2 de julho de 2013

Compreender a Criança

“Quando um dano é infligido a uma criança no começo de sua vida, isso pode projetar uma sombra sobre toda a sua vida”.

É muito comum em nossa sociedade, quando um casal fica gestante e ante ao nascimento deste novo ser, que irá compor a família, esta se articula com a gestação, o enxoval, as roupas, os utensílios, enfim o parto. A criança encontra o ambiente familiar, social, cultural, “pronto” para recebê-la. Para o mundo “ele (a) ao nascer, só precisa adaptar-se”. A criança é um universo complexo, recém-saída de um mundo que ela conhecia para um mundo desconhecido. Como os pais, a família, vai adaptar-se a ele(a)? Para que os pais se adaptem à criança é necessário que primeiro eles compreendam a si próprios, enquanto subjetividades, desejos, funções de pai e de mãe. Como é a representação psíquica da vida de adulto? Criar, educar não é algo inerente a natureza humana, portanto os pais não devem saber por natureza educar seus filhos, pois muitas vezes o esquecimento da própria infância, principalmente a lembrança dos cinco primeiros anos dificulta a compreensão das dificuldades do bebê e da criança na primeira infância, pois esqueceu suas próprias dificuldades.

Nos primeiros anos da infância é quando a criança adquire a maior parte das “faculdades mentais do adulto”. Mas o esquecimento dificulta a apreensão da própria infância, pela criança e depois pelo adulto. As demandas fisiológicas do bebê e o instinto dos pais facilitam essa passagem na infância. Quando os mecanismos fisiológicos, pulmões e coração, são ativados ao nascer, a primeira possibilidade de sufocação é superada e a vida flui. O ambiente preparado para receber a criança que nasce é importante no sentido de desenvolver a afetividade, que impulsiona a tornar a situação do recém-nascido acolhedor, protegido das excitações visuais, acústicas. O acolhimento, proteção, cuidados de acordo com a dinâmica da criança, afetividade, diminuem o impacto do nascimento como um traumatismo psíquico. Uma vez realizado no real o primeiro corte, no caso o cordão umbilical, há que dá um significado, pois na sequencia virão outros “cortes” como o desmame, o controle dos esfíncteres, a descoberta da sexualidade. Essas passagens a que todos estão vinculados, se dão num continuo, em que é particular de cada sujeito.

As campanhas pela amamentação informam para a importância desse momento de nutrição como fortalecimento das defesas. Mas é o momento em que se aprofunda a relação mãe-bebê, desenvolve o processo de identificação na relação com o outro. Nesse sentido a forma como se deve realizar o desmame é importante, não só por que é a passagem a outro modo de nutrição e a mastigação, mas pelas mudanças psicológicas implicadas. Na relação mãe-bebê, está sendo construída a relação com os objetos e a forma de obter prazer, portanto a substituição gradativa, acolhedora e prazerosa é importante. Se “num dos estágios precoces do desenvolvimento embrionário, uma simples picada de alfinete, um leve ferimento, pode impedir a formação de toda uma parte do corpo” (Ferenczi p.5), o mesmo ocorre depois do nascimento onde todo processo que sofre “ferimentos”, ou seja, intervenções abruptas, deixa suas marcas, que o sujeito possivelmente terá que elaborar significar.

Compreender o bebê, a criança é extremamente importante, observá-lo, tranquilizá-lo, ante suas aflições, em que aspectos é mais sensível, se a ruídos, a fome, as fraldas, a excitação visual, a aglomerados de pessoas, contato com outras pessoas, dormir no quarto dos pais e ver as relações sexuais, etc. A criança desde cedo sente e observa tudo. Assim como as angústias, os medos podem deixar traços na vida psíquica da criança. Outra fase que exige cuidados é a aprendizagem do asseio pessoal. Observar as dificuldades da criança, sua afetividade, à relação com seu corpo, possibilitará uma relação menos invasiva. A forma como a criança adapta suas necessidades, em seus primeiros cinco anos de vida à família, comunidade e como estas respondem às suas necessidades são importantes para um desenvolvimento saudável. Por maior que sejam os fatores hereditários, quando se trata de saúde mental as experiências vividas após o nascimento ou durante o desenvolvimento são importantes na potencialização ou não de determinadas sintomatologias. A criança está voltada para o seu universo infantil e não poderia ser diferente, ela ama a si mesma, é o que chamamos do narcisismo primário, e tudo que faz parte dela: seus excrementos são parte dela, é um objeto do qual se separa, por isso esse desvincular deve ser cuidadoso, pois muitos adultos mantêm o traço do interesse em seus excrementos, e muitas vezes no idoso retorna com mais força.

A reação de cada criança é diferente diante de situações semelhantes, pois cada subjetividade se estrutura, age e reage de forma diferente. Portanto inserir culturalmente a criança na lei, possibilitando a simbolização e assim a sublimação, possibilita um desenvolvimento suave, aprendendo a orientar suas necessidades e instintos primitivos a algo criativo para o bem comum. Assim na adaptação da família à criança há que os pais considerem o destino que deram e como conduziram a sua lei interna e como é exercida a função de pai e mãe e que lugares são esses. A fantasia na infância é uma forma da criança elaborar seu universo. Muitas vezes em substituição ao diálogo, que deve ser com seus significantes, muitas vezes ocorre por parte dos pais um discurso fantasiado da realidade, confundindo a criança e dificultando o contato desta com a realidade. O discurso fantasioso dos pais seja por repetição do aprendizado, ou pode tornar-se mentiras  que vão se substituindo no sentido de garantir um lugar, que não é possível. A criança nesse processo de identificação pode repetir esses modelos, também, para garantir lugares que não são possíveis no real, e quando os pais interrogam aos filhos por que estão mentindo, devem buscar onde está essa referência. Os modelos introjetados podem se repetir com maior ou menor ênfase, ou no seu oposto. Compreender a criança como um ser que possui uma individualidade e uma subjetividade que lhe é própria é respeitar suas necessidades, demandas e orientá-las no sentido da compreensão de si mesmas e do mundo que a cerca. É fundamental para seu desenvolvimento psíquico saudável, onde as responsabilidades, frustrações, decepções, dos pais, não sejam transmitidas à criança como uma forma de projeção, onde esse outro, que é a criança terá a responsabilidade de realizar o que não foi possível aos pais, ou que eles possam com suas realizações manter o status conseguido pelos pais. Isso sempre é fonte de muito sofrimento para crianças e adolescentes. Assim os danos invisíveis vão se delineando e quando se depara com algo incompreensível necessita de acolhimento, escuta compreensão, paciência na retomada dos caminhos.

Referência
FERENCZI, Sándor – PSICANÁLISE IV (1928). Obras Completas – São Paulo, Martins Fontes, 2011

Nenhum comentário: