Quando
falamos do humano estamos sempre nos referindo a “personalidade psíquica” e
desta, seus sintomas, que são derivados do que se reprime sendo os sintomas os
representantes no ego do reprimido. Sintomas estes que são conflitos entre
instintos, estímulos do ego, do sujeito e a resistência que se interpõe.
Compreender a arquitetura psíquica é difícil, mas é possível tangenciar algumas
possibilidades como as que Freud nos sinalizou e a qual nos detemos aqui. Falar
de reprimido é falar como diz Freud de um “território estrangeiro interno”, pois
é adentrar o desconhecido inconsciente. O sujeito pode tomar o
outro como objeto e pode ser objeto de si próprio e fazer-se objeto de outro. É
a dialética dessa relação que determina a divisão do ego como Freud dirá: “como
um cristal”.
É por isso
que a questão da loucura ou do desequilíbrio psíquico, sempre causou certo
“medo” desde a antiguidade, pois sempre foi sua forma de funcionamento o
afastamento da realidade externa e o mergulho na realidade interna, que é
inacessível. Conhecer a história do sujeito pertence à realidade externa, como
ele a elabora e a expressa possui componentes de sua realidade interna, que nem
sempre se externalizou. É nesse sentido que a colocação de Freud: “Como
seria se essas pessoas insanas estivessem certas, se em cada um de nós
estivesse presente no ego uma instância como essa que observa e ameaça punir, e
que nos doentes mentais se tornou nitidamente separada de seu ego e
erroneamente deslocada para a realidade externa?” (p. 65) O que nos vigia, julga, pune e faz
com que sintamos remorso não é outra coisa senão a nossa consciência, uma
instancia interna, mas, como diz Freud independente do ego e que ele descreve
como “superego”, ou seja, possui certa autonomia e independência. A severidade
da consciência ou “superego” irá depender da estrutura psíquica do sujeito e de
qual destino dá aos seus conflitos. Assim o superego pode tornar-se severo,
maltratando e humilhando o ego exaurindo suas próprias energias, “permitindo”
então ao ego exaltar-se e liberar suas “manias” de prazer. Mas é possível
também que o superego em muitos momentos esteja fundido ao ego. Se não há
sintomatologia de conflito e sofrimento patológico torna-se uma convivência
pacífica. Na formação do superego está implicada a cultura, os cuidadores, os
pais possibilitando os limites e leis referentes ao real que poderá desencadear
uma “ansiedade realística”, “precursora da ansiedade moral”.
A
Identificação de um ego ao de outra pessoa é o que chamamos semelhanças. Sendo
uma forma importante de formação de vínculos, principalmente na idade infantil,
mas é algo que percorre toda nossa existência, e é diferente de escolha
objetal, ou seja, os objetos que escolhemos não somente para manter nosso
“gozo” como diria Lacan, e assim nossa estrutura. É possível também que a
identificação se dê por uma regressão, restabelecendo o objeto perdido de uma
outra forma. Assim o superego diz respeito à identificação parental, mas é
possível que essa identificação vá no sentido contrário e então teremos um
enigma, que talvez possa ser explicado pelo destino que o sujeito dá a provação
edipiana. Se a passagem edipiana não for superada com o êxito desejado a força do
superego regride. Quando se fala de Édipo, não podemos tomar ao pé da letra a
mitologia grega, assim não só pais, mas professores, cuidadores, pessoas
escolhidas como modelos fazem parte desse arcabouço de desejos, sublimados,
“superados” ou não. A ressignificação das imagens primitivas desse ideal do
ego, dos pais vai sendo reelaboradas ao longo da vida, o que é importante para
a formação do caráter. É aqui que Freud explicita: “a prolongada dependência da
criança em relação a seus pais e o complexo de Édipo, ambos intimamente
inter-relacionados. O superego é para nós o representante de todas as
restrições morais, o advogado de um esforço tendente à perfeição — é, em
resumo, tudo o que pudemos captar psicologicamente daquilo que é catalogado
como o aspecto mais elevado da vida do homem” (p.72). O superego dos pais influenciam
seus filhos, mas o destino que cada sujeito dá a essa influencia pertence à
subjetividade de cada um, algo que fluirá de geração a geração.
