27 de julho de 2013

A vida e o Mito

“A psicanálise, é constituída por essa relação intersubjetiva que não pode,  esgotar-se, pois ela é o que nos faz homens. É, no entanto, o que somos levados a procurar exprimir, apesar de tudo, numa formulação que dê a conhecer o seu essencial, e é justamente por isso que existe no seio da experiência analítica algo que é propriamente falando, um mito. O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso  à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la – e isso de forma mítica”. O Mito Individual do Neurótico - Lacan

A escuta analítica é uma escuta intersubjetiva e que nos faz mais humanos. Por ser intersubjetiva é uma via de mão dupla, na sua relação transferencial. A essência de sua relação é mítica, pois a fala é a expressão de sentimentos, fantasias, emoções que são sentidas de forma única por cada sujeito. O mito pertence ao indizível, que é preciso ser formulado em um discurso, em palavras. É no vazio dos pensamentos, difíceis de serem traduzidos em palavras, que se constitui as formas míticas e o mito. 

20 de julho de 2013

O Simbólico dos "Romances Familiares"

 “a natureza da onda que possibilita a ocorrência do recalcamento, transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna”.

Em setembro deste ano acontecerá o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise e o tema é Ser Contemporâneo: Medo e Paixão. Ao tempo que se comemora o centenário do escrito de Freud Totem e Tabu, ocasião em que será prestada homenagem. Nesse sentido compreendemos que se faz necessário uma fala “contemporânea” sobre Totem e Tabu. Mas compreendemos que deve anteceder a essa, um breve escrito sobre “Romances Familiares”, a que tanto Freud aprofundou em Totem e Tabu.

A vida em família é por certo complexa e enigmática. Em Totem e Tabu Freud discorre longamente acerca do tema. Podemos dizer que a vida em família começa, quando um óvulo e um espermatozoide, por uma relação de prazer, se encontram. Portanto o romance entre duas células geram um ser humano. E assim segue ele sua existência a dar conta do romance que o habita. Ao nascer é enamorado e enamora-se de seus pais, irmãos e pessoas mais próximas, como tios e primos. O que determinará as circunstancias, intensidade e demanda do sujeito aos desejos que habitam o núcleo familiar é a estrutura de funcionamento de cada um. Assim há diferenças entre um neurótico histérico, neuróticos obsessivos, psicóticos, perversos. O desenvolvimento infantil e a descoberta da sexualidade é algo marcante na vida de todos, pois possibilitará na adolescência a libertação primordial da autoridade dos pais, na constituição da autonomia.

Em seu desenvolvimento a criança inicialmente busca igualar-se aos pais, em seu processo de identificação, percebe que existem outras referências que podem ser melhores que seus pais. E então começa a rivalidade sexual entre os membros da família: a mãe deseja continuar jovem e atraente como a filha, esta por sua vez deseja ser atraente como a mãe, o pai sinaliza que desejaria que a mãe tivesse a juventude da filha e coloca-se diante do filho como “neste terreiro só há lugar para um galo”. A mãe por sua vez “protege” o filho da “incompreensão” paterna, o irmão não “gosta” dos namorados da irmã e vice-versa. Assim de forma tácita, quase invisível, os romances vão se delineando. A questão é quando os pais, irmãos, tios, primos, no destino que deram às suas leis internas ultrapassam a lei e acessam no real um corpo que não deveria ser violado e para além deste uma alma. Nesse contexto é que começam os afastamentos, necessários, de resinificação, seja pela fantasia ou daquilo que não se consegue elaborar, no real.

Que a vida em grande medida é romanceada, não há dúvida, seja pelas fantasias, pela pulsão de vida, pela energia libidinal. A criança descobre-se em desejo sexual, seja pela masturbação, ou pela energia hormonal que é detentora. Se a criança conhece os processos sexuais, ela se imagina em relações eróticas, como seus pais um dia se imaginaram e se imaginam com os objetos e circunstancias diversa, na qual, familiares podem ser alvos. É nesse contexto que as disputas, intrigas, podem ser potencialmente uma forma de escoar desejos reprimidos, são assim significantes. A antiga disputa pais e filhos, entre irmãos pelo afeto do pai ou da mãe ou de ambos, ou pelos afetos de determinado irmão ou irmã estão no escopo do desejo, onde sempre é possível perceber em uma fala algo de incestuoso, seja pela narrativa dos afetos ou das ações. Estar no mundo é participar de suas relações sociais, onde há sempre o que desvendar enquanto significante. O beijo na boca entre pais e filhos, ou a participação destes na intimidade dos pais, quando de seus hábitos de higiene ou das suas carícias, ou a participação dos pais na intimidade dos filhos, a vestimenta intima no lar são aspectos que podem revelar os desejos circulantes. O discurso sobre a fantasia é o discurso de como a criança elabora sua realidade, a maneira como a realidade que a cerca e seus desejos se apresentam. Além dos familiares consanguíneos, os indivíduos que compõe o ambiente doméstico como as babás, empregadas, são inseridas nesse contexto de desejo. Quando a criança vai à escola ela transfere para os professores demandas de sua libido e vice-versa. Mas é inexorável a força do destino no que diz respeito às figuras parentais, enquanto representantes da pulsão. Que a razão levanta profundas objeções aos dramas do destino é seu imperativo, mas os sentimentos relatados por Freud: “a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual” (Carta 71).  Lembra-nos que a fonte do recalcamento está na cultura. É a moralidade, a vergonha, no desenvolvimento bio-psíquico que desencadeará, pelo abandono das zonas sexuais precedentes, e desenvolvimento de substitutos, no qual neste, está as sensações repulsivas pelo olfato. Um sinal de que no humano isso faz parte de seu processo de evolução é que nos animais essas “zonas sexuais continuam em vigor”.

