9 de julho de 2013

Angústia

“Em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida”.

No tempo presente essa palavra, angústia (Angst) é tão repetida e sentida, que não é um tema fácil de falar tão pouco de refletir ou discorrer sobre ele. A angústia é um afeto, uma descarga da pulsão, que traz em si um elemento antecipatório “algo pode acontecer ou se repetir”. O objeto que estava presente e que parecia ter desaparecido, reaparece, mesmo que seja com outros significantes. Temos também vinculado ao termo angústia, o medo, pavor, susto, sobressalto, ou seja, a sentimentos asfixiantes que imobiliza o sujeito ou o faz reagir, como se estivesse em uma situação de perigo real, e muitas vezes o estar. Como afeto não é recalcado. Podemos encontra-lo deslocado, enlouquecido, invertido. O que é recalcado são os significantes que o amarram.

Falar de angústia é remeter às estruturas psíquicas de defesa e assim há que iniciarmos falando de hereditariedade como “determinantes” das estruturas psíquicas. Não remetemos aqui aos aspectos biológicos, evidentes, mas aos aspectos psíquicos que compõe as passagens transgeracionais. Quando um membro da família faz um sintoma de defesa é possível que só ele o faça, mas há grandes possibilidades de outros fazerem não os mesmos sintomas, mas semelhantes. Falar de hereditariedade nos processos neuróticos, psicóticos, perversos, é falar de como cada membro da família elabora a lei, o nome-do-pai. Portanto é possível que em uma mesma família possa ser encontrado diversas estruturas, mas é da cultura, da essência do humano, as afinidades. Assim a hereditariedade é determinada por circunstancias e subjetividades muitas vezes difíceis de serem apreendidas, mesmo na presença de situações traumáticas. Existem famílias mais vulneráveis do ponto de vista hereditário. “A existência de distúrbios nervosos adquiridos é tão viável quanto a de distúrbios hereditários”. Por certo que não é tarefa fácil realizar diagnóstico retrospectivo, muito menos diferencial, das “doenças ancestrais”. A pesquisa com a hereditariedade biológica possui avanços significativos, mas quando se trata da doença mental caímos no escopo do biológico e não do psiquismo. Há padrões de comportamento, por exemplo, que se repetem entre gerações, seja por afinidades, por ideal do ego, ou complexidades ainda não desvendadas. Mas é comum ver em uma mesma família nuanças diferente de traços neuróticos, psicóticos, perversos. Encontramos como nos lembra Freud: “membros de uma mesma família ser afetados pelos mais diversos distúrbios nervosos, funcionais e orgânicos, sem que se possa descobrir qualquer lei determinante da substituição de uma doença por outra ou da ordem de sua sucessão entre as gerações. Ao lado dos membros doentes dessas famílias há outros que permanecem saudáveis”; (Freud, 1896 p. 143 – 145). Não sabemos por que uma pessoa tolera a mesma carga hereditária sem adoecer, ou por que outra desenvolve  esta ou invés daquela outra estrutura de defesa. Como o acaso não existe e que a hereditariedade não é determinante, há outras influências etiológicas especiais. Na etiologia das neuroses vamos encontrar precondições, como causas concorrentes, causas específicas, que sucumbem a hereditariedade, pois as mesmas causas específicas, quando age em um sujeito saudável, não produz um efeito patológico, mas em uma pessoa predisposta, sua ação pode provocar a emergência de uma neurose, psicose etc. e o desenvolvimento poderá ser proporcional em intensidade e extensão a precondição hereditária. No jogo de forças entre a hereditariedade e as causas específicas uma pode substituir a outra no que diz respeito a quantidade, ou seja pode ser que a carga hereditária seja significativa, mas as causas e influencias específicas sejam fracas, ou o contrário, ou as duas composições de quantidades serem significativas e intensas.

A estrutura é desenvolvida ao longo de um tempo, que não é possível identificar o começo, mas que se revela em sua complexidade na idade adulta. Assim o distúrbio emocional pode advir de um processo de histeria, em que os sintomas são físicos, conversão. Das obsessões, pelo deslocamento de afeto dos objetos. Pelas psicoses, o delírio ou perversão, a transgressão. Essas defesas se erguem no sentido de preservação do ego, mas uma preservação que levada “as últimas consequências” pode cindir ainda mais o ego já fragilizado, imprimindo uma perturbação na economia do sistema nervoso. Devemos lembrar “que essas modificações patológicas funcionais têm como fonte comum a vida sexual do sujeito, quer residam num distúrbio de sua vida sexual contemporânea, quer em fatos importantes de sua vida passada” (Freud, 1896 - p.148). Essas influencias que dizem respeito à sexualidade refere-se as vivência do sujeito no mundo e suas formas de defesa. Como a angústia se revela em cada uma delas é um enigma. Mas, nas neuroses os sintomas secundários de “irritabilidade, estados de expectativa angustiada, fobias, ataques de medo e de vertigem, tremores, suores, congestão, dispneia, taquicardia, diarreia crônica, vertigem locomotora crônica, hiperestesia, insônia” (Freud, 1896 – p.149 – 150), são evidências.

