2 de abril de 2013

Arquitetura Psíquica


Quando falamos do humano estamos sempre nos referindo a “personalidade psíquica” e desta, seus sintomas, que são derivados do que se reprime sendo os sintomas os representantes no ego do reprimido. Sintomas estes que são conflitos entre instintos, estímulos do ego, do sujeito e a resistência que se interpõe. Compreender a arquitetura psíquica é difícil, mas é possível tangenciar algumas possibilidades como as que Freud nos sinalizou e a qual nos detemos aqui. Falar de reprimido é falar como diz Freud de um “território estrangeiro interno”, pois é adentrar o desconhecido inconsciente. O sujeito pode tomar o outro como objeto e pode ser objeto de si próprio e fazer-se objeto de outro. É a dialética dessa relação que determina a divisão do ego como Freud dirá: “como um cristal”.

É por isso que a questão da loucura ou do desequilíbrio psíquico, sempre causou certo “medo” desde a antiguidade, pois sempre foi sua forma de funcionamento o afastamento da realidade externa e o mergulho na realidade interna, que é inacessível. Conhecer a história do sujeito pertence à realidade externa, como ele a elabora e a expressa possui componentes de sua realidade interna, que nem sempre se externalizou. É nesse sentido que a colocação de Freud: “Como seria se essas pessoas insanas estivessem certas, se em cada um de nós estivesse presente no ego uma instância como essa que observa e ameaça punir, e que nos doentes mentais se tornou nitidamente separada de seu ego e erroneamente deslocada para a realidade externa?”  (p. 65) O que nos vigia, julga, pune e faz com que sintamos remorso não é outra coisa senão a nossa consciência, uma instancia interna, mas, como diz Freud independente do ego e que ele descreve como “superego”, ou seja, possui certa autonomia e independência. A severidade da consciência ou “superego” irá depender da estrutura psíquica do sujeito e de qual destino dá aos seus conflitos. Assim o superego pode tornar-se severo, maltratando e humilhando o ego exaurindo suas próprias energias, “permitindo” então ao ego exaltar-se e liberar suas “manias” de prazer. Mas é possível também que o superego em muitos momentos esteja fundido ao ego. Se não há sintomatologia de conflito e sofrimento patológico torna-se uma convivência pacífica. Na formação do superego está implicada a cultura, os cuidadores, os pais possibilitando os limites e leis referentes ao real que poderá desencadear uma “ansiedade realística”, “precursora da ansiedade moral”. 

A Identificação de um ego ao de outra pessoa é o que chamamos semelhanças. Sendo uma forma importante de formação de vínculos, principalmente na idade infantil, mas é algo que percorre toda nossa existência, e é diferente de escolha objetal, ou seja, os objetos que escolhemos não somente para manter nosso “gozo” como diria Lacan, e assim nossa estrutura. É possível também que a identificação se dê por uma regressão, restabelecendo o objeto perdido de uma outra forma. Assim o superego diz respeito à identificação parental, mas é possível que essa identificação vá no sentido contrário e então teremos um enigma, que talvez possa ser explicado pelo destino que o sujeito dá a provação edipiana. Se a passagem edipiana não for superada com o êxito desejado a força do superego regride. Quando se fala de Édipo, não podemos tomar ao pé da letra a mitologia grega, assim não só pais, mas professores, cuidadores, pessoas escolhidas como modelos fazem parte desse arcabouço de desejos, sublimados, “superados” ou não. A ressignificação das imagens primitivas desse ideal do ego, dos pais vai sendo reelaboradas ao longo da vida, o que é importante para a formação do caráter. É aqui que Freud explicita: “a prolongada dependência da criança em relação a seus pais e o complexo de Édipo, ambos intimamente inter-relacionados. O superego é para nós o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço tendente à perfeição — é, em resumo, tudo o que pudemos captar psicologicamente daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da vida do homem” (p.72). O superego dos pais influenciam seus filhos, mas o destino que cada sujeito dá a essa influencia pertence à subjetividade de cada um, algo que fluirá de geração a geração.

Vivemos em coletividade, e nesta uma infinidade de egos se encontram continuamente, assim os grupos ou indivíduos que se afinam entre si “introduzem a mesma pessoa em seu superego” (p.72), ou seja, os indivíduos por afinarem-se entre si possuem semelhanças evolutivas. Freud ao desenvolver a psicologia do ego, ego que força repressão, considera que foi o primeiro passo e que do lado oposto do ego está a resistência de deixar fluir em uma tendência ascendente, irrompendo na consciência os conteúdos do inconsciente. Geralmente grande parte dos conteúdos psíquicos que diariamente veem à tona seja do ego ou do superego são inconscientes, desconhecidos. Há um vasto oceano ou universo a ser descoberto, mas a relação consciente – inconsciente é dinâmica e o que em um instante é consciente pode tornar-se inconsciente e vice-versa.

