27 de abril de 2013

“Doenças Silenciosas” e Narcisismo

Nosso objetivo ao discutirmos o que denominamos como “Doenças Silenciosas” como AIDS, Câncer, tantas outras que não citaremos e Narcisismo é contribuir no sentido de uma clínica de saúde pública onde possa existir o individual, em toda sua subjetividade. Porque o narcisismo? Por que estamos marcados por ele desde que nascemos e temos que nos haver com ele e se possível aliviar a dor da ferida narcísica e sublimar. O estigma dessas doenças, principalmente a AIDS é relevante, o que tem refletido em um impeditivo para análise epidemiológica no que diz respeito a vivencias infantis e estruturas psíquicas mais vulneráveis dos sujeitos envolvidos. É certo que não se contem uma doença pandêmica somente com ações sociais. Elas são fundamentais, mas a subjetividade dos sujeitos envolvidos nem de longe é tocada. Algo que é importante está relegada ao “esquecimento”. Quais traumas infantis e “estruturas” se colocam em risco, ou são acometidas em seus organismos, e onde a pulsão de morte se torna um imperativo é uma questão. Por que o crescimento epidemiológico não cede?  Tão importante quanto os dados epidemiológicos, as campanhas e programas de prevenção realizados nos vemos diante de impasses  de doenças em crescimento, onde o Brasil no caso da AIDS ocupa o 2º lugar na America Latina em notificação.

Não vamos aqui discutir dados epidemiológicos, eles estão disponíveis em www.aids.gov.br/pagina/dados-e-pesquisas. Em relação aos diversos tipos de câncer é possível acessarhttp://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=488No caso do câncer, vemos que os dados são pulverizados em diversas categorias tornando mais difícil uma análise no que diz respeito às subjetividades, o que é nosso objetivo neste artigo. Em relação a AIDS alguns dados nos chamam atenção: A diferença entre a contaminação do Sudeste e Sul responsável por mais de 50% sejam das contaminações, comparada com o Norte,  Nordeste e Centro-Oeste. Em relação a  AIDS a faixa etária de 25 a 49 anos, a forma de transmissão prevalece a sexual e  concentrada em homossexuais, prostitutas e usuários de drogas, com grande crescimento entre os heterossexuais. Quanto mais parceiros mais vulnerabilidade e maior possibilidade de reinfecção e aumento da carga viral e se a isso, adiciona o uso de drogas temos componentes explosivos. Há que interrogar como a arquitetura psíquica ( http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/04/arquitetura-psiquica.html) do sujeito “suporta” o diagnóstico de “positivo”. O que vemos é que só o “coquetel” não “segura”, então a droga ocupa esse lugar, O suporte psicológico a um sujeito que vem em sua história em situação de exposição; e aqui não fica de fora as mulheres casadas em uniões estáveis que se descobrem contaminados por HIV é fundamental. É muito comum os indivíduos irem ao Centro de Referência somente para pegar a medicação e continuarem suas vidas (baladas, troca de parceiros, drogas, pequenos furtos), como se “nada tivesse acontecendo”. Se a lógica é relacionar-se somente com parceiros soropositivos, ou “em um sentimento de revoltas” com toda e qualquer pessoa, ou se o sentimento de viver intensamente sem lei se eleva, pois o tempo para o hedonismo supostamente “está diminuído” é algo a ser refletido. AIDS é muito complexa para ser tratada só com políticas sociais ou individuais. Sem as duas abordagens e a elevação do número de profissionais, que possam compreender as duas abordagens, não formaremos uma prática que respondam às demandas dos sujeitos.

A questão é que o sujeito que opta por uma troca constante de parceiros ou que escolhe viver relações ou uma relação de risco, não “optou” por essas práticas depois de adulto. Há que pensarmos que circunstancias em sua infância pode ter funcionado como um facilitador. O culto ao consumo a e vida de alto padrão aquisitivo na sociedade em que vivemos como a busca da vida ideal é um fator subjetivo de vulnerabilidade. É certo que no mundo descartável, produzido para “ficar” um curto tempo exerce uma pressão nesse sentido, como também conseguir “a felicidade” e cada sujeito vai definir de acordo com sua história, seu desejo. As variáveis a serem pesquisadas para exposição a comportamentos de risco vão desde a abusos diversos, inclusive sexuais, a abandono, desagregação do ego, violência doméstica, estados de mania e depressão e outros. Temos algumas problemáticas como a não adesão ao tratamento, a dinâmica conjugal, o envelhecimento, a heterossexualização, a feminilização, as condições socioeconômica-cultural o uso de drogas e algo “novo” e preocupante a familiarização da pandemia, um mecanismo utilizado para supostamente diminuir o estigma, mecanismo esse que pode levar a um caminho de não compreensão dos sujeitos envolvidos, de como acolhê-los e de quais terapias psíquicas podemos oferecer-lhes no sentido de que possam resinificar suas vidas, potencializá-las produtivamente. Comparecer ao Centro de Referência para pegar o coquetel e participar de reuniões de grupo, quase como clandestinos não contribui em suas profundas questões subjetivas. Muitas são as falas: “não vou falar de minhas questões em grupo”, “tem que ir na hora que tem menos gente”, “tem que tirar o rótulo da embalagem”. E a escuta individual onde fica? Se nos reportarmos a imagem no espelho da qual Lacan fala como estão esses sujeitos? Se o ser narcísico já é complexo, quando se insere uma patologia orgânica há que interrogarmos como fica essa ferida narcísica, se ela não é  destituída de aspectos patológicos em nenhum sujeito. O narcisismo penetra nos profundos problemas das relações entre o ego e os objetos externos, assim é necessário haver um “ideal do ego” e ligado a ele o superego, ou seja, o funcionamento do ego.

Como esses sujeitos irão tratar seus corpos, marcados desde sempre, mas agora com um diagnóstico. Que no narcisismo o sujeito trata seu corpo como trata o corpo de um objeto sexual, ou seja, o acaricia para obter satisfação, seja satisfação pelo status social que ocupa,  pela forma como se veste, pela profissão que exerce, pelos bens materiais que possui, pelas formas corporais admiradas, pelas relações sedutoras que desenvolve, etc. Freud afirmará que “o narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade da vida sexual do indivíduo, exibindo, consequentemente, as características que esperamos encontrar no estudo de todas as perversões” (p.81). O sujeito só ama a si próprio. Os objetos são instrumentos de suas manipulações em função dele mesmo. A dificuldade do trabalho analítico está justamente aqui, pois o sujeito usará os recursos possíveis da transferência para não se deixar mostrar. Então como mostrar à família, amigos, sociedade que é soropositivo? Como sair da clandestinidade e lutar pela vida psíquica? Existe hoje uma frase, diferente dos anos 80, quando surgiu a AIDS, que é “não parece de forma alguma que tem HIV”. A questão não é: parecer ou não parecer. É o que isso implica, inclusive na prevenção. Compreendemos que um sujeito que é acometido de doenças como AIDS, câncer, hipertensão, diabete, precisa de uma mudança em seu modo de viver, para uma melhor qualidade de vida e controle de seus sintomas, mas estamos falando do orgânico. Como essa resinifição ocorre no caso do HIV positivo?  Se a questão  narcísica  leva o sujeito ao hedonismo do “agora vou viver tudo sem prevenção” podemos sugerir algo que transpõe seu egoísmo no sentido de sua auto preservação, que é considerar a dinâmica psíquica de cada pessoa.

