14 de abril de 2013

A “Ilusão” necessária ao real e o real como algo “intangível”

No mundo midiático em que vivemos, falar sobre ilusão, ciência e o que é real é tarefa complexa e difícil. Ao nos propormos a leitura do texto “O futuro de uma Ilusão” deparamo-nos com as grandes ilusões do mundo em que vivemos, não só no que diz respeito às suas instituições, como as ilusões que cada sujeito constrói, para suportar a realidade. Muitas falas o próprio sujeito inconscientemente sabe que não se realizará, mas ele precisa delas como suporte da realidade. Freud foi cauteloso ao escrever o texto e esclareceu: “Tome minha tentativa pelo que ela é. Um psicólogo que não se ilude sobre a dificuldade de descobrir a própria orientação neste mundo, efetua um esforço para avaliar o desenvolvimento do homem, à luz da pequena porção de conhecimento que obteve através de um estudo dos processos mentais de indivíduos, durante seu desenvolvimento de crianças a adultos” (p. 60 – 61). É importante pontuarmos que entendemos por civilização humana tudo aquilo que se elevou a condição animal, ou seja, por certo, ainda existe nesta civilização, circunstancias que estão no humano, mas pertencem ao animal.

Muitos se interrogam neste momento não só quanto ao destino da humanidade, dos fazeres profissionais, das religiões, das economias. Alguns falam de uma nova época da civilização, ou seja, como diz Freud “qual o destino que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar”. (p.15) Mas isso só é possível quando se conhece o passado e o presente, apropriando-se dos conteúdos de forma a compreender suas determinações, o que só é possível pelo distanciamento crítico.

Civilização humana é tudo aquilo que se eleva a condição animal. O conhecimento adquirido pelo homem implicou em certo “controle das forças da natureza” e assim extrair a riqueza que ela fornece para suas necessidades, que através de relações humanas equitativas e distribuição da riqueza disponível da vida na terra. As relações são influenciadas pela satisfação instintual que a riqueza torna possível; em outro sentido o homem pode, ele próprio, funcionar como riqueza em relação a outro homem da mesma forma “as criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação” (p.16). Será que é possível distanciarmo-nos e avaliar o grau de evolução da civilização do humano ou se pouco avançou e esse avanço fica mascarado pelas descobertas tecnológicas? As tendências destrutivas, antissociais, são muito fortes e determinam o comportamento dos indivíduos em sociedade. Necessário é diminuir o custo das demandas instintuais reconciliando-os, direcionando-os, encontrando no autoconhecimento a possibilidade de renuncias a domínios próprios dos desejos instintuais. Assim a educação pela supremacia da razão e sublimação dos instintos agressivos e violentos podem levar os homens à construção de uma nova civilização.

As privações e as proibições ou vicissitudes que afetam a todos os indivíduos são as mais antigas da história da humanidade, há milhares de anos. Dos desejos instintuais que vão do canibalismo ao incesto e desejo de matar, apenas o canibalismo parece ser condenado. Os desejos incestuosos são a todo o momento fatos nos noticiários, principalmente envolvendo crianças e adolescentes. O matar é algo ordenado por nossa sociedade através de seus diversos conflitos. É possível que desejos antes censurados pela sociedade sejam com o passar do tempo liberado por interesses econômicos e políticos como outros liberados sejam proibidos pelos mesmos interesses. Em todos eles veremos discursos de defesa do moderno, para o mundo do consumo. Se interrogarmos que grupos são potencialmente consumidores e cujos conceitos devem ser modificados ai residirá a “mudança”. No mundo atual pouco se discute de renúncias instintuais. Mas como discutir essa questão tão importante no sentido do humano em um mundo de consumo. Toda renúncia instintual passa pelo fator psicológico. Que a mente humana tenha passado por desenvolvimentos desde os tempos primitivos pela imersão na cultura e suas leis e proibições de construção do superego é um fato. E como diz Freud: “é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente, foi sempre assim através de muitas épocas da civilização” (p.21). O conjunto das pessoas que vivem em sociedade possui um ideal, que tem algo de narcísico e orgulho. E são essas formas de existir que fazem com que “a partir da intensidade dessas diferenças que toda cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto” (p.22 – 23). A arte em suas mais variadas expressões é via de regra uma satisfação substitutiva para antigas renúncias e uma forma de reconciliar os homens, bem como as ideias religiosas a que Freud irá interrogar em que reside o seu valor.

