eu me encontrava na Acrópole e pousava meus olhos sobre o cenário; um pensamento surpreendente passou rápido em minha mente: ‘Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!’” ...
...“Ora, seria fácil argumentar que esse estranho pensamento que me ocorreu na Acrópole só serve para acentuar o fato de que ver algo com os próprios olhos é, afinal, coisa muito diferente de ouvir contar ou de ler a respeito. Mas continuaria sendo uma forma muito estranha de explicar um lugar-comum sem interesse. Ou então, seria possível afirmar que era verdade que, quando eu era um colegial, pensara estar convencido da realidade histórica da cidade de Atenas e de sua história, mas que a ocorrência dessa ideia na Acrópole justamente mostrara que, em meu inconsciente, eu não tinha acreditado, e que só agora estava adquirindo uma convicção que ‘atingia o fundo do inconsciente’”...
... “ O Destino, que esperamos nos trate tão mal, é materialização de nossa consciência, do severo superego que há dentro de nós, sendo ele próprio um remanescente da instância primitiva de nossa infância”...
... “Quando relembro meu vivo desejo de viajar e ver o mundo, que me dominava nos tempos de colégio e posteriormente, e quanto tempo se passara até que meu desejo se concretizasse, não me surpreendo com esse efeito retardado na Acrópole; eu tinha, então, quarenta e oito anos”...
... “a incredulidade — realmente estava contido na própria distorção: ‘Pela evidência dos meus sentidos, estou agora na Acrópole, mas não consigo acreditar nisto.’ Essa incredulidade, essa dúvida quanto a um aspecto da realidade, estava, contudo, duplamente deslocada em sua expressão real: primeiro, estava atribuída ao passado e, segundo, estava transportada de minha relação para com a Acrópole, para a própria existência da Acrópole”...
... “o fator original deve ter sido o sentimento do inacreditável e do irreal na situação daquele momento. A situação incluía a mim próprio, a Acrópole e a minha percepção dela. Eu não podia explicar essa dúvida; evidentemente, não podia ligar a dúvida às minhas impressões sensoriais referentes à Acrópole. Lembrei-me, contudo, de que, no passado, tivera uma dúvida a respeito de algo relacionado precisamente a esse local e, assim, encontrei o meio de deslocar a dúvida para o passado”...
... “toda essa situação psíquica, de aparência tão confusa e tão difícil de descrever, pode ser elucidada satisfatoriamente supondo-se que, no momento, tive (ou poderia ter tido) um sentimento instantâneo: ‘O que estou vendo aqui não é real.‘ Tal sentimento é conhecido como ‘sentimento de desrealização’ [‘Entfremdungsgefühl‘]. Fiz um intento de afastar esse sentimento, e o consegui à custa de uma falsa afirmação acerca do passado”...
“Essas desrealizações são fenômenos notáveis, ainda pouco compreendidos. Diz-se serem ‘sensações’, mas, evidentemente, são processos complexos, vinculados a conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses conteúdos”.
“Esses fenômenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha”.
... “Existe mais um outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas — é o que se conhece como ‘fausse reconnaissance‘, ‘déjà vu’, ‘déjà raconté’, etc. ilusões em que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como, nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós”...
... “Tudo isso, contudo, é tão obscuro e tem sido tão mal dominado cientificamente, que tenho de me abster de lhe falar mais a respeito dessas coisas”...
... “Mas justamente minha própria experiência na Acrópole, que realmente culminou num distúrbio de memória e numa falsificação do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexão. Não é procedente o fato de que, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez, duvidasse da existência real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria a ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possível, eu, algum dia, viajar tão longe — eu ‘percorrer um caminho tão longo’”...
...Quando, pela primeira vez, uma pessoa enxerga o mar, cruza o oceano e sente como realidades as cidades e os países que por tanto tempo tinham sido distantes, inatingíveis coisas desejadas, então a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de inimaginável grandeza”...
... “Nosso pai se dedicara ao comércio, não tinha tido instrução secundária, e Atenas podia não ter significado muito para ele. Assim, o que interferia em nossa satisfação de viajar a Atenas era um sentimento de respeito filial. E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho de ter paciência e não posso mais viajar”...

FREUD, S.  – UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE (1936),  Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago - 1996. 

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