Nem tudo pode ser transformado em consciente. Quando algo é transformado em consciente, existirá sempre aquilo que mesmo com todos os esforços despendidos não se revelará ao consciente, (Falamos sobre isso no artigo Lembranças e Paranoia) assim se estabelece não de forma descritiva, mas dinâmica o sistema consciente, o sistema pré-consciente e o sistema inconsciente, sistemas esse ao qual Freud dá o nome de “sistema Inc.”, e pode entrar em conflito com o ego, porque existe parte do ego que é consciente e parte que é inconsciente. Esse inconsciente é também chamado de id (um pronome impessoal). Assim a arquitetura da mente fica “definida” até então como superego (consciência), está mais distante do sistema perceptual do que do ego (o eu, personalidade) e o id (inconsciente), que se relaciona com o mundo externo através do ego. Compreendemos que o id é obscuro, inacessível, o pouco que dele é revelado é através dos sonhos, dos sintomas e das influencias do corpo. Repleto de energia dos instintos, mas sem organização. É uma terra sem lei em todos os sentidos, pois coisas aparentemente contraditórias somam-se. Faço uma citação grande pela importância da mesma, ainda muito a ser pesquisada: Freud dirá: “Impulsos contrários existem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito, podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica dominante, com vistas à descarga da energia... No id não há nada que se possa comparar à negativaNo id, não existe nada que corresponda à ideia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo... nenhuma alteração em seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo...Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e ser destituídos de sua energia, quando tornados conscientes pelo trabalho da análise”. p.78  (Grifos nossos).

No id a energia desses impulsos é móvel, deslocam-se, condensam-se. No ego e superego apesar de haver conteúdos inconscientes são menos primitivos, pois o sistema Pcpt-Cs está voltado para o mundo externo, atento a todas as percepções, mesmo sem uma ideia precisa de tempo, mas também as excitações que vem do interior, para que se tornem conscientes. É possível que em nosso processo de evolução desde que foi possível a vida no planeta terra a parte de nossa mente que ficou em contato com o mundo externo, o ego passou por modificações maiores sob a ótica da razão e a parte obscura, que não pode vir a tona ficou instintiva e o sistema Pcpt-Cs servindo de recepção de estímulos e de “escudo protetor” em relação aos mesmos estímulos e o id permanece, mesmo com bilhões de anos inacessível, devemos supor que esses dois mundos estão integrados e se representam mutuamente. Se esse mundo obscuro possui poder, pelos seus instintos, o real é um “imperativo categórico” do qual o id não tem como escapar: “o que é uma sorte para o id, que não poderia escapar à destruição se..., não atentasse para esse poder externo supremo... o ego deve observar o mundo externo, deve estabelecer um quadro preciso do mesmo nos traços de memória de suas percepções, e, pelo seu exercício da função de “teste de realidade”, deve excluir tudo que é um acréscimo decorrente de fontes internas de excitação. O ego controla os acessos mas, entre uma necessidade e uma ação, interpõe uma protelação sob forma de atividade do pensamento, durante a qual se utiliza dos resíduos mnêmicos da experiência” (p.80). Enquanto no Id, por ser a sede de “paixões indomadas” não há síntese, combinação e unificação dos conteúdos, no ego existe. Pois o ego evolui da “percepção dos instintos” e significa a razão e bom senso, então quando alguém diz que “não está usando de razão e bom senso”, está sob o comando instintual do Id. Através do uso da razão, a qual Kant irá compreender como a capacidade de julgar, mas temos que lembrar que o ego é uma parte do Id e toma dele também sua energia. 

O Id provê energia, mas é o ego que dá a direção de acordo com seus objetivos, mas muitas vezes o ego é conduzido pelo Id, que dá livre curso as suas demandas. Esse papel de mediador do ego entre o Id e a realidade, possui um custo alto. Muitas vezes o ego tem de “encobrir as ordens do Id” através da razão, racionalizando, e assim com habilidade “oculta os conflitos do Id com a realidade”, mesmo diante de sua intolerância. Ao mesmo tempo é vigiado pelo severo superego, que não leva em conta nenhuma de suas dificuldades e se necessário pune-o. São os sentimentos de culpa, remorsos. Manter em harmonia essas forças e a influencia que recebe, não é tarefa fácil para o ego. “Não existe saída para o ego” se admite sua fraqueza, fica ansioso — “ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id”. (p.82) Como diz Freud o ego serve a três tirânicos senhores, tenta está em harmonia com os três e lembra o provérbio de que não é possível servir a dois senhores, quanto mais a três. Essas “divisões” diferem em cada sujeito, possuindo variações, avanços e retrocessos não só de ordem psíquica, social, mas também filogenética, no que diz respeito às três áreas, não só na doença mental, quando as três áreas vivem um intercambio sem delimitações, mas como diz Freud em mais uma longa citação necessária ao nosso ver:“Também é fácil imaginar que determinadas práticas místicas possam conseguir perturbar as relações normais entre as diferentes regiões da mente, de modo que, por exemplo, a percepção pode ser capaz de captar acontecimentos, nas profundezas do ego e no id, os quais de outro modo lhe seriam inacessíveis. Pode-se, porém, com segurança, duvidar se a esse caminho nos levará às últimas verdades das quais é de se esperar a salvação. Não obstante, pode-se admitir que os intentos terapêuticos da psicanálise têm escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego” (p.84) - A figura abaixo (Quando Freud sugeriu esse diagrama, fez considerações de que o inconsciente deveria ser representado de forma maior e deveria ser pintado de forma que as cores se intercalassem na “divisão” de fronteiras). Ilustra esses embates e nos faz pensar no quanto devemos ser acolhedores com nosso próprio ego e com o ego do outro, ou seja, o exercício do acolhimento, tolerância, do não julgamento deve fazer parte de nossas vidas, num mundo tão conturbado como o que vivemos. Os processos psíquicos são intangíveis, por isso muitas vezes vamos falhar e fazer um sintoma, principalmente ante as vicissitudes da vida, que não são poucas. Satisfazer simultaneamente tantos senhores internos e muitos externos que em muitos momentos vão se confundirem e se representarem não é tarefa fácil é quase como “um violinista no telhado”, que por sinal é um filme belíssimo.
Referencia
FREUD, S.  -  CONFERÊNCIA XXXI – (1933[1932]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.  

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