As vivências sedutoras que permeiam a sexualidade infantil, “até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual” (Freud, 1896 – p. 151), deixam marcas mnêmicas na história do sujeito, que retornam na idade adulta, como repetição. É fonte de prazer que, pode ter sido sentida como desprazer, mas que se perpetua como conflito, revelado na angústia, como traço psíquico despertado, tornando-o atual. É um trauma sexual, ou de desagregação. Não ter encontrado no outro, o lugar do desejo, que implique na lei, retorna. Se proporcionou gozo ou não, o que está vinculado a estrutura a potencializa. O que é notório é que houve uma “violação” do corpo infantil, possibilitando ansiedade e a angústia.

Por certo que a angústia vivenciada na idade adulta é um resíduo mnêmico, muitas vezes tão bem guardado que dificilmente pode vir à tona. Há que acalmar a angústia à aquilo que não pode ser revelado, por ser um prolongamento de experiências remotas que dizem respeito a algum fracasso, frustração, desagregação psíquica, ameaça física e psíquica, real ou imaginária, não localização no desejo do outro, perda, etc. O aumento da tensão física “atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente” (Freud, Rascunho E p. 238), não podendo ser significada, transforma-se em angústia. Mas a angústia é um afeto mais amplo, pois está vinculada a estímulos internos poderosos como o respirar, podendo ser uma tensão acumulada, que ameaça o ego. Há muito ainda de enigma na angústia. Freud revela sua angústia ao falar sobre ela: “As lacunas precisam muito ser preenchidas. Penso que tudo isso está incompleto: falta-me algo; mas creio que os fundamentos estão corretos. Naturalmente, tudo isso ainda não está maduro para ser publicado. Sugestões, ampliações e certamente refutações e explicações serão recebidas com a máxima gratidão” (Freud, R – E, p.239). Sigamos o nosso percurso de reflexão, na esperança de contribuir na compreensão desse afeto tão presente no mundo adulto atual, mas com grande ênfase na infância e adolescência, e que muitas vezes interfere na autonomia do sujeito. Uma vez que a irritabilidade geral, expectativa angustiada, insônia, a hiperestesia auditiva, uma hipersensibilidade ao ruído “um sintoma indubitavelmente explicável pela íntima relação inata entre as impressões auditivas e o pavor” (Freud, 1895 |1894 p. 95), está no cotidiano humano. Podemos dizer que todos nós temos um “quantum de angústia”, que flutua a nossa existência e que independe das vicissitudes da vida, controlando a escolha das representações e ligando-se a conteúdos e objetos representativos importantes. Vinculado a angústia está a ansiedade, sempre presente no psiquismo e que pode irromper como angústia, podendo estar acompanhada de representações de ameaça, de loucura, de extinção da vida, parestesia, distúrbio de funções corporais como “respiração, atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular, Queixa de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”, “fome devoradora”, “sentir-se mal”, “não estar à vontade”, (Freud, 1895 [1894] p. 96).

Muitos são os sintomas, pelos quais a angústia se manifesta através do sistema cardíaco e respiratório, em suas atividades vasomotoras; palpitações, arritmia ou taquicardia, que pode causar lesões no coração e distúrbios respiratórios. Dispneia, asma, e outros, tais como suor excessivo,  tremores gerais ou em partes específicas do corpo, fome devoradora, vertigem, desmaio que pode advir de colapso cardíaco, tonturas, diarreia, congestões, problemas gástricos, vômito, náusea, sensação de mal-estar, pavor noturno, pânico, insônia, sensação de peso nas pernas. Podem existir inúmeros sintomas físicos, que ainda precisam ser estudados e sua relação com o psiquismo. A quantidade,  intensidade da energia psíquica e as pré-disposições psíquicas, as situações  traumáticas vivenciadas, são determinantes no desenvolvimento da angústia e no estabelecimento desta, como angústia crônica com riscos fisiológicos gerais e vulnerabilidades psíquicas maiores. As situações que impliquem em ameaça física e de desagregação do ego de forma intensificada, geradora de angústia podem desencadear diversas formas de fobias, acompanhadas muitas vezes de vertigem, que é uma forma de retorno da lembrança da situação traumática, que emerge. Assim uma representação torna-se repetitiva por está ligada a um afeto que é a angústia em busca de escoamento.