Ao escrever sobre o narcisismo Freud situou dois sintomas de defesa, quais sejam a megalomania e os desvios de seu interesse do mundo externo de pessoas e coisas. Importante ressaltar que a desistência da realidade está em todos os sofrimentos humanos, sejam eles doenças ou não e sejam quais forem as designações que lhes damos, mas em que intensidade e comprometimento do ego depende das circunstancias ou vicissitudes da existência de cada sujeito. Se é um processo de neurose histérica, neurose obsessiva, “enquanto sua doença  persiste, também desiste de sua relação com a realidade”(p.82). Todos sabemos que os estados febris tão comuns sejam em crianças ou em adultos os afastam da realidade. Mas a relação erótica com pessoas e coisas permanecem e assim o sujeito faz um “malabarismo” com seu ego no sentido da defesa: substituem as pessoas e objetos imaginários que estão na memória, por pessoas e objetos reais e se isso não é possível mistura os objetos imaginários com os reais. A megalomania é suportada pela libido objetal, que afastada do mundo externo é dirigida para o ego dando margem ao narcisismo, a que Freud chama narcisismo secundário, onde ocorre uma superestima do poder das pessoas e de objetos, bem como de atos mentais e uma forma de lidar com o mundo externo mágica, como se tudo fosse possível como “num passe de mágica”. Tudo fica grandioso.

Aqui situamos a familiarização da pandemia. Com o coquetel podemos dizer “acabaram os sintomas”, a AIDS tornou-se invisível, não é possível mais dizer quem possui e quem não possui. Excelente se não houvesse um inconsciente demandando. Temos que nos ater a esse inconsciente em nossas práticas de saúde. Da mesma forma que interrogamos qual o destino que o sujeito vai dar ao seu Édipo, interrogamos qual o destino que o sujeito vai dar aos seus sofrimentos, a sua soropositividade. A energia libidinal (catexia) do ego é em parte transmitida a pessoas e objetos e está relacionada com a energia (catexia) objetal, ou seja, aquela que não tem origem no ego, mas que podem ser transmitidas e retiradas novamente. É assim que Freud utiliza a metáfora do reino protista, na ameba, que projeta temporariamente a parede celular para captação de alimentos e locomoção. Os leucócitos do sangue para fazerem a fagocitose realizam essa extensão para englobar os agentes agressores e destruí-los. O que subjetivamente o sujeito faz nesse sentido com o diagnóstico de positividade?

Quanto mais a energia da libido do ego é empregada, mais a libido objetal é esvaziada. Quando um sujeito está apaixonado (entendemos aqui por qualquer objetos ou substituição de objeto), ele parece desistir de sua própria personalidade em favor de uma energia (catexia) objetal. Embora complexa e difícil a compreensão e distinção entre energia psíquica dos instintos do ego e energia da libido do ego  e a libido objetal Freud nos sugere “que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo”; o ego tem de ser desenvolvido” (p.84). Então há que pensarmos nas situações traumáticas que esses sujeitos vivenciaram em suas infâncias. Se os instintos auto eróticos, estão ali desde o começo, sua intensidade e talvez podemos falar de quantidade e qualidade e a qual destino ou função serve. É necessário interrogar, mas não podemos fugir a distinção de instintos do ego e instintos sexuais, que está no escopo da distinção entre fome e amor. É como se viver uma existência dupla: uma para servir as próprias finalidades e uma outra que serve e se conduz como numa corrente contra a vontade, é como se a sexualidade de um lado fosse considerada “como um de seus próprios fins” e por outro lado fosse uma energia para uso imediato ou futuro onde não se descarta os acessos já ocorrido, mas com fins de uma “troca de uma retribuição de prazer”. Para os sujeitos que vivenciam a AIDS a existência dupla torna-se mais enfática por que se por um lado não há indícios por outro um sofrimento os habita e não há em sua maioria um escoadouro, uma fala e uma escuta, para uma problemática em que a base da contaminação é sexual. Por isso Freud compara com um germoplasma o que é muito apropriado. Essa energia se torna o veiculo mortal de uma “substancia imortal – como herdeiro de uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um patrimônio que lhe sobrevive” (p.85). Na sequencia Freud levanta a hipótese de a energia sexual ser apenas o produto da energia mental: “Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura, de admitir expressamente que a hipótese de instintos do ego e instintos sexuais (libido) separados está longe de repousar, inteiramente, numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia. Mas serei suficientemente coerente para abandonar essa hipótese, se o próprio trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra hipótese mais útil sobre os instintos... Pode ocorrer que, com mais fundamento e numa visão de maior alcance, a energia sexual seja apenas o produto de uma diferenciação na energia que atua generalizadamente na mente” (p.85). Portanto há muito o que a ciência estudar sobre o psiquismo. Todos sabemos que uma pessoa sofrendo de uma dor, mal-estar orgânico, doença grave, deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento. “Ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. Aqui a libido e o interesse do ego partilham do mesmo destino e são mais uma vez indistinguíveis entre si. O egoísmo familiar do enfermo abrange os dois”(p.89). A questão é por que na AIDS vemos muitas vezes o contrário? Parece haver (é o que reflete as falas) uma intenção de punir o outro. Sabemos que determinadas zonas “erógenas” podem funcionar como substitutos dos órgãos sexuais e por que isso não ocorre e a despeito do saber soropositivo não há proteção nas relações sexuais? Podemos supor aqui que a relação está voltada para a libido objetal e não a libido do ego?

O mecanismo do adoecer e sua formação de sintomas estão vinculados, pelo menos nas neuroses de transferências, a uma inibição da libido objetal e na demência precoce e na esquizofrenia a um represamento da libido do ego. Nosso aparelho mental é destinado a dominar as excitações de forma que as descargas não se tornem patogênicas. Porque alguns indivíduos conseguem mesmo com profundos sofrimentos e outros não eis a questão. Diante da frustração a libido liberada não permanece ligada aos objetos na fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania é a expressão daquilo que não foi possível ser introvertido, que pudesse ficar na fantasia. Assim colocam-se algumas possibilidades: representar o que resta de um estado normal de neurose ou representar o afastamento da libido dos seus objetos ou expressar a megalomania e perturbações afetivas, regressão ou representar a libido religando-a aos objetos como na neurose histérica, na demência precoce e na esquizofrenia ou como na neurose obsessiva e na paranoia. Seja qual for a defesa ou a dinâmica da estrutura é certo que tanto a libido objetal como a libido do ego, mesmo em relação a escolha dos objetos revela-se e se desenvolve desde o nascimento (narcisismo primário) onde as primeiras experiências de satisfação ao sofrer alguma perturbação seja da ordem de abusos sexuais, abandono, violências diversas, “as reações com que ele procura proteger-se e os caminhos aos quais fica sujeito” podem adotar como objetos amorosos não um outro (que não foi possível como modelo), mas seus próprios eus. “Procuram inequivocamente a si mesmos como um objeto amoroso, e exibem um tipo de escolha objetal que deve ser denominado narcisista” (p.93). Mas é possível também que não tenha havido nenhuma perturbação no desenvolvimento e a escolha ainda se dar no próprio eu.

