20 de julho de 2013

O Simbólico dos "Romances Familiares"

 “a natureza da onda que possibilita a ocorrência do recalcamento, transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna”.

Em setembro deste ano acontecerá o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise e o tema é Ser Contemporâneo: Medo e Paixão. Ao tempo que se comemora o centenário do escrito de Freud Totem e Tabu, ocasião em que será prestada homenagem. Nesse sentido compreendemos que se faz necessário uma fala “contemporânea” sobre Totem e Tabu. Mas compreendemos que deve anteceder a essa, um breve escrito sobre “Romances Familiares”, a que tanto Freud aprofundou em Totem e Tabu.

A vida em família é por certo complexa e enigmática. Em Totem e Tabu Freud discorre longamente acerca do tema. Podemos dizer que a vida em família começa, quando um óvulo e um espermatozoide, por uma relação de prazer, se encontram. Portanto o romance entre duas células geram um ser humano. E assim segue ele sua existência a dar conta do romance que o habita. Ao nascer é enamorado e enamora-se de seus pais, irmãos e pessoas mais próximas, como tios e primos. O que determinará as circunstancias, intensidade e demanda do sujeito aos desejos que habitam o núcleo familiar é a estrutura de funcionamento de cada um. Assim há diferenças entre um neurótico histérico, neuróticos obsessivos, psicóticos, perversos. O desenvolvimento infantil e a descoberta da sexualidade é algo marcante na vida de todos, pois possibilitará na adolescência a libertação primordial da autoridade dos pais, na constituição da autonomia.

Em seu desenvolvimento a criança inicialmente busca igualar-se aos pais, em seu processo de identificação, percebe que existem outras referências que podem ser melhores que seus pais. E então começa a rivalidade sexual entre os membros da família: a mãe deseja continuar jovem e atraente como a filha, esta por sua vez deseja ser atraente como a mãe, o pai sinaliza que desejaria que a mãe tivesse a juventude da filha e coloca-se diante do filho como “neste terreiro só há lugar para um galo”. A mãe por sua vez “protege” o filho da “incompreensão” paterna, o irmão não “gosta” dos namorados da irmã e vice-versa. Assim de forma tácita, quase invisível, os romances vão se delineando. A questão é quando os pais, irmãos, tios, primos, no destino que deram às suas leis internas ultrapassam a lei e acessam no real um corpo que não deveria ser violado e para além deste uma alma. Nesse contexto é que começam os afastamentos, necessários, de resinificação, seja pela fantasia ou daquilo que não se consegue elaborar, no real.

Que a vida em grande medida é romanceada, não há dúvida, seja pelas fantasias, pela pulsão de vida, pela energia libidinal. A criança descobre-se em desejo sexual, seja pela masturbação, ou pela energia hormonal que é detentora. Se a criança conhece os processos sexuais, ela se imagina em relações eróticas, como seus pais um dia se imaginaram e se imaginam com os objetos e circunstancias diversa, na qual, familiares podem ser alvos. É nesse contexto que as disputas, intrigas, podem ser potencialmente uma forma de escoar desejos reprimidos, são assim significantes. A antiga disputa pais e filhos, entre irmãos pelo afeto do pai ou da mãe ou de ambos, ou pelos afetos de determinado irmão ou irmã estão no escopo do desejo, onde sempre é possível perceber em uma fala algo de incestuoso, seja pela narrativa dos afetos ou das ações. Estar no mundo é participar de suas relações sociais, onde há sempre o que desvendar enquanto significante. O beijo na boca entre pais e filhos, ou a participação destes na intimidade dos pais, quando de seus hábitos de higiene ou das suas carícias, ou a participação dos pais na intimidade dos filhos, a vestimenta intima no lar são aspectos que podem revelar os desejos circulantes. O discurso sobre a fantasia é o discurso de como a criança elabora sua realidade, a maneira como a realidade que a cerca e seus desejos se apresentam. Além dos familiares consanguíneos, os indivíduos que compõe o ambiente doméstico como as babás, empregadas, são inseridas nesse contexto de desejo. Quando a criança vai à escola ela transfere para os professores demandas de sua libido e vice-versa. Mas é inexorável a força do destino no que diz respeito às figuras parentais, enquanto representantes da pulsão. Que a razão levanta profundas objeções aos dramas do destino é seu imperativo, mas os sentimentos relatados por Freud: “a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual” (Carta 71).  Lembra-nos que a fonte do recalcamento está na cultura. É a moralidade, a vergonha, no desenvolvimento bio-psíquico que desencadeará, pelo abandono das zonas sexuais precedentes, e desenvolvimento de substitutos, no qual neste, está as sensações repulsivas pelo olfato. Um sinal de que no humano isso faz parte de seu processo de evolução é que nos animais essas “zonas sexuais continuam em vigor”.