As fobias ocupam um espaço, quando se fala de angústia, pela incapacitação que muitas vezes desencadeiam e pelas medidas protetivas que demandam, seja de que forma se estrutura o sujeito. A ilusão de uma relação reflexa entre psiquismo e corpo é evidenciada na dificuldade em relacionar onde começa e termina a dialética corpo-psiquismo. Se a angústia desencadeia uma conversão dos sintomas, um deslocamento, ou uma alteração das representações, pela alucinação, de acordo com a estrutura do sujeito, seja atingindo sensações corporais como “grande número do que se conhece como indivíduos reumáticos, aumento da sensibilidade à dor” (Freud, 1895 [1894] p. 100), é por que o psiquismo está todo o tempo no comando. Há que considerarmos também a grande influência da vida sexual e suas demandas: é conhecida a angústia dos adolescentes, quanto à virgindade, dos recém-casados em satisfazerem o(a) parceiro(a), os problemas com a ejaculação precoce ou a potência enfraquecida, o “falhar”. A masturbação, o descuido do parceiro quanto à excitação feminina, ou a excitação masculina não consumada, a angústia vivida no climatério seja feminina ou masculina. Nesse sentido a energia que é acumulada estimula a psique rompendo a “resistência da via de condução intermediária até o córtex cerebral”, podendo expressar-se como um estímulo psíquico. Portanto: “A psique é invadida pelo afeto de angústia quando se sente incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma tarefa (um perigo) vinda de fora; e fica presa de uma angústia quando se percebe incapaz de equilibrar a excitação vinda de dentro” (Freud, 1895 |1894 p.112).  O desencadeamento da angústia seja interno, externo, ou em sua dialética,  permeia o sistema de defesa do sujeito alertando-lhe dos perigos que o rondam. O aparecimento dos sintomas sejam de forma crônica ou como ataques, principalmente nas parestesias “como auras”, as hiperestesias ou  a dispneia, os ataques cardíacos, que talvez tenham justificação orgânica, aproxima a angústia da histeria mesmo que seja como traço. A questão é que o psiquismo não tem como responder de outra forma que não seja pela angústia, gerando processos somáticos, que podem tornar-se complexos.

As vivências da existência humana estão repletas de sintomas de angústia, sejam nas neuroses, psicoses, perversões. De que forma se expressa a hereditariedade, as vivências, os fatores sexuais difíceis de serem elaborados psiquicamente, é a questão da complexidade das subjetividades, que não podem ser compreendidas através de causas isoladas; são questões que exigem uma escuta “fina”, uma interpretação que compreende o acolhimento, a transferência e a resistência. O choque ou trauma psíquico, uma forte emoção ou vivência, traumática, pode desencadear um “problema”, que esteja na vulnerabilidade do sujeito, sendo o núcleo da angústia. Embora, qual choque ou trauma é a questão, que muitas vezes o próprio sujeito não conseguirá decifrar, na luta pela preservação de seu próprio ego; pois muitas são as situações que se acumulam ao longo da vida. Muitos são os fatores que operam conjuntamente no que diz respeito à quantidade e qualidade. Para que uma crise de angústia se dê “de forma isolada” é necessário que exista fatores desencadeantes que pertençam à subjetividade do indivíduo.

O quanto de angústia cada um pode suportar é da constituição de cada sujeito. Por que Lacan na capa do Seminário 10, a angústia tem o símbolo do infinito, permeado de formigas andando em fileiras? Acreditamos que o infinito faz parte de nossas vidas e que angústia é muito trabalhosa para cada um. O sentimento de angústia, como algo que há de vir, mas que já veio e que se tem a expectativa de repetição. A intensidade diz respeito ao medo de desagregação já vivenciado e que pode ser repetido. A angústia é um sinal de retorno ou de um enfrentamento do real, daquilo que não foi significado, que não entrou na rede de significante. Sinal de um desejo que não encontrou no Outro a consciência de si. Nessa relação com o Outro há sempre a interrogação por parte do sujeito, o que esse Outro deseja e que lugar ocupa nesse desejo. Sinal de que ao participar do desejo do Outro como objeto, mantém-se nessa posição em prejuízo do ideal do ego. Sinal de que no destino dado à lei existem furos. A angústia é inerente a todo o existir humano e todos a sentem de uma forma ou de outra, nesta ou naquela circunstancia.