A supervalorização sexual, que se transfere ao objeto sexual, e que empobrece o ego em relação à libido em favor do objeto amoroso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal, que implica em uma parte da renuncia de seu narcisismo. Qual é o ideal de  ego na nossa sociedade? Podemos “defender” a margem da cultura da civilização que cada um é o que quer na famosa frase do senso comum: “do quem paga as contas”, a qual podemos interrogar de quais contas de fala? É o discurso chamado democrático para encobrir a perversão? “Os impulsos instintuais libidinais sofrem a vicissitude da repressão” em função da cultura, da moral e da ética. Para um ego ideal ou um ideal de ego há que se condicionar, portanto a repressão, a cultura. Difícil localizar na infância a renuncia a perfeição narcisista e quando adulto diante das frustrações em seus intentos seja pelo julgamento crítico próprio ou de outrem, procure um substituto do narcisismo perdido de sua infância “na qual ele era seu próprio ideal” o sujeito projeta diante de si seus objetos como sendo o ideal e então se afasta da realidade. Então a despeito de sejam quais forem suas doenças orgânicas, funciona como se ainda vivesse na infância.  

Importante remetermos às estruturas, que compreendemos de forma flexível. Em uma neurose há no ego uma predominância da influencia da realidade, ele depende da realidade, está a serviço desta, pois se dispõe à repressão de impulsos instintuais e desta forma suprime fragmentos do id. Mas em relação a esse mesmo fragmento o ego necessita também relaxar sua relação com a realidade em função da repressão ocorrida. Ou seja, é semelhante ao equilíbrio do potencial de membrana em repouso devido a uma pequena estocagem de íons de carga negativa, fosfatos orgânicos  e proteínas no citosol, e uma estocagem igual de íons de carga positiva (íons de sódio), externamente. Não acreditamos que essa repressão seja fracassada na medida em que o psiquismo consiga manter o seu equilíbrio. Existindo situações traumáticas na infância a defesa é o sujeito “esquecer” a experiência, transferindo-o à amnésia. A consciência, enquanto instancia individualizada com todas as suas vicissitudes, seja influenciada pelos pais, cuidadores ou pela sociedade, mesmo com todas as resistências erigidas como defesa é possível a observação do ego real medindo-o com o ego ideal.“Mas a revolta contra esse ‘agente de censura’ brota não só do desejo, por parte do indivíduo (de acordo com o caráter fundamental de sua doença), de libertar-se de todas essas influências, a começar pela dos pais, mas também do fato de retirar sua libido homossexual delas. A consciência do paciente então se confronta com ele de maneira regressiva, como sendo uma influência hostil vinda de fora” (p.103).  Em uma psicose e ego está a serviço do id, pois a influencia deste é predominante, e se afasta da realidade, arrastando o ego para longe da realidade, mas ao mesmo tempo tenta reparar o dano que isso causa restabelecendo a relação do sujeito com a realidade através do id. Assim na reação psicótica a situação traumática seria uma negação do fato. Dessa forma tenta reparar a perda da realidade restringindo-a, negando-a de forma autoritária e na medida em que nega cria uma nova realidade, da negativa. Tanto na neurose como na psicose o id tem dificuldades de adaptar-se às exigências e necessidades do mundo externo. Nas situações de doenças graves essas dificuldades são ainda maiores.

Na neurose ignora-se a realidade, é uma espécie de tentativa de fuga, ou seja, a repressão pode em um momento ou outro vai fracassar. Como existe um grande dispêndio de energia psíquica para que não fracasse, uma vez fracassando nos deparamos com os sintomas. As tentativas de substituir a realidade desagradável por outra é possibilitado pela fantasia. Na psicose nega-se a realidade e tenta substituí-la, dando uma nova roupagem às vivências, ao real, através dos precipitados psíquicos (http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/04/arquitetura-psiquica.html), sobre os traços de memória, ideias, juízos, representações que vão estar “guardadas”.  (http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/02/lembrancas-e-paranoia-memoria.html) Como é necessário novas percepções que correspondam a nova realidade (negada) isso é realizado através de pequenas, às vezes imperceptíveis e muitas vezes intensas alucinações e delírios, o que demanda ainda muito estudo pela sutileza dos mecanismos. O fragmento de realidade rejeitado irá sempre pressionar pelo retorno, o que vai gerar ansiedade e angústia. “Ao passo que o novo e imaginário mundo externo de uma psicose tenta colocar-se no lugar da realidade — um fragmento diferente daquele contra o qual tem de defender-se —, e emprestar a esse fragmento uma importância especial e um significado secreto que nós (nem sempre de modo inteiramente apropriado) chamamos de simbólico. Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da realidade, mas também a um substituto para a realidade” (1924 - p.209). Não podemos deixar de considerar a relação entre a formação, que aumenta as exigências do ego, de um ideal e a sublimação, que diz respeito tanto a libido do ego como a libido objetal no sentido de dirigir sua finalidade. Compreender o movimento da carga libidinal, energia psíquica, em doenças graves é tarefa difícil e requer compromisso ético incondicional. Mesmo que o sujeito seja acolhido e trabalhe por resinificar, seu narcisismo por um ideal elevado, o que não é fácil, pois envolvem instintos e demandas do id, a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estimulado e potencializado. Que a criança existente nesse sujeito cresça, amadureça para afastar-se do seu narcisismo primário é importante para um novo adulto saudável psicologicamente. Ser amado por seus objetos (trabalho, família, estudo, amigos) eleva a autoestima. Um amor fraterno é condição para que a libido objetal e libido do ego não possam ser distinguidas e sejam sublimadas. Importante ressaltar que a continuidade de escolha de um ideal sexual segundo o tipo narcisista implica na possibilidade de manutenção do sofrimento e do reinstalar e instalar de perversões. É certo que  um ideal de ego tem um aspecto social, que é extensivo a todo o contexto de vida do sujeito seja através de um ideal comum em família, uma classe, um grupo. Compreender a dinâmica narcísica nestas situações graves de vida é importante no sentido de uma clínica não só do medicamento, mas do acolhimento, da escuta, da interpretação no sentido de aliviar os sofrimentos humanos.

Referencias
 FREUD, S.  -  SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO – (1914). Obras Completas de Psicanálise - volume XIV. Rio de Janeiro, Imago-1996.
 FREUD, S.  -  A PERDA DA REALIDADE NA NEUROSE E NA PSICOSE - (1924). Obras Completas de Psicanálise - volume XIX. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

22 de abril de 2013

"O céu é constante, a terra é duradoura"


 O céu é constante, a terra é duradoura
O que permite a constância e a duração do céu e da terra
É o não criar para si
Por isso são constantes e duradouros
Assim
O Homem Sagrado deixa seu corpo para trás e o Corpo avança
Além do corpo, o Corpo permanece
Através do não-corpo, conclui o Corpo

TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

21 de abril de 2013

Psiquismo e Cura



“Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar”. Freud

“Chamamos um comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade”. Freud

14 de abril de 2013

A “Ilusão” necessária ao real e o real como algo “intangível”

No mundo midiático em que vivemos, falar sobre ilusão, ciência e o que é real é tarefa complexa e difícil. Ao nos propormos a leitura do texto “O futuro de uma Ilusão” deparamo-nos com as grandes ilusões do mundo em que vivemos, não só no que diz respeito às suas instituições, como as ilusões que cada sujeito constrói, para suportar a realidade. Muitas falas o próprio sujeito inconscientemente sabe que não se realizará, mas ele precisa delas como suporte da realidade. Freud foi cauteloso ao escrever o texto e esclareceu: “Tome minha tentativa pelo que ela é. Um psicólogo que não se ilude sobre a dificuldade de descobrir a própria orientação neste mundo, efetua um esforço para avaliar o desenvolvimento do homem, à luz da pequena porção de conhecimento que obteve através de um estudo dos processos mentais de indivíduos, durante seu desenvolvimento de crianças a adultos” (p. 60 – 61). É importante pontuarmos que entendemos por civilização humana tudo aquilo que se elevou a condição animal, ou seja, por certo, ainda existe nesta civilização, circunstancias que estão no humano, mas pertencem ao animal.

Muitos se interrogam neste momento não só quanto ao destino da humanidade, dos fazeres profissionais, das religiões, das economias. Alguns falam de uma nova época da civilização, ou seja, como diz Freud “qual o destino que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar”. (p.15) Mas isso só é possível quando se conhece o passado e o presente, apropriando-se dos conteúdos de forma a compreender suas determinações, o que só é possível pelo distanciamento crítico.

Civilização humana é tudo aquilo que se eleva a condição animal. O conhecimento adquirido pelo homem implicou em certo “controle das forças da natureza” e assim extrair a riqueza que ela fornece para suas necessidades, que através de relações humanas equitativas e distribuição da riqueza disponível da vida na terra. As relações são influenciadas pela satisfação instintual que a riqueza torna possível; em outro sentido o homem pode, ele próprio, funcionar como riqueza em relação a outro homem da mesma forma “as criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação” (p.16). Será que é possível distanciarmo-nos e avaliar o grau de evolução da civilização do humano ou se pouco avançou e esse avanço fica mascarado pelas descobertas tecnológicas? As tendências destrutivas, antissociais, são muito fortes e determinam o comportamento dos indivíduos em sociedade. Necessário é diminuir o custo das demandas instintuais reconciliando-os, direcionando-os, encontrando no autoconhecimento a possibilidade de renuncias a domínios próprios dos desejos instintuais. Assim a educação pela supremacia da razão e sublimação dos instintos agressivos e violentos podem levar os homens à construção de uma nova civilização.

As privações e as proibições ou vicissitudes que afetam a todos os indivíduos são as mais antigas da história da humanidade, há milhares de anos. Dos desejos instintuais que vão do canibalismo ao incesto e desejo de matar, apenas o canibalismo parece ser condenado. Os desejos incestuosos são a todo o momento fatos nos noticiários, principalmente envolvendo crianças e adolescentes. O matar é algo ordenado por nossa sociedade através de seus diversos conflitos. É possível que desejos antes censurados pela sociedade sejam com o passar do tempo liberado por interesses econômicos e políticos como outros liberados sejam proibidos pelos mesmos interesses. Em todos eles veremos discursos de defesa do moderno, para o mundo do consumo. Se interrogarmos que grupos são potencialmente consumidores e cujos conceitos devem ser modificados ai residirá a “mudança”. No mundo atual pouco se discute de renúncias instintuais. Mas como discutir essa questão tão importante no sentido do humano em um mundo de consumo. Toda renúncia instintual passa pelo fator psicológico. Que a mente humana tenha passado por desenvolvimentos desde os tempos primitivos pela imersão na cultura e suas leis e proibições de construção do superego é um fato. E como diz Freud: “é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente, foi sempre assim através de muitas épocas da civilização” (p.21). O conjunto das pessoas que vivem em sociedade possui um ideal, que tem algo de narcísico e orgulho. E são essas formas de existir que fazem com que “a partir da intensidade dessas diferenças que toda cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto” (p.22 – 23). A arte em suas mais variadas expressões é via de regra uma satisfação substitutiva para antigas renúncias e uma forma de reconciliar os homens, bem como as ideias religiosas a que Freud irá interrogar em que reside o seu valor.

A civilização enquanto normas e leis morais, “parece” alheia às leis da natureza, que em seus diversos elementos sucumbe a todo controle humano pelos terremotos, enchentes, tsunamis, vulcões, tempestades, as doenças que desafiam o homem e para a ciência o “enigma da morte”. O certo é que diante das catástrofes os homens esquecem suas discordâncias, ressentimentos, indiferenças e as interações fraternas revelam que a vida para todos é difícil de suportar, que diante do destino a autoestima do homem exige consolação. Fala-se muito da humanização da natureza, mas com essa humanização, com o domínio das ferramentas, o homem também a tem destruído de forma voraz. “De forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos” (p.25). Não há segurança possível. Ela é uma ilusão. O desamparo de cada um permanece e cada um dá a ele o significado e significantes que acomodam  ou aliviam a ansiedade, o medo e a angústia do existir. Na antiguidade os deuses eram os senhores da natureza, mas com referência aos destinos “persistia a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser remediados” (p.27). O homem sempre personificou as forças da natureza, como forma de compreendê-las, mas também não compreende as forças da natureza que se personificam. O que ele tenta dominar psiquicamente personificando ele tenta dominar fisicamente tentando materializá-las.

O desamparo a que se vê no mundo desde o nascimento necessita encontrar acolhimento no adulto. É nesse sentido que Freud irá responder a significação psicológica das ideias religiosas: “As ideias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença. Visto nos fornecerem informações sobre o que é mais importante e interessante para nós na vida, elas são particular e altamente prezadas. Quem quer que nada conheça a respeito delas é muito ignorante, e todos que as tenham acrescentado a seu conhecimento podem considerar-se muito mais ricos” (p. 34). O fato de todas as informações sobre religiões, erigidas pelo patrimônio cultural da humanidade desde nossos ancestrais, estar cheios de contradições, coloca questões de inúmeros enigmas sobre o universo, que “solucionados nos reconciliaria com os sofrimentos”. Freud compreende a importância das doutrinas religiosas para a manutenção da sociedade humana e em sua “angustia”, pois o texto O futuro de uma ilusão (1927 - 1931), escrito entre a primeira e a segunda guerra mundial se interroga: “se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma experiência interior que dá testemunho dessa verdade, o que se deve fazer com as muitas pessoas que não dispõem dessa rara experiência?” (p. 37).  Vemos  que somente quando o homem se vê diante de sofrimentos aparentemente intransponíveis, tragédias pessoais, coletivas é que ele se interroga sobre Deus, espiritualidade e busca um sentido para sua vida, e isso não foi diferente com Freud, que remete essa necessidade ao desamparo na infância, que perdura por toda a vida, fruto de desejos humanos e estes ilusórios que são colocam uma contradição, embora afirme que definir como ilusão ou não “dependerá da própria atitude pessoal”. É certo que os enigmas do universo só há bem pouco tempo vem sendo revelados e que nossa civilização se ergue sobre as crenças religiosas e os achados arqueológicos têm sinalizado em relação a suas verdades históricas. E sinalizando isso escreve que o homem... “possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência, sendo muito estranho... que um psicólogo, que sempre insistiu em que a inteligência, quando comparada à vida dos instintos, desempenha apenas um papel de menor vulto nos assuntos humanos, tente agora despojar a humanidade de uma preciosa realização de desejos e proponha compensá-la disso com um alimento intelectual” (p.43). Em seu imenso conhecimento e sabedoria Freud ao tempo que argumenta o papel da psicanálise, “como instrumento imparcial de pesquisa”, analisa as religiões, questionando seus dogmas como ilusões ao mesmo tempo afirma que, “os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas” (p.45)  e assim percorreu este caminho Françoise Dolto em "A fé à luz da psicanálise". Sabemos que existe uma grande maioria de pessoas insatisfeitas com o mundo atual, com a cultura da qual faz parte, mas há que se interrogar e se implicar em seus sintomas, mecanismos de projeção e em suas defesas. Convém um mundo “faltante”, em que a castração pode ser ignorada, (é o sintoma que se agrega ao ego) para que seja preenchido por um ignorar a lei ou pelo rompimento com esta. Lei aqui entendido como aquilo que barra os instintos primitivos. O pai primeiro, o pai primitivo, “primevo” “constituiu a imagem de Deus, o modelo a partir do qual as gerações posteriores deram forma à figura de Deus. Daí a explicação religiosa ser correta” (P.51). A criança que sobrevive no homem é para lembrá-lo de que seu processo de educação não termina nunca como dizia Sócrates. Se a psicanálise resistirá ao teste de confrontar as doutrinas religiosas e resinificar a existência de Deus, entregue a seus próprios recursos, nos próximos 14 anos o texto “O futuro de uma Ilusão” completará 100 anos e então podemos repensá-lo, da mesma forma que a física quântica com Anton Zeiliger, apontado como o primeiro cientista a demonstrar a teleportação quântica recoloca questões hoje impensáveis a nível da ciência há 100 anos atrás. Mas Freud lembra que os conhecimentos científicos da humanidade “ensinou muito, desde os dias do Dilúvio, e aumentará seu poder ainda mais. E quanto às grandes necessidades do Destino, contra as quais não há remédio, aprenderão a suportá-las com resignação”(p.57). O fato de em alguns trechos o texto “O Futuro de uma Ilusão” ser narrado na terceira pessoa, e na página 59 Freud propor uma troca de papéis: “você surge como um entusiasta que permite ser arrebatado por ilusões, e eu represento as reivindicações da razão, os direitos do ceticismo. O que você expôs me parece ser construído sobre erros que, seguindo seu exemplo, eu poderia chamar de ilusões, por traírem de modo bastante claro a influência de seus desejos. Você prende sua esperança à possibilidade de que gerações, que não experimentaram a influência das doutrinas religiosas na primeira infância, alcançarão facilmente a desejada primazia da inteligência sobre a vida dos instintos. Isso é decerto uma ilusão; nesse aspecto decisivo, a natureza humana dificilmente tem probabilidade de mudar... Se você quiser expulsar a religião de nossa civilização... só poderá fazê-lo através de outro sistema de doutrinas, e esse sistema, desde o início, assumiria todas as características psicológicas da religião” (p.59).  É que em milhares de eras para o desenvolvimento da psique e do intelecto possibilitaram profundas interrogações que persistirão por muitos séculos. Muitas vezes assenhorear-se dessa angústia implica em construir rótulos, diagnósticos, que “aliviem” a própria angústia e o sentimento de desamparo.

A questão da sublimação dos instintos é algo a ser aprofundado. Como cada ser humano sublima seus instintos e assim evolui na sua condição de humano é da determinação de cada sujeito. Bem como o que cada um toma para si como ilusão ou real. Os sonhos é um exemplo disso. A ciência ao longo de toda a história da humanidade ainda não conseguiu resolver essa angústia e as pesquisas sejam da neurociência ou da física quântica parecem buscar um apaziguamento entre ciência e religião. O intelecto estará sempre interrogando e ainda bem, pois esse é seu trabalho no sentido de apaziguar o antagonismo como diz Freud entre religião e ciência que “é apenas temporário e não irreconciliável”, independente muitas vezes dos propósitos das religiões, que servem ao homem, se para aprisiona-lo, coloca-lo em estado de servidão ou libertá-lo no sentido de seu autoconhecimento. A psicanálise não possui todas as respostas, tão pouco é seu propósito e nenhuma área da ciência a possui, portanto pode ser que daqui a 100 ou 200 anos o homem olhe seu passado e se interrogue: mas como eles acreditaram nisso? A ortodoxia que não se permite questionar é uma religião no sentido pleno de seus dogmas. É certo que vimos ao longo do tempo substituindo símbolos religiosos por outros como a fotografia, os livros, a casa e até móveis dos mestres. Interrogar-mo-nos sobre o que Freud e Lacan diriam se ao invés de encontrar nas clínicas de saúde, consultórios, como era tão comum em sua época, crucifixos, principalmente porque essas instituições eram dirigidas por religiosos e encontrar hoje suas fotos ou fotos de seus objetos e o divã sendo apenas um ícone de decoração. A pratica constituinte do mundo demonstra como o mundo nos deve aparecer, pelas coisas que nos influenciaram, que incorporamos ou rejeitamos e aqui surge o conflito. Mas não podemos deixar de levar em conta nosso “aparelho psíquico perceptivo” e toda sua estrutura em nossa leitura do mundo que nos cerca. A “ilusão” ou o “real” tão necessário à vida estará sempre como o véu de Maya a ser desvendado, única forma de tornar-se tangível.
Referencia: FREUD, S.  -  O FUTURO DE UMA ILUSÃO – (1927 - 1931). Obras Completas de Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996.        

7 de abril de 2013

Violência e Instintos

Em um momento em que se discute pelo mundo e no Brasil, vide artigos nossos anteriores, sobre a violência no sistema prisional e se inicia o julgamento dos responsáveis pelo massacre do Carandiru reportagem de 07.04.3013 do http://www.uol.com.br a ser acessada http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/04/07/acao-da-pm-no-carandiru-comeca-a-ser-julgada-em-sp-apos-20-anos-e-com-crimes-prescritos.htm Iniciamos nossas reflexões com a  correspondência entre Einstein e Freud no texto intitulado “Porque a guerra”? (Einstein e Freud -1933 [1932]), acerca da guerra. Podemos hoje interrogar: Por que a violência? Por que tanto o sujeito que comete, como quem sofre e quem é expectador possuem muitas vezes sentimentos e potencial semelhantes de agressividade e violência?

Na carta Einstein em setembro de 1932 interroga sobre como livrar a humanidade da ameaça da guerra e de como todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em fracasso. Questiona a criação de uma instituição acima dos Estados, pois suas ações seriam “anuladas por pressões extrajudiciais”, pois segundo Einstein lei e poder  “andam de mãos dadas”. (Grifos nossos) Interroga ele que fatores psicológicos estariam em jogo, mas identifica alguns deles como o “intenso desejo de poder que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário... considera a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal” ( p. 194). Para tal necessidade de poder ele designa a classe dominante, as escolas, a imprensa e a Igreja, como instituições que influenciam as emoções do povo, mas essa influencia só é possível porque dentro do homem habita o ódio e a destruição, em que eles só fazem despertá-la para que se eleve a “potência de psicose coletiva”. Como última questão coloca: É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? (Grifos nossos) Levanta a hipótese do instinto agressivo do homem, as guerras por intolerância religiosa a violência e massacre das minorias pelo mundo. O Carandiru seja paulista, gaúcho ou paraibano é só mais algumas histórias de massacres como outras pelo mundo como as prisões francesas, turcas, iraquiana, Guantánamo e tantas outras que poderíamos listar afora o massacre de refugiados. Poderíamos falar que já estamos em uma terceira guerra a qual Einstein diz que a quarta seria com paus e pedras.

Freud responde a carta abordando a questão do direito e poder e coloca que a palavra “PODER” deve ser substituída por violência e considera que direito e violência se desenvolveram uma da outra e que os conflitos entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. Resgata a origem da história humana da seguinte forma: “No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta;” (p.198) No caso que volta a discussão essa semana (o massacre do Carandiru) vemos que a força bruta aliada às armas continua em vigor acompanhada de nuanças perversas. Neste caso em 1992, há 20 anos, “sobreviventes são obrigados a passar por corredor polonês formado por PMs; policiais ordenam que eles tirem a roupa e corram pelados. Detentos são convocados para ajudar a empilhar os corpos no 1º andar”. Situações semelhantes viveram os prisioneiros de Guantánamo e no Iraque.

Mas Freud considera que na história da humanidade é “comum” o vencedor aquele que matasse o adversário ou de acordo com a conveniência deixa-o como escravo na realização de trabalhos, ou seja, subjugar ao invés de matar, e arrisca sua segurança com a sede de vingança do inimigo. Então ele coloca que isso se modificou no transcurso da evolução e que havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou a lei. A força da comunidade passa a ser uma expressão de violência sob a forma de lei que pode se voltar contra qualquer oponente. Isso nos lembra das organizações criminosas que surgiram depois do massacre do Carandiru. Então escreve: “desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual — homens e mulheres, pais e filhos — e logo, como consequência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontra em estado de sujeição”. (p. 199-200) A humanidade desde sua origem viveu infindáveis guerras e conflitos entre comunidades, nações pelos motivos de domínio dos recursos naturais, por extensão de domínios territoriais e por estabelecimento de ideias sejam políticas ou religiosas e as armas sempre foram sua força. A guerra e a violência nunca foi uma forma de estabelecer a paz e seus resultados têm sido cada vez mais destrutivos. 

Se a guerra e a violência foi ou é uma forma de estabelecer a lei é porque há como diz Freud há um “instinto de ódio e destruição”. Se a espécie humana ainda é movida por instintos de selvageria é porque nos habita  o desejo da agressão e destruição. Por isso Freud dirá que: “uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição” (p. 204).  Na sequencia interrogará sobre como contrapor o instinto de destruição e afirma: “A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”. Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala” (p. 205).  Freud sugere evoluirmos na substituição dos instintos pela razão, afirmando de forma belíssima:  “Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra (e a violência)? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra (e à violência) dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra (e a violência) põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade”. (p. 206) A verdade dessa fala nos causa perplexidade ante a violência, os conflitos armados e a guerra. Se “nada podemos fazer”, podemos nos rebelar e defender uma cultura de paz, onde cada um busque percorrer o caminho de cura interior de seus instintos mais violentos e agressivos e que o gozo do poder possa fazer uma passagem do perverso a uma estrutura mais sublimada. Sabemos que no processo de evolução da humanidade o psiquismo tem evoluído, pois sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis tem se tornado intolerável para nós. 

Psiquismo e corpo têm evoluído para modificações éticas e estéticas, para o uso da razão do fortalecimento intelectual e assim esperamos que a energia ou a catexia dos instintos rasteiros vão se reduzindo como dirá Freud: “E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”. (p. 206-207-208) Se a palavra instinto vem do latim Latim INSTINCTUS, “instigação, impulso”, “incitar, impelir”, de IN-, “em”, mais STINGUERE, “fincar, espetar”. A questão é que milhões de objetos, significantes nos instigam, impulsionam, incita, impele então saber qual instinto está vinculado a essa ou aquela ação de violência e sintomas patológicos é a questão.  Porque podemos está falando de algo sem controle, cheio de impulsividade, incapaz do uso da razão. No reino animal fome e procriação, preservação da espécie é o motor que impulsiona o equilíbrio da vida. E no mundo humano? Podemos falar de quais instintos impulsionam o equilíbrio ou desequilíbrio da vida mental e da violência? A origem, objeto e finalidade (Esse “Trieb”) do instinto é muito diverso de indivíduo para indivíduo e em um mesmo indivíduo, podem passar por muitas modificações. Se a finalidade é ativa ou passiva elas podem se interpor e conter a mesma carga de energia. Um impulso que vem de uma origem pode ligar-se a outro que provem de outra origem e compartilhar de suas vicissitudes. 

A satisfação de um impulso pode ser substituído por outro, bem como a modificação de finalidade e objeto pode determinar a sublimação. Surpreendentemente na perfeição que a espécie humana é formada...  “os instintos sexuais fazem-se notar por sua plasticidade, sua capacidade de alterar suas finalidades, sua capacidade de se substituírem, que permite uma satisfação instintual ser substituída por outra; e por sua possibilidade de se submeterem a adiamentos”. (p.100) Ou seja, por maiores demandas instintuais que possa haver, principalmente com a finalidade de destruição, violência, é possível exercer o controle sobre eles no caminho da evolução. A questão que Freud coloca “porque necessitamos de tempo tão longo para nos decidirmos a reconhecer um instinto agressivo?”, (p.105) nos remete a colocação de que se fosse para atribuir ao mundo animal não haveria problemas, mas o narcisismo humano “não permite” que cada um se implique como um agressor, chegando como diz Freud a ser um “sacrilégio”, pois o homem deve ser bom e acreditamos que muitos conseguem a sublimação de seus instintos, mas que muitos se mostram sádicos, cruéis e perversos, vindo a se constituir em estruturas patológicas, onde seus objetos, mesmo estando muitas vezes ressarcindo seus débitos com a sociedade, devem sofrer dor, maus-tratos e humilhações. Essa ainda é a história da humanidade, nas guerras, conflitos armados, violação dos Direitos Humanos, violência doméstica, abuso com crianças e adolescentes, maus tratos de trabalhadores. Necessário ressaltar que não vamos falar aqui sobre os instintos de morte, aos quais Freud fala em Além do Princípio do Prazer(1920) e O Ego e o Id(1923). Aprofundaremos em outra oportunidade. Se é necessário destruirmos o outro para não destruirmos a nós mesmos estamos repetindo o ato violento do outro que está dentro de nós e a existência dos animais inferiores, qual seja a capacidade de regenerar órgãos perdidos em seu instinto de recuperação. 

Em nossa busca  terapêutica de retorno do recalcado (falamos no artigo sobre Lembranças e Paranoia) ficamos aqui com o trecho de Freud: “Peixes que migram para a desova, pássaros que voam em migração, e possivelmente tudo o que qualificamos como manifestação de instinto em animais, realizam-se sob as ordens da compulsão à repetição, que exprime a natureza conservadora dos instintos. E não temos de procurar muito por suas manifestações na área mental. Chamou-nos a atenção o fato de que experiências reprimidas e esquecidas da infância são reproduzidas, durante o trabalho da análise, nos sonhos e nas reações, particularmente naquelas ocorrentes na transferência, embora seu revivescimento vá de encontro ao interesse do princípio de prazer.” (p. 108) Se a guerra, a violência em todas as suas formas é uma repetição dos instintos primários, sintomas de estruturas patológicas que se repetem em um primeiro momento dirigido aos outros, mas em prejuízos das próprias pessoas e que estas obtém satisfação com o próprio sofrimento ou o sofrimento do outro remete a uma sintomatologia patológica a ser tratada. Que a resistência será erigida e a dificuldade de desvinculação dos sintomas do Ego são aspectos a serem “vencidos”, não há dúvida. Se no processo de evolução humana, na “passagem de matéria inorgânica” a matéria orgânica há um instinto de preservação do inorgânico, ou seja, um instinto de morte; estamos falando da matéria e se o que anima essa matéria ao longo dos bilhões de anos no planeta é um processo vital que a ciência busca incessantemente desvendar, que é a psique humana, temos a considerar nesse circuito de vida-morte-vida, a vida a despeito de todas as patologias seja psíquica, social, tem sido vencedora, senão não estaríamos aqui.

Referencia
FREUD, S. POR QUE A GUERRA? (EINSTEIN E FREUD) (1933 [1932]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S. CONFERÊNCIA XXXII - A VIDA INSTINTUAL Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

6 de abril de 2013

História da Arte - História da Vida

Imagem: Gombrich, E.H - A História da Arte




Por que viver é uma arte? Por que viver é a possibilidade de milhões de representações e significantes a serem elaborados, sublimados em benefício do próprio ego e da humanidade.

É nesse sentido que refletimos um pouco sobre “A história da arte”, como a história dos mitos e da humanidade vão se fundir no percurso de sua caminhada. Se a arte e os mitos são representações do psiquismo, da vida humana em todas as suas dimensões, daquilo que para o homem sempre foi fonte de interrogações e enigmas, ou seja, aquilo do qual não é possível compreender é possível representar, simbolizar, para alcançar o estatuto de significante. Assim nada existe que se possa dar o nome de arte, pois esta sempre foi representação. Assim é que ao olharmos um quadro, uma escultura são as expressões, formas que nos representam que nos leva a gostar ou não. O que chamamos “obra de arte”  é objeto feito por seres humanos para seres humanos. Quando nos deparamos com pinturas, esculturas, desenhos em paredes muitas vezes admiramos e pensamos nelas como obra de arte, mas quando foram realizadas não se destinavam a ser exibidas ou admiradas como tal, foram feitas para um determinado propósito. Porque adquirem com o passar do tempo a categoria de arte? Todas as construções humanas poder vir a ser categorizadas dessa forma, embora tenham sido construídas para uma finalidade. Nas sociedades “primitivas” as cabanas existiam para protegê-los das intemperes da natureza, as imagens e desenhos para protegê-los contra outros poderes e espíritos da natureza, dar significado aos seus medos e elaborá-los. É por isso que a história da arte é uma história de concepções, ideias, necessidades, onde a técnica faz parte dessas concepções e ideias. Assim o que faz com que as construções humanas se transformem em objetos de arte está nas ideias que transmitem. Não podemos esquecer que imagens e palavras “são parentes consanguíneos”. Quem nunca ouviu a frase de  que “uma imagem pode valer mais que mil palavras”. E por quê? Porque uma imagem possui com certeza muito mais que mil significantes.

"Viver é uma Arte"

Não vivemos isolados nesse mundo. A cada dia entramos em contato com diversas pessoas e contextos, sejam eles habituais a nós ou totalmente novos. Em nossas interações trocamos vivências, experiências, aprendizados. Sempre deixamos algo de nós e levamos algo do nosso próximo, no entanto, o que deixamos ou o que levamos nem sempre se trata de coisas boas, agradáveis

Cada pessoa tem um modo singular nesse mundo, ao mesmo tempo em que somos todos iguais, somos todos diferentes e quanto! Seria muito mais fácil se nós nos relacionássemos com pessoas que só pensassem, agissem e fizessem coisas iguais a nós. É...realmente seria bem mais fácil. Viver em um lugar onde o atrito, a discordância, o ponto de vista diferente ao seu não existisse. Já pensou? Como se fosse uma língua universal, um único padrão a ser seguido.

 Tomara que você não tenha cogitado essa ideia! Pense no quão fastidioso seria. Já pensou que às vezes nem mesmo a gente se aguenta? Então, já pensou o que seria de nós se não tivéssemos nosso amigo que não precisa ouvir nada de nós, só de olhar percebe algo de errado conosco ou aquele outro amigo mal humorado, mas tão mal humorado que chega a ser engraçado, ou daquela pessoa que nem conhecemos, mas nos consola simplesmente ao dizer: “oi, tudo bem”?

 A comunicação e as interações sociais são essenciais em nossas vidas, seja para transmitirmos ou compartilharmos informações, experiências ou vivências pessoais. Alguém já disse que “viver é uma arte”. É sim! E nesse mundo somos todos artistas. Artistas na arte de conviver com nossos semelhantes.

 Para que essa convivência seja mais harmônica nos é exigido algumas habilidades para que nossas interações possam ser mais agradáveis e bem sucedidas. A assertividade se enquadra como uma dessas habilidades. Mas, o que significa ser assertivo? A pessoa assertiva é habilidosa em expressar o que sente, deseja e pensa de modo socialmente adequado, ou seja, consegue expor a sua posição sem desrespeitar o seu interlocutor.

Você já vivenciou ou já ouviu falar que alguém ficou chateado, nem tanto pelo o que a pessoa disse, mas pelo modo como ela se expressou? Talvez, essa pessoa tenha dito tudo o que gostaria de falar, mas de forma agressiva, irritada. Dessa maneira a outra pessoa pode se sentir ofendida com esse tipo de postura. Avaliar as circunstâncias em que se está envolvido, ponderar o tom de voz e as palavras ditas pode permitir um êxito maior quando se está presente em alguma situação adversa ou diante de um problema que nos exige uma posição para solucioná-lo. Saber o que, como e quando falar permite uma melhor convivência com a diversidade de sentimentos, pensamentos e opiniões com que nos deparamos cotidianamente e também permite uma maior qualidade nas nossas interações.