A liberação da sexualidade dar-se não só pelos estímulos orgânicos, mas a partir de lembranças, traços de memória inconscientes, em uma ação posterior. Mas se a lembrança refere-se a um traço desagradável, o mecanismo pré-consciente afasta a lembrança, pelo recalcamento, pois, nossas lembranças atuam porque já atuaram como experiências. Assim como diz Freud: “Se os genitais de uma criança foram excitados por alguém, a lembrança disso, anos depois, produzirá, por efeito retardado, uma liberação de sexualidade muito mais intensa do que na época da excitação, porque o aparelho efetor e a quantidade de secreção terão aumentado nesse meio tempo. Assim, uma ação não-neurótica postergada pode ocorrer normalmente, e esta gera a compulsão. A ação retardada dessa espécie ocorre também em conexão com as lembranças de excitações das zonas sexuais abandonadas. O resultado, porém, é uma liberação não de libido, mas de desprazer, uma situação interna análoga à repugnância no caso de um objeto” (Carta 75, p. 320). O recalcamento leva a inúmeros processos, como a angústia, por exemplo, a qual falamos em http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/07/angustia.html Por certo que o desenvolvimento da vergonha e da moral difere dentro dos grupos familiares, mas tende a ser acentuada na adolescência. Na infância a zona genital mostra-se sensível. Quando uma experiência vivida na infância retorna, seja como lembrança ou como sintoma: libido deslocada, repugnância ou regressão temos que pensar sobre o que não foi simbolizado. Frente ao destino de nascer e a provação das primeiras vivências, principalmente nos cinco primeiros anos é possível que a “escolha” da defesa, qual seja a neurose histérica ou obsessiva, a esquizofrenia, a psicose maníaco depressiva a paranoia ou a perversão “dependa da natureza da onda de desenvolvimento, que possibilita a ocorrência do recalcamento, isto é, que transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna” (Carta - 75 p.321 ) e desvela o destino do sujeito. Em um contexto de tantos desejos em suas estruturas de defesa é certamente obscuro essa transformação do prazer em repugnância, tão necessária à uma estrutura de defesa mais saudável. Mas as ligações do inconsciente, por certo são muito mais amplas, do que pode nossa vã suposição imaginar, ou pensar. Nossa intuição não possui, ainda, esse alcance.

Seja qual for a estrutura de defesa há que escoar a libido de tantos “romances familiares”. O recalcamento o irromper, seja pela ação do sintoma na histeria, pela memória verbal, onde uma única palavra possui inúmeros significados, sendo, portanto ambígua, o que compele a compulsão; ou nas psicoses pelos, delírios e na perversão pelo ignorar a lei, quando nos referenciamos ao sintoma nos “romances familiares” há que anotarmos que “uma criança que urinou regularmente na cama até os sete anos de idade deve ter tido experiências sexuais no início da infância. Espontâneas, ou por sedução?” (Carta 97). Remontar a história, seus significados e significantes por certo não é tarefa desse momento histórico da civilização, mas há que avançarmos na nossa concepção de homem e de sujeito, objeto de si mesmo e do outro e da complexidade dos significantes envolvidos no predicado. Assim Freud interroga: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá” (Carta 101). Longo é o caminho a trilhar na compreensão, interpretação e compaixão das relações humanas, em seus desejos, provações, leis, sublimações para se possível tornar menor, o tempo de evolução do psiquismo, daquilo que compõe a essência do humano.

Referências
FREUD, S.   ROMANCES FAMILIARES (1909[1908]). Obras Completas de Psicanálise - volume IX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 71 (1897). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 75 (1897). Obras Completas de Psicanálise – volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 79 (1897). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 97 (1898). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 101 (1899). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

16 de julho de 2013

O conhecimento - Kant e Freud

 “O destino não foi até hoje tão favorável que permitisse trilhar o caminho seguro da ciência a metafísica, conhecimento especulativo da razão completamente à parte e que se eleva inteiramente acima das lições da experiência, mediante simples conceitos, devendo, portanto, a razão ser discípula de si própria; é porém, a mais antiga de todas as ciências e subsistiria mesmo que as restantes fossem totalmente subvertidas pela voragem de uma barbárie, que tudo aniquilasse. Na verdade a razão sente-se constantemente embaraçada, mesmo quando quer conhecer a priori as leis que a mais comum experiência confirma. É preciso arrepiar caminho inúmeras vezes, ao descobrir-se que a via não conduz aonde se deseja; e no que respeita ao acordo de seus adeptos, relativamente às suas afirmações, encontra-se a metafísica ainda tão longe de o alcançar, que mais parece um terreiro de luta, propriamente destinado a exercitar forças e onde nenhum lutador pode jamais assenhorear-se de qualquer posição, por mais insignificante, nem fundar sobre as suas vitórias conquistas duradoura. Não há dúvida, que até hoje o seu método tem sido mero tacteio e, o que é pior, um tacteio apenas entre simples conceitos”. (Kant, Crp. 19)

Esse pequeno recorte nos faz refletir sobre a profundidade de nosso conhecimento sobre nós mesmos e nos alerta não só que a “razão é discípula de si própria”, ou seja, o sujeito “pode deter”, em determinadas circunstancias, o conhecimento sobre si. Mas Kant levanta a possibilidade dos caminhos percorridos ainda estarem distantes, embaraçados, daquilo ao qual se propõe a razão e na medida em que se contrapõe à metafísica se coloca em “um terreiro de luta”, onde no máximo há um exercício de forças e qualquer vitória de uma sobre a outra é temporária, correndo o risco desse conhecimento ser apenas conceitual. Que o conhecimento a priori realiza-se de duas maneiras: determinado pelo objeto e de seu conceito, ou pela realização do mesmo, não há dúvida, pois a Razão Pura é a priori, mas não é desprovida de idealidade. Para conhecer uma coisa a priori deve atribuir-lhe as consequências de seu conceito. Interrogações que se assemelham, pela angústia, daí decorrente fez Freud em “Projeto para uma Psicologia Científica (1950 [1895]): Sinto-me literalmente devorado por ela, a ponto de ficar exausto e me ver obrigado a interromper. Nunca passei por uma preocupação tão grande assim. E dará algum resultado? Espero que sim, mas é um trabalho difícil e lento.” No caminho do conhecimento há se que enfrentar batalhas internas e externas, quando se fala do humano e quando a ciência contrapõe a Razão, a Metafísica e o Materialismo.

10 de julho de 2013

"Quem ama faz do mundo" sua alma


O prestígio e a humilhação geram susto
A nobreza e a grande preocupação situam-se no corpo
O que são prestígio e humilhação?
Prestígio é inferior
Ao obtê-lo ficamos assustados
Ao perdê-lo ficamos assustados
Isto é o que quer dizer “o prestígio e a humilhação geram susto”
O que quer dizer “a nobreza e a grande preocupação situam-se no corpo”?
A razão de eu ter esta “grande preocupação” é ter um corpo
Se não tivesse um corpo
Com que teria que me preocupar?
Por isso
Nobre é aquele que entrega o corpo ao mundo
A este o mundo pode se entregar
Quem ama faz do mundo o seu corpo
Neste o mundo pode confiar
TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng

9 de julho de 2013

Angústia

“Em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida”.

No tempo presente essa palavra, angústia (Angst) é tão repetida e sentida, que não é um tema fácil de falar tão pouco de refletir ou discorrer sobre ele. A angústia é um afeto, uma descarga da pulsão, que traz em si um elemento antecipatório “algo pode acontecer ou se repetir”. O objeto que estava presente e que parecia ter desaparecido, reaparece, mesmo que seja com outros significantes. Temos também vinculado ao termo angústia, o medo, pavor, susto, sobressalto, ou seja, a sentimentos asfixiantes que imobiliza o sujeito ou o faz reagir, como se estivesse em uma situação de perigo real, e muitas vezes o estar. Como afeto não é recalcado. Podemos encontra-lo deslocado, enlouquecido, invertido. O que é recalcado são os significantes que o amarram.

Falar de angústia é remeter às estruturas psíquicas de defesa e assim há que iniciarmos falando de hereditariedade como “determinantes” das estruturas psíquicas. Não remetemos aqui aos aspectos biológicos, evidentes, mas aos aspectos psíquicos que compõe as passagens transgeracionais. Quando um membro da família faz um sintoma de defesa é possível que só ele o faça, mas há grandes possibilidades de outros fazerem não os mesmos sintomas, mas semelhantes. Falar de hereditariedade nos processos neuróticos, psicóticos, perversos, é falar de como cada membro da família elabora a lei, o nome-do-pai. Portanto é possível que em uma mesma família possa ser encontrado diversas estruturas, mas é da cultura, da essência do humano, as afinidades. Assim a hereditariedade é determinada por circunstancias e subjetividades muitas vezes difíceis de serem apreendidas, mesmo na presença de situações traumáticas. Existem famílias mais vulneráveis do ponto de vista hereditário. “A existência de distúrbios nervosos adquiridos é tão viável quanto a de distúrbios hereditários”. Por certo que não é tarefa fácil realizar diagnóstico retrospectivo, muito menos diferencial, das “doenças ancestrais”. A pesquisa com a hereditariedade biológica possui avanços significativos, mas quando se trata da doença mental caímos no escopo do biológico e não do psiquismo. Há padrões de comportamento, por exemplo, que se repetem entre gerações, seja por afinidades, por ideal do ego, ou complexidades ainda não desvendadas. Mas é comum ver em uma mesma família nuanças diferente de traços neuróticos, psicóticos, perversos. Encontramos como nos lembra Freud: “membros de uma mesma família ser afetados pelos mais diversos distúrbios nervosos, funcionais e orgânicos, sem que se possa descobrir qualquer lei determinante da substituição de uma doença por outra ou da ordem de sua sucessão entre as gerações. Ao lado dos membros doentes dessas famílias há outros que permanecem saudáveis”; (Freud, 1896 p. 143 – 145). Não sabemos por que uma pessoa tolera a mesma carga hereditária sem adoecer, ou por que outra desenvolve  esta ou invés daquela outra estrutura de defesa. Como o acaso não existe e que a hereditariedade não é determinante, há outras influências etiológicas especiais. Na etiologia das neuroses vamos encontrar precondições, como causas concorrentes, causas específicas, que sucumbem a hereditariedade, pois as mesmas causas específicas, quando age em um sujeito saudável, não produz um efeito patológico, mas em uma pessoa predisposta, sua ação pode provocar a emergência de uma neurose, psicose etc. e o desenvolvimento poderá ser proporcional em intensidade e extensão a precondição hereditária. No jogo de forças entre a hereditariedade e as causas específicas uma pode substituir a outra no que diz respeito a quantidade, ou seja pode ser que a carga hereditária seja significativa, mas as causas e influencias específicas sejam fracas, ou o contrário, ou as duas composições de quantidades serem significativas e intensas.

A estrutura é desenvolvida ao longo de um tempo, que não é possível identificar o começo, mas que se revela em sua complexidade na idade adulta. Assim o distúrbio emocional pode advir de um processo de histeria, em que os sintomas são físicos, conversão. Das obsessões, pelo deslocamento de afeto dos objetos. Pelas psicoses, o delírio ou perversão, a transgressão. Essas defesas se erguem no sentido de preservação do ego, mas uma preservação que levada “as últimas consequências” pode cindir ainda mais o ego já fragilizado, imprimindo uma perturbação na economia do sistema nervoso. Devemos lembrar “que essas modificações patológicas funcionais têm como fonte comum a vida sexual do sujeito, quer residam num distúrbio de sua vida sexual contemporânea, quer em fatos importantes de sua vida passada” (Freud, 1896 - p.148). Essas influencias que dizem respeito à sexualidade refere-se as vivência do sujeito no mundo e suas formas de defesa. Como a angústia se revela em cada uma delas é um enigma. Mas, nas neuroses os sintomas secundários de “irritabilidade, estados de expectativa angustiada, fobias, ataques de medo e de vertigem, tremores, suores, congestão, dispneia, taquicardia, diarreia crônica, vertigem locomotora crônica, hiperestesia, insônia” (Freud, 1896 – p.149 – 150), são evidências.

As vivências sedutoras que permeiam a sexualidade infantil, “até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual” (Freud, 1896 – p. 151), deixam marcas mnêmicas na história do sujeito, que retornam na idade adulta, como repetição. É fonte de prazer que, pode ter sido sentida como desprazer, mas que se perpetua como conflito, revelado na angústia, como traço psíquico despertado, tornando-o atual. É um trauma sexual, ou de desagregação. Não ter encontrado no outro, o lugar do desejo, que implique na lei, retorna. Se proporcionou gozo ou não, o que está vinculado a estrutura a potencializa. O que é notório é que houve uma “violação” do corpo infantil, possibilitando ansiedade e a angústia.

Por certo que a angústia vivenciada na idade adulta é um resíduo mnêmico, muitas vezes tão bem guardado que dificilmente pode vir à tona. Há que acalmar a angústia à aquilo que não pode ser revelado, por ser um prolongamento de experiências remotas que dizem respeito a algum fracasso, frustração, desagregação psíquica, ameaça física e psíquica, real ou imaginária, não localização no desejo do outro, perda, etc. O aumento da tensão física “atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente” (Freud, Rascunho E p. 238), não podendo ser significada, transforma-se em angústia. Mas a angústia é um afeto mais amplo, pois está vinculada a estímulos internos poderosos como o respirar, podendo ser uma tensão acumulada, que ameaça o ego. Há muito ainda de enigma na angústia. Freud revela sua angústia ao falar sobre ela: “As lacunas precisam muito ser preenchidas. Penso que tudo isso está incompleto: falta-me algo; mas creio que os fundamentos estão corretos. Naturalmente, tudo isso ainda não está maduro para ser publicado. Sugestões, ampliações e certamente refutações e explicações serão recebidas com a máxima gratidão” (Freud, R – E, p.239). Sigamos o nosso percurso de reflexão, na esperança de contribuir na compreensão desse afeto tão presente no mundo adulto atual, mas com grande ênfase na infância e adolescência, e que muitas vezes interfere na autonomia do sujeito. Uma vez que a irritabilidade geral, expectativa angustiada, insônia, a hiperestesia auditiva, uma hipersensibilidade ao ruído “um sintoma indubitavelmente explicável pela íntima relação inata entre as impressões auditivas e o pavor” (Freud, 1895 |1894 p. 95), está no cotidiano humano. Podemos dizer que todos nós temos um “quantum de angústia”, que flutua a nossa existência e que independe das vicissitudes da vida, controlando a escolha das representações e ligando-se a conteúdos e objetos representativos importantes. Vinculado a angústia está a ansiedade, sempre presente no psiquismo e que pode irromper como angústia, podendo estar acompanhada de representações de ameaça, de loucura, de extinção da vida, parestesia, distúrbio de funções corporais como “respiração, atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular, Queixa de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”, “fome devoradora”, “sentir-se mal”, “não estar à vontade”, (Freud, 1895 [1894] p. 96).