Vivemos em
coletividade, e nesta uma infinidade de egos se encontram continuamente, assim
os grupos ou indivíduos que se afinam entre si “introduzem a mesma pessoa em seu
superego” (p.72), ou seja, os
indivíduos por afinarem-se entre si possuem semelhanças evolutivas. Freud ao
desenvolver a psicologia do ego, ego que força repressão, considera que foi o
primeiro passo e que do lado oposto do ego está a resistência de deixar fluir
em uma tendência ascendente, irrompendo na consciência os conteúdos do
inconsciente. Geralmente grande parte dos conteúdos psíquicos que diariamente
veem à tona seja do ego ou do superego são inconscientes, desconhecidos. Há um
vasto oceano ou universo a ser descoberto, mas a relação consciente –
inconsciente é dinâmica e o que em um instante é consciente pode tornar-se inconsciente
e vice-versa.
Nem tudo
pode ser transformado em consciente. Quando algo é transformado em consciente,
existirá sempre aquilo que mesmo com todos os esforços despendidos não se
revelará ao consciente, (Falamos sobre isso no artigo Lembranças e Paranoia)
assim se estabelece não de forma descritiva, mas dinâmica o sistema consciente,
o sistema pré-consciente e o sistema inconsciente, sistemas esse ao qual Freud
dá o nome de “sistema Inc.”, e pode entrar em conflito com o ego, porque existe
parte do ego que é consciente e parte que é inconsciente. Esse inconsciente é
também chamado de id (um pronome impessoal). Assim a arquitetura da mente fica
“definida” até então como superego (consciência), está mais distante do sistema
perceptual do que do ego (o eu, personalidade) e o id (inconsciente), que se
relaciona com o mundo externo através do ego. Compreendemos que o id é obscuro,
inacessível, o pouco que dele é revelado é através dos sonhos, dos sintomas e
das influencias do corpo. Repleto de energia dos instintos, mas sem
organização. É uma terra sem lei em todos os sentidos, pois coisas
aparentemente contraditórias somam-se. Faço uma citação grande pela importância
da mesma, ainda muito a ser pesquisada: Freud dirá: “Impulsos contrários existem lado a
lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito,
podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica dominante,
com vistas à descarga da energia... No id não há nada que se possa
comparar à negativa. No id, não existe nada que corresponda à ideia
de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo... nenhuma
alteração em seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo...Impulsos
plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram
mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais;
depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco.
Só podem ser reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua
importância e ser destituídos de sua energia, quando tornados conscientes pelo
trabalho da análise”. p.78 (Grifos nossos).
No id a
energia desses impulsos é móvel, deslocam-se, condensam-se. No ego e superego
apesar de haver conteúdos inconscientes são menos primitivos, pois o sistema
Pcpt-Cs está voltado para o mundo externo, atento a todas as percepções, mesmo
sem uma ideia precisa de tempo, mas também as excitações que vem do interior,
para que se tornem conscientes. É possível que em nosso processo de evolução
desde que foi possível a vida no planeta terra a parte de nossa mente que ficou
em contato com o mundo externo, o ego passou por modificações maiores sob a
ótica da razão e a parte obscura, que não pode vir a tona ficou instintiva e o
sistema Pcpt-Cs servindo de recepção de estímulos e de “escudo protetor” em
relação aos mesmos estímulos e o id permanece, mesmo com bilhões de anos
inacessível, devemos supor que esses dois mundos estão integrados e se
representam mutuamente. Se esse mundo obscuro possui poder, pelos seus instintos,
o real é um “imperativo categórico” do qual o id não tem como escapar: “o que é uma sorte para o id, que
não poderia escapar à destruição se..., não atentasse para esse poder externo
supremo... o ego deve observar o mundo externo, deve estabelecer um quadro
preciso do mesmo nos traços de memória de suas percepções, e, pelo seu
exercício da função de “teste de realidade”, deve excluir tudo que é um
acréscimo decorrente de fontes internas de excitação. O ego controla os acessos
mas, entre uma necessidade e uma ação, interpõe uma protelação sob forma de
atividade do pensamento, durante a qual se utiliza dos resíduos mnêmicos da
experiência” (p.80). Enquanto no Id, por ser a sede de “paixões indomadas”
não há síntese, combinação e unificação dos conteúdos, no ego existe. Pois o
ego evolui da “percepção dos instintos” e significa a razão e bom senso, então
quando alguém diz que “não está usando de razão e bom senso”, está sob o
comando instintual do Id. Através do uso da razão, a qual Kant irá compreender
como a capacidade de julgar, mas temos que lembrar que o ego é uma parte do Id
e toma dele também sua energia.
O Id provê
energia, mas é o ego que dá a direção de acordo com seus objetivos, mas muitas
vezes o ego é conduzido pelo Id, que dá livre curso as suas demandas. Esse
papel de mediador do ego entre o Id e a realidade, possui um custo alto. Muitas
vezes o ego tem de “encobrir as ordens do Id” através da razão, racionalizando,
e assim com habilidade “oculta os conflitos do Id com a realidade”, mesmo diante
de sua intolerância. Ao mesmo tempo é vigiado pelo severo superego, que não
leva em conta nenhuma de suas dificuldades e se necessário pune-o. São os
sentimentos de culpa, remorsos. Manter em harmonia essas forças e a influencia
que recebe, não é tarefa fácil para o ego. “Não existe saída para o ego” se
admite sua fraqueza, fica ansioso — “ansiedade realística referente ao
mundo externo, ansiedade moral referente ao superego e ansiedade neurótica
referente à força das paixões do id”. (p.82) Como diz Freud o ego
serve a três tirânicos senhores, tenta está em harmonia com os três e lembra o
provérbio de que não é possível servir a dois senhores, quanto mais a três.
Essas “divisões” diferem em cada sujeito, possuindo variações, avanços e
retrocessos não só de ordem psíquica, social, mas também filogenética, no que
diz respeito às três áreas, não só na doença mental, quando as três áreas vivem
um intercambio sem delimitações, mas como diz Freud em mais uma longa citação
necessária ao nosso ver:“Também
é fácil imaginar que determinadas práticas místicas possam conseguir perturbar
as relações normais entre as diferentes regiões da mente, de modo que, por
exemplo, a percepção pode ser capaz de captar acontecimentos, nas profundezas
do ego e no id, os quais de outro modo lhe seriam inacessíveis. Pode-se, porém,
com segurança, duvidar se a esse caminho nos levará às últimas verdades das
quais é de se esperar a salvação. Não obstante, pode-se admitir que os intentos
terapêuticos da psicanálise têm escolhido uma linha de abordagem
semelhante. Seu propósito é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais
independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua
organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id. Onde
estava o id, ali estará o ego” (p.84) - A
figura abaixo (Quando Freud sugeriu esse diagrama, fez considerações de que o
inconsciente deveria ser representado de forma maior e deveria ser pintado de
forma que as cores se intercalassem na “divisão” de fronteiras). Ilustra esses
embates e nos faz pensar no quanto devemos ser acolhedores com nosso próprio
ego e com o ego do outro, ou seja, o exercício do acolhimento, tolerância, do
não julgamento deve fazer parte de nossas vidas, num mundo tão conturbado como
o que vivemos. Os processos psíquicos são intangíveis, por isso muitas vezes
vamos falhar e fazer um sintoma, principalmente ante as vicissitudes da vida,
que não são poucas. Satisfazer simultaneamente tantos senhores internos e
muitos externos que em muitos momentos vão se confundirem e se representarem
não é tarefa fácil é quase como “um violinista no telhado”, que por sinal é um
filme belíssimo.
Referencia
FREUD, S.
- CONFERÊNCIA XXXI – (1933[1932]). Obras Completas de
Psicanálise - volume XXII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
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