 Por Camilla Silva Baltazar 

5 de abril de 2013

Filosofia - Caminho e Virtude


Quando os seres sob o céu reconhecem o belo como belo
Então isso já se tornou um mal
E reconhecendo o bem como bem
Então já não seria um bem
A existência e a inexistência geram-se uma pela outra
O difícil e o fácil completam-se um ao outro
O longo e o curto estabelecem-se um pelo outro
O alto e o baixo inclinam-se um pelo outro
O som e a tonalidade são juntos um com o outro
O antes e o depois seguem-se um ao outro
Portanto
O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento através da não-palavra
Os dez mil seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a realização mas não a possuem
Concluem a obra sem se apegar
E justamente por realizarem sem apego
Não passam

O homem de consciência pura e infinita fala e age sem intenção, sem interesses pessoais. Os ensinamentos do Livro do Caminho e da Virtude ( Lao Tse) nos revela que, só existem homens sagrados pela união  da Consciência Pura com a Vida Infinita, em que palavra e ação devem ser sem intenção, ou seja, sem egoísmo.  
TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

4 de abril de 2013

Direitos Humanos - Prisões


Em 19/03/2013 o Zamanfrance, (desativado) par Mehmet Dinc publicou a matéria sobre a prisão e morte de turcos que vivem na França com o título “A abertura de uma investigação após a morte suspeita de prisioneiros turcos”. A reportagem coloca que “Segundo o relatório do Observatório Internacional das Prisões, as condições de detenção na França são as mais execráveis da Europa. De mortes misteriosas e suicídios são reportados a cada três dias".  A associação que apoia as famílias em processos judiciais, disse que, desde 2010, 309 presos morreram ou cometeram suicídio após negligência encontrada nas prisões.

Somos uma só humanidade, com diversas arquiteturas psíquicas. Se esses prisioneiros (296 nos últimos três anos e condenados de forma duvidosa; as famílias estão vivendo uma verdadeira batalha jurídica para apuração dos fatos) como diz suas famílias: estão sendo exterminados nas “precárias prisões francesas” desde 1994, sob o argumento de suicídio, nos deparamos com as mesmas práticas “bárbaras” de extermínios de seres humanos. A prática do extermínio sejam por quais meios: nas guerras em suas diversas formas, conflitos armados, prisões ao redor do mundo, bases militares, navios mercantes, extermínio de pessoas em situações de pobreza absoluta, de negros, das minorias, dos usuários de substancias psicoativas, os tão falados grupos de extermínio sejam institucionais ou a “margem” nos remete a algo do perverso. Quantas práticas de extermínio existem hoje no planeta sejam com seres humanos, animais, ou na natureza. Nossa reflexão é o que diz respeito a nossa razão e subjetividade como condição do humano e as práticas e estruturas patológicas. Podemos falar do “Carandiru Gaúcho” que tem população maior que 40% das cidades do Rio Grande do Sul”. Mais de um século de depósito de seres humanos. Essa é a “passagem ao ato do Estado.”  o “genocídio na Paraíba” e as facções “autônomas” que disputam bairros, situação dos “Médicos sem Fronteira no Congo”. Podemos citar inúmeras tragédias no  Brasil e no planeta. A subjetividade não pode ser diluída no social e assim perdemos a dimensão do outro e de nós mesmos.  “Mas eu me pergunto se o trabalho penal não foi organizado precisamente para produzir entre os delinquentes e os operários este desentendimento tão importante para o funcionamento geral do sistema. O que temia a burguesia era esta espécie de ilegalismo sorridente e tolerado que se conhecia no século XVIII. Não é preciso exagerar: os castigos do século XVIII eram de grande selvageria. Mas não é menos verdadeiro que os criminosos, pelo menos alguns dentre eles, eram tolerados pela população. Não havia uma classe autônoma de delinquentes. Alguém como Mandrin era recebido pela burguesia, pela aristocracia, bem como pelo campesinato, pelos lugares em que passava, sendo protegido por todos. A partir do momento em que a capitalização pôs nas mãos da classe popular uma riqueza investida em matérias−primas, máquinas e instrumentos, foi absolutamente necessário proteger esta riqueza. Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem, mas daqueles que permitem a extração do lucro fazendo−a trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável ofensiva de moralização que incidiu sobre a população do século XIX. Veja as formidáveis campanhas de cristianização junto aos operários que tiveram lugar nesta época. Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto separando−o da delinquência, portanto separando nitidamente o grupo de delinquentes, mostrando−os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando−os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nascimento da literatura policial e da importância, nos jornais, das páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes.” Pg,75 Microfísica do Poder Michel Foucault

A narrativa de Foucault reflete os tempos atuais. Hoje além de punir há a vigilância ostensiva, com os mesmos argumentos, pautado na construção do medo. O recente filme dedicado às prisões turcas “Un film sur les prisons turques" projetado em Paris produzido pela banda Yorun Grup é um apelo contra a solitária, como uma forma extrema de prisão, muito “comum pelo mundo”. Há uma dilaceração psíquica programada no sentido de quando o sujeito “retorna” a sua liberdade ele está dilacerado psicologicamente, ele já possui a identidade de criminoso e não de um sujeito que cometeu um ato ilícito. “Ele é o ato” há uma prisão interna que demanda liberdade. Quando nos remetemos ao artigo anterior sobre Arquitetura Psíquica podemos interrogar  sobre o que “resta” desses sujeitos.

É oportuno lembrar o "Tratado sobre a Tolerância" de Voltaire e o que o motivou. Em 10 de Março de 1762, na cidade de Toulose, um homem é torturado, supliciado na roda até à morte e seu cadáver lançado ao fogo. Assim se cumpria a condenação sentenciada, pelo Parlamento local. Supostamente, fazia-se justiça contra um monstro que enforcara o próprio filho, jovem mártir que apenas pretendera converter-se ao catolicismo numa terra de católicos, contra a vontade de um pai calvinista. O suposto assasinato revelava-se ainda mais hediondo, pois não poderia ter sucedido sem o conluio da mãe, de um dos irmãos e de um amigo da vítima. Este caso não é diferente de muitos outros pelo mundo, nem sequer pelo facto de três anos mais tarde a França inteira ter reconhecido a inocência do condenado, de nome Jean Calas, homem trabalhador, respeitado pela comunidade, pai de seis filhos, um dos quais aliás já era católico antes da morte do irmão. O que se tornou digno de registo não foi tanto o erro da justiça, nem sequer o horror da prática da tortura, mas aquilo que realmente motivou a condenação de um homem inocente: a intolerância religiosa. Um marco na história da França. Um ano após a morte de Jean Calas, Voltaire escreve em Dezembro de 1763, o "Tratado sobre a Tolerância". Expõe aí as inconsistências do processo judicial e a brutalidade com que se chegou o suplício. Segundo Voltaire, ninguém ficaria indiferente "quando o velho, agonizando na roda, tomou Deus por testemunha da sua inocência e lhe pediu perdão para os juízes." O erro de justiça era óbvio, mas igualmente óbvio era reconhecer que o erro não resultara de negligência ou de precipitação, mas sim de praticar, a intolerância religiosa. Mesmo o calendário convinha — aproximava-se o dia, escreve Voltaire, "desses singulares festejos que as gentes de Toulouse celebram todos os anos em memória de um massacre de quatro mil huguenotes; e 1762 era o ano de mais um centenário." O “Tratado” revela o grande crime, que é a intolerância, que percorre a história humana.

3 de abril de 2013

Poesia - Rifa


Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário. Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões. Um pouco inconsequente que nunca desiste de acreditar nas pessoas. Um leviano e precipitado, coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu... "não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero...". Um idealista... Um verdadeiro sonhador... Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Este coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo. Rifa-se este desequilibrado emocional que, abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente e, contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções. Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas: " O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer". Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconsequente. Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que, ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e, a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Clarice Lispector