A liberação da sexualidade dar-se não só pelos estímulos orgânicos, mas a partir de lembranças, traços de memória inconscientes, em uma ação posterior. Mas se a lembrança refere-se a um traço desagradável, o mecanismo pré-consciente afasta a lembrança, pelo recalcamento, pois, nossas lembranças atuam porque já atuaram como experiências. Assim como diz Freud: “Se os genitais de uma criança foram excitados por alguém, a lembrança disso, anos depois, produzirá, por efeito retardado, uma liberação de sexualidade muito mais intensa do que na época da excitação, porque o aparelho efetor e a quantidade de secreção terão aumentado nesse meio tempo. Assim, uma ação não-neurótica postergada pode ocorrer normalmente, e esta gera a compulsão. A ação retardada dessa espécie ocorre também em conexão com as lembranças de excitações das zonas sexuais abandonadas. O resultado, porém, é uma liberação não de libido, mas de desprazer, uma situação interna análoga à repugnância no caso de um objeto” (Carta 75, p. 320). O recalcamento leva a inúmeros processos, como a angústia, por exemplo, a qual falamos em http://caminhosdapsiq.blogspot.com.br/2013/07/angustia.html Por certo que o desenvolvimento da vergonha e da moral difere dentro dos grupos familiares, mas tende a ser acentuada na adolescência. Na infância a zona genital mostra-se sensível. Quando uma experiência vivida na infância retorna, seja como lembrança ou como sintoma: libido deslocada, repugnância ou regressão temos que pensar sobre o que não foi simbolizado. Frente ao destino de nascer e a provação das primeiras vivências, principalmente nos cinco primeiros anos é possível que a “escolha” da defesa, qual seja a neurose histérica ou obsessiva, a esquizofrenia, a psicose maníaco depressiva a paranoia ou a perversão “dependa da natureza da onda de desenvolvimento, que possibilita a ocorrência do recalcamento, isto é, que transforma uma fonte de prazer interno em uma fonte de repugnância interna” (Carta - 75 p.321 ) e desvela o destino do sujeito. Em um contexto de tantos desejos em suas estruturas de defesa é certamente obscuro essa transformação do prazer em repugnância, tão necessária à uma estrutura de defesa mais saudável. Mas as ligações do inconsciente, por certo são muito mais amplas, do que pode nossa vã suposição imaginar, ou pensar. Nossa intuição não possui, ainda, esse alcance.

Seja qual for a estrutura de defesa há que escoar a libido de tantos “romances familiares”. O recalcamento o irromper, seja pela ação do sintoma na histeria, pela memória verbal, onde uma única palavra possui inúmeros significados, sendo, portanto ambígua, o que compele a compulsão; ou nas psicoses pelos, delírios e na perversão pelo ignorar a lei, quando nos referenciamos ao sintoma nos “romances familiares” há que anotarmos que “uma criança que urinou regularmente na cama até os sete anos de idade deve ter tido experiências sexuais no início da infância. Espontâneas, ou por sedução?” (Carta 97). Remontar a história, seus significados e significantes por certo não é tarefa desse momento histórico da civilização, mas há que avançarmos na nossa concepção de homem e de sujeito, objeto de si mesmo e do outro e da complexidade dos significantes envolvidos no predicado. Assim Freud interroga: “O que aconteceu nos primórdios da infância?”, a resposta é “nada”. Mas o embrião de um impulso sexual estava lá” (Carta 101). Longo é o caminho a trilhar na compreensão, interpretação e compaixão das relações humanas, em seus desejos, provações, leis, sublimações para se possível tornar menor, o tempo de evolução do psiquismo, daquilo que compõe a essência do humano.

Referências
FREUD, S.   ROMANCES FAMILIARES (1909[1908]). Obras Completas de Psicanálise - volume IX. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 71 (1897). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 75 (1897). Obras Completas de Psicanálise – volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 79 (1897). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 97 (1898). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996.
FREUD, S.   CARTA 101 (1899). Obras Completas de Psicanálise - volume I. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

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