A civilização enquanto normas e leis morais, “parece” alheia às leis da natureza, que em seus diversos elementos sucumbe a todo controle humano pelos terremotos, enchentes, tsunamis, vulcões, tempestades, as doenças que desafiam o homem e para a ciência o “enigma da morte”. O certo é que diante das catástrofes os homens esquecem suas discordâncias, ressentimentos, indiferenças e as interações fraternas revelam que a vida para todos é difícil de suportar, que diante do destino a autoestima do homem exige consolação. Fala-se muito da humanização da natureza, mas com essa humanização, com o domínio das ferramentas, o homem também a tem destruído de forma voraz. “De forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos” (p.25). Não há segurança possível. Ela é uma ilusão. O desamparo de cada um permanece e cada um dá a ele o significado e significantes que acomodam  ou aliviam a ansiedade, o medo e a angústia do existir. Na antiguidade os deuses eram os senhores da natureza, mas com referência aos destinos “persistia a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser remediados” (p.27). O homem sempre personificou as forças da natureza, como forma de compreendê-las, mas também não compreende as forças da natureza que se personificam. O que ele tenta dominar psiquicamente personificando ele tenta dominar fisicamente tentando materializá-las.

O desamparo a que se vê no mundo desde o nascimento necessita encontrar acolhimento no adulto. É nesse sentido que Freud irá responder a significação psicológica das ideias religiosas: “As ideias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença. Visto nos fornecerem informações sobre o que é mais importante e interessante para nós na vida, elas são particular e altamente prezadas. Quem quer que nada conheça a respeito delas é muito ignorante, e todos que as tenham acrescentado a seu conhecimento podem considerar-se muito mais ricos” (p. 34). O fato de todas as informações sobre religiões, erigidas pelo patrimônio cultural da humanidade desde nossos ancestrais, estar cheios de contradições, coloca questões de inúmeros enigmas sobre o universo, que “solucionados nos reconciliaria com os sofrimentos”. Freud compreende a importância das doutrinas religiosas para a manutenção da sociedade humana e em sua “angustia”, pois o texto O futuro de uma ilusão (1927 - 1931), escrito entre a primeira e a segunda guerra mundial se interroga: “se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma experiência interior que dá testemunho dessa verdade, o que se deve fazer com as muitas pessoas que não dispõem dessa rara experiência?” (p. 37).  Vemos  que somente quando o homem se vê diante de sofrimentos aparentemente intransponíveis, tragédias pessoais, coletivas é que ele se interroga sobre Deus, espiritualidade e busca um sentido para sua vida, e isso não foi diferente com Freud, que remete essa necessidade ao desamparo na infância, que perdura por toda a vida, fruto de desejos humanos e estes ilusórios que são colocam uma contradição, embora afirme que definir como ilusão ou não “dependerá da própria atitude pessoal”. É certo que os enigmas do universo só há bem pouco tempo vem sendo revelados e que nossa civilização se ergue sobre as crenças religiosas e os achados arqueológicos têm sinalizado em relação a suas verdades históricas. E sinalizando isso escreve que o homem... “possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência, sendo muito estranho... que um psicólogo, que sempre insistiu em que a inteligência, quando comparada à vida dos instintos, desempenha apenas um papel de menor vulto nos assuntos humanos, tente agora despojar a humanidade de uma preciosa realização de desejos e proponha compensá-la disso com um alimento intelectual” (p.43). Em seu imenso conhecimento e sabedoria Freud ao tempo que argumenta o papel da psicanálise, “como instrumento imparcial de pesquisa”, analisa as religiões, questionando seus dogmas como ilusões ao mesmo tempo afirma que, “os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas” (p.45)  e assim percorreu este caminho Françoise Dolto em "A fé à luz da psicanálise". Sabemos que existe uma grande maioria de pessoas insatisfeitas com o mundo atual, com a cultura da qual faz parte, mas há que se interrogar e se implicar em seus sintomas, mecanismos de projeção e em suas defesas. Convém um mundo “faltante”, em que a castração pode ser ignorada, (é o sintoma que se agrega ao ego) para que seja preenchido por um ignorar a lei ou pelo rompimento com esta. Lei aqui entendido como aquilo que barra os instintos primitivos. O pai primeiro, o pai primitivo, “primevo” “constituiu a imagem de Deus, o modelo a partir do qual as gerações posteriores deram forma à figura de Deus. Daí a explicação religiosa ser correta” (P.51). A criança que sobrevive no homem é para lembrá-lo de que seu processo de educação não termina nunca como dizia Sócrates. Se a psicanálise resistirá ao teste de confrontar as doutrinas religiosas e resinificar a existência de Deus, entregue a seus próprios recursos, nos próximos 14 anos o texto “O futuro de uma Ilusão” completará 100 anos e então podemos repensá-lo, da mesma forma que a física quântica com Anton Zeiliger, apontado como o primeiro cientista a demonstrar a teleportação quântica recoloca questões hoje impensáveis a nível da ciência há 100 anos atrás. Mas Freud lembra que os conhecimentos científicos da humanidade “ensinou muito, desde os dias do Dilúvio, e aumentará seu poder ainda mais. E quanto às grandes necessidades do Destino, contra as quais não há remédio, aprenderão a suportá-las com resignação”(p.57). O fato de em alguns trechos o texto “O Futuro de uma Ilusão” ser narrado na terceira pessoa, e na página 59 Freud propor uma troca de papéis: “você surge como um entusiasta que permite ser arrebatado por ilusões, e eu represento as reivindicações da razão, os direitos do ceticismo. O que você expôs me parece ser construído sobre erros que, seguindo seu exemplo, eu poderia chamar de ilusões, por traírem de modo bastante claro a influência de seus desejos. Você prende sua esperança à possibilidade de que gerações, que não experimentaram a influência das doutrinas religiosas na primeira infância, alcançarão facilmente a desejada primazia da inteligência sobre a vida dos instintos. Isso é decerto uma ilusão; nesse aspecto decisivo, a natureza humana dificilmente tem probabilidade de mudar... Se você quiser expulsar a religião de nossa civilização... só poderá fazê-lo através de outro sistema de doutrinas, e esse sistema, desde o início, assumiria todas as características psicológicas da religião” (p.59).  É que em milhares de eras para o desenvolvimento da psique e do intelecto possibilitaram profundas interrogações que persistirão por muitos séculos. Muitas vezes assenhorear-se dessa angústia implica em construir rótulos, diagnósticos, que “aliviem” a própria angústia e o sentimento de desamparo.