Se falarmos de pulsão de vida e pulsão de morte, de forma mecânica, não faz sentido. A questão é que somos seres dialéticos de vida e morte, as duas condições nos habita. Essa é uma angústia, a qual não é possível se extinguir. Mesmo que façamos a opção pelo materialismo ou pela metafísica, a angústia estará presente, em cada concepção com seus significantes, sublimações. A angústia existe no vazio da desagregação, quando não se encontra eco de significante no real, quando na rede de proteção dos significantes, estes encontram dificuldades ou não são possíveis de serem integrados. Vivemos como um equilibrista como dirá Lacan (p.18). Esse afeto que é a angústia é um sintoma, que diz respeito a um movimento que pode ser paralisante, se for de inibição estará conosco em diversas situações na vida cotidiana enquanto “captura narcísica”, ou nos eventos traumáticos. Quanto à “captura narcísica” Lacan nos dirá: “O impedimento ocorrido está ligado a este círculo que faz com que, no mesmo movimento com que o sujeito avança para o gozo, isto é, para o que lhe está mais distante, ele depare com essa fratura íntima, muito próxima, por ter-se deixado apanhar, no caminho, em sua própria imagem, a imagem especular. É essa a armadilha” (p.19). Quanto aos eventos traumáticos, é a reação catastrófica, que desencadeia a angústia. Essa aparente distancia entre o evento, ou os eventos são sempre revelados, por uma queda de pulsão, no que diz respeito ao movimento. Ou seja, como responde a estrutura do sujeito. A angústia possui sempre algo de agudo, de irreconciliável, seja qual for a estrutura que nos referimos, embora em uma estrutura psicótica ou perversa ela apareça de forma periférica. Mas estará lá, por mais distante que pareça.
  
Que a angústia possa se inscrever no campo do desejo; do desejo do Outro, do significante, em relação à consciência de si, no desejo do Outro enquanto defesa psíquica, física, ou estruturante, no desejo do Outro enquanto lugar do significante, então, desagregação. A questão dessa dependência é que ela é inconsciente. Está na ordem da falta, do que falta. O Outro é que revela o que falta. Como todos nós somos marcados pela finitude, havemos todos que nos aproximarmos da angústia. Seja pela inibição, que paralisa, pelo sintoma que pode implicar em fuga. O que avisa o sujeito de que há um perigo é a angústia. Há uma separação desde o nascimento. Há que interrogar de que ordem e de que forma percorrerá a existência. Ela funciona como um sinal de como o real se apresenta na experiência, ou se o sujeito é um resto para o outro. Assim é da imagem e de um saber sobre si que se trata. Qual é a angústia do humano? É a angústia pela cegueira quanto a seu destino, a visão impossível que ameaça. Assim o que é buscado, procurado no outro é a resposta sobre a própria essência do sujeito e o porquê de sua miserabilidade. Mas que só é possível encontrar no saber sobre si. Não existem super-homens a não ser no delírio, ou nos estados maníacos. Não evoluímos muito como nos lembra Freud em Além do Princípio do Prazer, do nosso estado inicial de uma compulsão  a repetir os fenômenos da hereditariedade, onde no exemplo que ele nos empresta sobre os protozoários é tão ilustrativo. Nossa angústia é uma repetição de algo que nos foi tirado ou nos falta. Isso é apenas em grau tênue, em que a explicação histórica não pode ser desprezada e que pode colocar-nos acima do reino animal.
  
Referências
LACAN, Jacques – O SEMINÁRIO, Livro 10, A ANGÚSTIA (Introdução à estrutura da angústia; A angústia entre o gozo e o desejo) - (1962 – 1963) – Jorge Zahar Editor, 2005
FREUD, S.  - A HEREDITARIEDADE E A ETIOLOGIA DAS NEUROSES (1896). Obras Completas de Psicanálise - volume VIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - RASCUNHO E - COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA. Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECÍFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895 [1894]). Obras Completas de Psicanálise - volume III. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - INIBIÇÃO, SINTOMA E ANGÚSTIA,. Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.  - RESPOSTA ÀS CRÍTICAS A MEU ARTIGO SOBRE A NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895). Obras Completas de Psicanálise - volume XX. Rio de Janeiro, Imago-1996.  

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