Muitos são os sintomas, pelos quais a angústia se manifesta através do sistema cardíaco e respiratório, em suas atividades vasomotoras; palpitações, arritmia ou taquicardia, que pode causar lesões no coração e distúrbios respiratórios. Dispneia, asma, e outros, tais como suor excessivo,  tremores gerais ou em partes específicas do corpo, fome devoradora, vertigem, desmaio que pode advir de colapso cardíaco, tonturas, diarreia, congestões, problemas gástricos, vômito, náusea, sensação de mal-estar, pavor noturno, pânico, insônia, sensação de peso nas pernas. Podem existir inúmeros sintomas físicos, que ainda precisam ser estudados e sua relação com o psiquismo. A quantidade,  intensidade da energia psíquica e as pré-disposições psíquicas, as situações  traumáticas vivenciadas, são determinantes no desenvolvimento da angústia e no estabelecimento desta, como angústia crônica com riscos fisiológicos gerais e vulnerabilidades psíquicas maiores. As situações que impliquem em ameaça física e de desagregação do ego de forma intensificada, geradora de angústia podem desencadear diversas formas de fobias, acompanhadas muitas vezes de vertigem, que é uma forma de retorno da lembrança da situação traumática, que emerge. Assim uma representação torna-se repetitiva por está ligada a um afeto que é a angústia em busca de escoamento.

As fobias ocupam um espaço, quando se fala de angústia, pela incapacitação que muitas vezes desencadeiam e pelas medidas protetivas que demandam, seja de que forma se estrutura o sujeito. A ilusão de uma relação reflexa entre psiquismo e corpo é evidenciada na dificuldade em relacionar onde começa e termina a dialética corpo-psiquismo. Se a angústia desencadeia uma conversão dos sintomas, um deslocamento, ou uma alteração das representações, pela alucinação, de acordo com a estrutura do sujeito, seja atingindo sensações corporais como “grande número do que se conhece como indivíduos reumáticos, aumento da sensibilidade à dor” (Freud, 1895 [1894] p. 100), é por que o psiquismo está todo o tempo no comando. Há que considerarmos também a grande influência da vida sexual e suas demandas: é conhecida a angústia dos adolescentes, quanto à virgindade, dos recém-casados em satisfazerem o(a) parceiro(a), os problemas com a ejaculação precoce ou a potência enfraquecida, o “falhar”. A masturbação, o descuido do parceiro quanto à excitação feminina, ou a excitação masculina não consumada, a angústia vivida no climatério seja feminina ou masculina. Nesse sentido a energia que é acumulada estimula a psique rompendo a “resistência da via de condução intermediária até o córtex cerebral”, podendo expressar-se como um estímulo psíquico. Portanto: “A psique é invadida pelo afeto de angústia quando se sente incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma tarefa (um perigo) vinda de fora; e fica presa de uma angústia quando se percebe incapaz de equilibrar a excitação vinda de dentro” (Freud, 1895 |1894 p.112).  O desencadeamento da angústia seja interno, externo, ou em sua dialética,  permeia o sistema de defesa do sujeito alertando-lhe dos perigos que o rondam. O aparecimento dos sintomas sejam de forma crônica ou como ataques, principalmente nas parestesias “como auras”, as hiperestesias ou  a dispneia, os ataques cardíacos, que talvez tenham justificação orgânica, aproxima a angústia da histeria mesmo que seja como traço. A questão é que o psiquismo não tem como responder de outra forma que não seja pela angústia, gerando processos somáticos, que podem tornar-se complexos.

As vivências da existência humana estão repletas de sintomas de angústia, sejam nas neuroses, psicoses, perversões. De que forma se expressa a hereditariedade, as vivências, os fatores sexuais difíceis de serem elaborados psiquicamente, é a questão da complexidade das subjetividades, que não podem ser compreendidas através de causas isoladas; são questões que exigem uma escuta “fina”, uma interpretação que compreende o acolhimento, a transferência e a resistência. O choque ou trauma psíquico, uma forte emoção ou vivência, traumática, pode desencadear um “problema”, que esteja na vulnerabilidade do sujeito, sendo o núcleo da angústia. Embora, qual choque ou trauma é a questão, que muitas vezes o próprio sujeito não conseguirá decifrar, na luta pela preservação de seu próprio ego; pois muitas são as situações que se acumulam ao longo da vida. Muitos são os fatores que operam conjuntamente no que diz respeito à quantidade e qualidade. Para que uma crise de angústia se dê “de forma isolada” é necessário que exista fatores desencadeantes que pertençam à subjetividade do indivíduo.

O quanto de angústia cada um pode suportar é da constituição de cada sujeito. Por que Lacan na capa do Seminário 10, a angústia tem o símbolo do infinito, permeado de formigas andando em fileiras? Acreditamos que o infinito faz parte de nossas vidas e que angústia é muito trabalhosa para cada um. O sentimento de angústia, como algo que há de vir, mas que já veio e que se tem a expectativa de repetição. A intensidade diz respeito ao medo de desagregação já vivenciado e que pode ser repetido. A angústia é um sinal de retorno ou de um enfrentamento do real, daquilo que não foi significado, que não entrou na rede de significante. Sinal de um desejo que não encontrou no Outro a consciência de si. Nessa relação com o Outro há sempre a interrogação por parte do sujeito, o que esse Outro deseja e que lugar ocupa nesse desejo. Sinal de que ao participar do desejo do Outro como objeto, mantém-se nessa posição em prejuízo do ideal do ego. Sinal de que no destino dado à lei existem furos. A angústia é inerente a todo o existir humano e todos a sentem de uma forma ou de outra, nesta ou naquela circunstancia.

Se falarmos de pulsão de vida e pulsão de morte, de forma mecânica, não faz sentido. A questão é que somos seres dialéticos de vida e morte, as duas condições nos habita. Essa é uma angústia, a qual não é possível se extinguir. Mesmo que façamos a opção pelo materialismo ou pela metafísica, a angústia estará presente, em cada concepção com seus significantes, sublimações. A angústia existe no vazio da desagregação, quando não se encontra eco de significante no real, quando na rede de proteção dos significantes, estes encontram dificuldades ou não são possíveis de serem integrados. Vivemos como um equilibrista como dirá Lacan (p.18). Esse afeto que é a angústia é um sintoma, que diz respeito a um movimento que pode ser paralisante, se for de inibição estará conosco em diversas situações na vida cotidiana enquanto “captura narcísica”, ou nos eventos traumáticos. Quanto à “captura narcísica” Lacan nos dirá: “O impedimento ocorrido está ligado a este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha” (p.19). Quanto aos eventos traumáticos, é a reação catastrófica, que desencadeia a angústia. Essa aparente distancia entre o evento, ou os eventos são sempre revelados, por uma queda de pulsão, no que diz respeito ao movimento. Ou seja, como responde a estrutura do sujeito. A angústia possui sempre algo de agudo, de irreconciliável, seja qual for a estrutura que nos referimos, embora em uma estrutura psicótica ou perversa ela apareça de forma periférica. Mas estará lá, por mais distante que pareça.
  
Que a angústia possa se inscrever no campo do desejo; do desejo do Outro, do significante, em relação à consciência de si, no desejo do Outro enquanto defesa psíquica, física, ou estruturante, no desejo do Outro enquanto lugar do significante, então, desagregação. A questão dessa dependência é que ela é inconsciente. Está na ordem da falta, do que falta. O Outro é que revela o que falta. Como todos nós somos marcados pela finitude, havemos todos que nos aproximarmos da angústia. Seja pela inibição, que paralisa, pelo sintoma que pode implicar em fuga. O que avisa o sujeito de que há um perigo é a angústia. Há uma separação desde o nascimento. Há que interrogar de que ordem e de que forma percorrerá a existência. Ela funciona como um sinal de como o real se apresenta na experiência, ou se o sujeito é um resto para o outro. Assim é da imagem e de um saber sobre si que se trata. Qual é a angústia do humano? É a angústia pela cegueira quanto a seu destino, a visão impossível que ameaça. Assim o que é buscado, procurado no outro é a resposta sobre a própria essência do sujeito e o porquê de sua miserabilidade. Mas que só é possível encontrar no saber sobre si. Não existem super-homens a não ser no delírio, ou nos estados maníacos. Não evoluímos muito como nos lembra Freud em Além do Princípio do Prazer, do nosso estado inicial de uma compulsão  a repetir os fenômenos da hereditariedade, onde no exemplo que ele nos empresta sobre os protozoários é tão ilustrativo. Nossa angústia é uma repetição de algo que nos foi tirado ou nos falta. Isso é apenas em grau tênue, em que a explicação histórica não pode ser desprezada e que pode colocar-nos acima do reino animal.
  
Referências
LACAN, Jacques – O SEMINÁRIO, Livro 10, A ANGÚSTIA (Introdução à estrutura da angústia; A angústia entre o gozo e o desejo) - (1962 – 1963) – Jorge Zahar Editor, 2005
FREUD, S.  - A HEREDITARIEDADE E A ETIOLOGIA DAS NEUROSES (1896). Obras Completas de Psicanálise - volume VIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - RASCUNHO E - COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECÍFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895 [1894]). Obras Completas de Psicanálise - volume III. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA,. Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - RESPOSTA ÀS CRÍTICAS A MEU ARTIGO SOBRE A NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895). Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.  

Lacan no percurso de Hegel

Muitos foram os conceitos apreendidos por Lacan na obra de Hegel, principalmente na Fenomenologia do espírito. Faremos aqui algumas anotações, no que diz respeito à relação sujeito-objeto, do que muito se ocupou Lacan. Como Hegel é contemporâneo de Kant e em certo sentido há que passar pela Crítica da Razão Pura, há que afirmar que a razão ocupa de si e dos objetos. Isso não há dúvida, tão pouco sua dialética. Sua dialética é o movimento que inspira o caminho da razão pela apropriação de um saber sobre si que desvela não só a si, mas o próprio caminho. Os contrários que compõe o movimento depara-se todo o tempo com inúmeras vicissitudes entre as certezas do sujeito e a verdade do objeto, que pertencem à história deste. No sentido de causalidade o sujeito é um fenômeno para si próprio ao tempo em que busca um saber sobre si e sobre os objetos ao longo de suas experiências. Se a vida é revelada enquanto verdade pela natureza, o destino do homem é decifrar seu próprio enigma no bioma que é ele. Escutando a natureza ele encontra pela razão significados para a aparência da sem-razão dos conflitos de sua existência. Só então surge a certeza da  consciência-de-si. Mas não é possível a consciência-de-si sem a “consciência do outro”, que é “consciência-de-si, ser-refletido em si, consciência de si mesmo no seu ser outro”.

Se a vida é um constante fluir, aonde as diferenças vão se extinguindo, a consciência-de-si um “retorno a partir do ser-outro”. Movimento esse que pertence ao mundo sensível da percepção, que encontra eco na essência do ser, que é o inconsciente. E para o inconsciente o que vale é o desejo. Assim se a verdade do objeto é a verdade do ser é por que o imperativo que irrompeu é o desejo. Então a consciência-de-si ao satisfazer-se, revela o desejo e a dependência do objeto para sua satisfação. Como há algo de egoísta no desejo e o objeto não exerce a mediação para um saber sobre a consciência-de-si, a solução dialética é a ressurgência do objeto transfigurado, o que não é uma solução. O caminho é encontrar-se no objeto e para isso a verdade da natureza e do universo deve estar na verdade do sujeito e de sua história, ou seja, "a consciência-de-si alcança a sua satisfação somente numa outra consciência-de-si".

Diferenciar-se do objeto é estabelecer a dialética do reconhecimento e assim o desejo encontra sua verdade, pela diferenciação. Se assim não for o objeto da pulsão é consumido na satisfação, ou é resinificado. É então pensando sobre si mesmo, resinificando que o homem vive pela razão, sublima os instintos e a consciência caminha para "a experiência do que é o Espírito, essa substância absoluta que, na liberdade acabada e na independência da sua oposição, a saber, de diversas consciências-de-si que são para-si, é a unidade das mesmas; Eu que é Nós, e Nós que é Eu” (p. 77). Essa dialética do reconhecimento é o que permite ao sujeito constituir-se em oposição ao outro, sem fusão, mantendo sua individualidade, sua existência histórica e desvelar essa história compreendendo de forma dialéticas as diversas interfaces, não só das vicissitudes da vida, mas de seu desejo a medida que vai apropriando-se de outra consciência-de-si e assim de si. Lacan fez várias incursões sobre o Sujeito (consciência-de-si) e o objeto, vários esquemas, formulas, metáforas, que merece considerações em outro momento. Mas que pode ser expressa na seguinte metáfora: é na minha imagem que vejo refletida no olhar do outro, que me encontro. Portanto, onde e como cada sujeito vê inscrito seu destino é um enigma. Nessa luta do reconhecimento a racionalidade ética, deve percorrer um caminho de busca de um saber que está dentro de si e que justifica sua existência.

Referência
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich - FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO (Apresentação) –– 1807, Editora Vozes LTDA - 7ª edição (2011)

4 de julho de 2013

Poesia - A Dor


Crescer dói... Você pode ter as melhores instruções do mundo e seguir uma vida tranquila, mas você só conhecerá a tua força e a tua sabedoria quando fores submetido a dor, ao sofrimento. A dor é uma mestra cruel. Ela cega, revolta, magoa, fere no mais íntimo de teu espírito, mas se conseguires vencer a escuridão da dor, resplandecerá em ti a luz de uma pessoa vitoriosa, dona de uma felicidade calma e ao mesmo tempo contagiante, típica das pessoas que já conhecem bem este mundo. Mas o sofrimento não acabará. O mundo continuará tendo sua natureza fascinante, linda, amarga e cruel. E não faltarão forças que tentarão te colocar de joelhos - a diferença é que neste momento, você não cairá mais. Você terá vencido a dor, e agora apenas a paz e a felicidade te esperarão.
Augusto Branco

2 de julho de 2013

Compreender a Criança

“Quando um dano é infligido a uma criança no começo de sua vida, isso pode projetar uma sombra sobre toda a sua vida”.

É muito comum em nossa sociedade, quando um casal fica gestante e ante ao nascimento deste novo ser, que irá compor a família, esta se articula com a gestação, o enxoval, as roupas, os utensílios, enfim o parto. A criança encontra o ambiente familiar, social, cultural, “pronto” para recebê-la. Para o mundo “ele (a) ao nascer, só precisa adaptar-se”. A criança é um universo complexo, recém-saída de um mundo que ela conhecia para um mundo desconhecido. Como os pais, a família, vai adaptar-se a ele(a)? Para que os pais se adaptem à criança é necessário que primeiro eles compreendam a si próprios, enquanto subjetividades, desejos, funções de pai e de mãe. Como é a representação psíquica da vida de adulto? Criar, educar não é algo inerente a natureza humana, portanto os pais não devem saber por natureza educar seus filhos, pois muitas vezes o esquecimento da própria infância, principalmente a lembrança dos cinco primeiros anos dificulta a compreensão das dificuldades do bebê e da criança na primeira infância, pois esqueceu suas próprias dificuldades.

Nos primeiros anos da infância é quando a criança adquire a maior parte das “faculdades mentais do adulto”. Mas o esquecimento dificulta a apreensão da própria infância, pela criança e depois pelo adulto. As demandas fisiológicas do bebê e o instinto dos pais facilitam essa passagem na infância. Quando os mecanismos fisiológicos, pulmões e coração, são ativados ao nascer, a primeira possibilidade de sufocação é superada e a vida flui. O ambiente preparado para receber a criança que nasce é importante no sentido de desenvolver a afetividade, que impulsiona a tornar a situação do recém-nascido acolhedor, protegido das excitações visuais, acústicas. O acolhimento, proteção, cuidados de acordo com a dinâmica da criança, afetividade, diminuem o impacto do nascimento como um traumatismo psíquico. Uma vez realizado no real o primeiro corte, no caso o cordão umbilical, há que dá um significado, pois na sequencia virão outros “cortes” como o desmame, o controle dos esfíncteres, a descoberta da sexualidade. Essas passagens a que todos estão vinculados, se dão num continuo, em que é particular de cada sujeito.

As campanhas pela amamentação informam para a importância desse momento de nutrição como fortalecimento das defesas. Mas é o momento em que se aprofunda a relação mãe-bebê, desenvolve o processo de identificação na relação com o outro. Nesse sentido a forma como se deve realizar o desmame é importante, não só por que é a passagem a outro modo de nutrição e a mastigação, mas pelas mudanças psicológicas implicadas. Na relação mãe-bebê, está sendo construída a relação com os objetos e a forma de obter prazer, portanto a substituição gradativa, acolhedora e prazerosa é importante. Se “num dos estágios precoces do desenvolvimento embrionário, uma simples picada de alfinete, um leve ferimento, pode impedir a formação de toda uma parte do corpo” (Ferenczi p.5), o mesmo ocorre depois do nascimento onde todo processo que sofre “ferimentos”, ou seja, intervenções abruptas, deixa suas marcas, que o sujeito possivelmente terá que elaborar significar.

Compreender o bebê, a criança é extremamente importante, observá-lo, tranquilizá-lo, ante suas aflições, em que aspectos é mais sensível, se a ruídos, a fome, as fraldas, a excitação visual, a aglomerados de pessoas, contato com outras pessoas, dormir no quarto dos pais e ver as relações sexuais, etc. A criança desde cedo sente e observa tudo. Assim como as angústias, os medos podem deixar traços na vida psíquica da criança. Outra fase que exige cuidados é a aprendizagem do asseio pessoal. Observar as dificuldades da criança, sua afetividade, à relação com seu corpo, possibilitará uma relação menos invasiva. A forma como a criança adapta suas necessidades, em seus primeiros cinco anos de vida à família, comunidade e como estas respondem às suas necessidades são importantes para um desenvolvimento saudável. Por maior que sejam os fatores hereditários, quando se trata de saúde mental as experiências vividas após o nascimento ou durante o desenvolvimento são importantes na potencialização ou não de determinadas sintomatologias. A criança está voltada para o seu universo infantil e não poderia ser diferente, ela ama a si mesma, é o que chamamos do narcisismo primário, e tudo que faz parte dela: seus excrementos são parte dela, é um objeto do qual se separa, por isso esse desvincular deve ser cuidadoso, pois muitos adultos mantêm o traço do interesse em seus excrementos, e muitas vezes no idoso retorna com mais força.

A reação de cada criança é diferente diante de situações semelhantes, pois cada subjetividade se estrutura, age e reage de forma diferente. Portanto inserir culturalmente a criança na lei, possibilitando a simbolização e assim a sublimação, possibilita um desenvolvimento suave, aprendendo a orientar suas necessidades e instintos primitivos a algo criativo para o bem comum. Assim na adaptação da família à criança há que os pais considerem o destino que deram e como conduziram a sua lei interna e como é exercida a função de pai e mãe e que lugares são esses. A fantasia na infância é uma forma da criança elaborar seu universo. Muitas vezes em substituição ao diálogo, que deve ser com seus significantes, muitas vezes ocorre por parte dos pais um discurso fantasiado da realidade, confundindo a criança e dificultando o contato desta com a realidade. O discurso fantasioso dos pais seja por repetição do aprendizado, ou pode tornar-se mentiras  que vão se substituindo no sentido de garantir um lugar, que não é possível. A criança nesse processo de identificação pode repetir esses modelos, também, para garantir lugares que não são possíveis no real, e quando os pais interrogam aos filhos por que estão mentindo, devem buscar onde está essa referência. Os modelos introjetados podem se repetir com maior ou menor ênfase, ou no seu oposto. Compreender a criança como um ser que possui uma individualidade e uma subjetividade que lhe é própria é respeitar suas necessidades, demandas e orientá-las no sentido da compreensão de si mesmas e do mundo que a cerca. É fundamental para seu desenvolvimento psíquico saudável, onde as responsabilidades, frustrações, decepções, dos pais, não sejam transmitidas à criança como uma forma de projeção, onde esse outro, que é a criança terá a responsabilidade de realizar o que não foi possível aos pais, ou que eles possam com suas realizações manter o status conseguido pelos pais. Isso sempre é fonte de muito sofrimento para crianças e adolescentes. Assim os danos invisíveis vão se delineando e quando se depara com algo incompreensível necessita de acolhimento, escuta compreensão, paciência na retomada dos caminhos.

Referência
FERENCZI, Sándor – PSICANÁLISE IV (1928). Obras Completas – São Paulo, Martins Fontes, 2011

1 de julho de 2013

O sagrado


“Nenhum leitor [da versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio à religião de seus pais — bem como a qualquer outra religião — e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘Desde que abandonou todas essas características comuns a seus compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito grande e, provavelmente a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito científico”.

Freud, Prefácio à Tradução Hebraica - Totem e tabu -  (1913-1914)

Esse belíssimo texto de Freud nos silencia sobre as questões do sagrado.