A questão da sublimação dos instintos é algo a ser aprofundado. Como cada ser humano sublima seus instintos e assim evolui na sua condição de humano é da determinação de cada sujeito. Bem como o que cada um toma para si como ilusão ou real. Os sonhos é um exemplo disso. A ciência ao longo de toda a história da humanidade ainda não conseguiu resolver essa angústia e as pesquisas sejam da neurociência ou da física quântica parecem buscar um apaziguamento entre ciência e religião. O intelecto estará sempre interrogando e ainda bem, pois esse é seu trabalho no sentido de apaziguar o antagonismo como diz Freud entre religião e ciência que “é apenas temporário e não irreconciliável”, independente muitas vezes dos propósitos das religiões, que servem ao homem, se para aprisiona-lo, coloca-lo em estado de servidão ou libertá-lo no sentido de seu autoconhecimento. A psicanálise não possui todas as respostas, tão pouco é seu propósito e nenhuma área da ciência a possui, portanto pode ser que daqui a 100 ou 200 anos o homem olhe seu passado e se interrogue: mas como eles acreditaram nisso? A ortodoxia que não se permite questionar é uma religião no sentido pleno de seus dogmas. É certo que vimos ao longo do tempo substituindo símbolos religiosos por outros como a fotografia, os livros, a casa e até móveis dos mestres. Interrogar-mo-nos sobre o que Freud e Lacan diriam se ao invés de encontrar nas clínicas de saúde, consultórios, como era tão comum em sua época, crucifixos, principalmente porque essas instituições eram dirigidas por religiosos e encontrar hoje suas fotos ou fotos de seus objetos e o divã sendo apenas um ícone de decoração. A pratica constituinte do mundo demonstra como o mundo nos deve aparecer, pelas coisas que nos influenciaram, que incorporamos ou rejeitamos e aqui surge o conflito. Mas não podemos deixar de levar em conta nosso “aparelho psíquico perceptivo” e toda sua estrutura em nossa leitura do mundo que nos cerca. A “ilusão” ou o “real” tão necessário à vida estará sempre como o véu de Maya a ser desvendado, única forma de tornar-se tangível.
Referencia: FREUD, S.  -  O FUTURO DE UMA ILUSÃO – (1927 - 1931). Obras Completas de Psicanálise - volume XXI. Rio de Janeiro, Imago-1996.        

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