Totem e
Tabu – Prefácio à Tradução Hebraica
“Nenhum
leitor [ da versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição
emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura,
completamente alheio a religião de seus pais – bem como a qualquer outra
religião – e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto,
nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e
não tem nenhum desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a
pergunta: ‘desde que abandonou todas essas características comuns a seus
compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito
grande e, provavelmente a própria essência’. Não poderia hoje expressar
claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará
acessível ao espírito científico” (Freud, 1930)
No IV
Congresso Brasileiro de Psicanálise, que teve como tema: SER CONTEMPORÂNEO: Medo
e Paixão realizado em setembro 2013 comemoraram-se os 100 anos da obra de Freud
Totem e Tabu. Neste excelente escrito Freud discutiu sobre o horror ao incesto,
ambivalência emocional em função do tabu e nesta questão o tratamento dos
inimigos, o tabu relativo aos governantes, o tabu em relação aos mortos. Lendo
estudos arqueológicos falou sobre animismo, (princípio vital e pessoal, chamado de anima, o qual pode
significar energia, espírito e alma) e na sequencia discutiu sobre magia e a onipotência de
pensamentos. Falou sobre a origem do totemismo ( nominalista, sociológico e
psicológico) e sobre o retorno do totemismo na infância. No final relaciona a
origem da exogamia com o totemismo. Um livro complexo, polêmico, tanto que justificou
um prefácio primoroso a tradução hebraica. Dito isso faz necessário relembrar o
termo “Tabu”: “Tabu’ é
um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele, desde
que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente
entre os antigos romanos, cujo ‘sacer‘ era o mesmo que o ‘tabu’ polinésio.
Também o ‘ayos’, dos gregos e o ‘kadesh’
dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‘tabu’ pelos
polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África
(Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central”(Freud, (1913-1914) p.37).
Trazer para a contemporaneidade os temas abordados nesta obra não é tarefa
fácil, mas necessária pelo alcance da mesma e por perceber o quão longe pensou
Freud. Faremos esse percurso por etapas e com possíveis idas e vindas. Os mitos
sempre habitaram e habitarão nossa existência, pois nossa percepção interior é
enigmática, estimulando fantasias e ilusões. Quando pensamos em tabus, parece
algo do passado, mas sempre existiu e sempre existirá entre nós, pois não deixa
de referir-se a proibições, imperativos categóricos, leis, que não podem ser
rompidas. Nossas instituições modernas passaram em outras épocas pela cultura
do totemismo e seus resquícios permanecessem na sociedade que vivemos.
Aproximar totem e tabu é
uma forma de tentar compreender a complexa realidade que vivemos aproximando-a
de seus primórdios.
Desde os
tempos primeiros o horror ao incesto esteve presente na vida do homem. Várias
foram às formas criadas pelo homem para conviver com essa questão refletida em
todas as formas de arte, religião, lendas, atitude para com a vida e dos modos
de pensar que sobreviveram ao tempo e que fazem parte da sociedade que vivemos
e de nossos costumes. Sendo os selvagens do passado, muito temos caminhado em
nossa vida mental, mas cada sociedade com suas especificidades no planeta.
Desde nosso passado primitivo, os seres humanos, estabelecem para si e seus
grupos comunitários, clãs, as mais severas e escrupulosas leis no sentido de
evitar as relações incestuosas. O totem é uma forma de expressão da
espiritualidade de cada povo. “O que é um totem?
Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um
fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo
o clã” (Freud, p. 21). O
totem ocupa assim um espaço e uma forma de manifestação religiosa, sobrepondo a
filiação e as relações consanguíneas, pois vigora com grande ênfase a lei
contra o casamento e relações sexuais entre pessoas do mesmo totem.
A
necessidade de se relacionar sexualmente com outro, fora do totem leva a
hipótese de pesquisadores que aqui estaria a origem da exogamia, das relações
sexuais e casamentos fora do clã. A violação dessas leis é punida com a
perseguição, morte e tortura. Nos tempos atuais há um “ignorar por medo da
exposição pública”, da cultura da liberalidade, com exceção dos casos que são
abordados pelo Direito, principalmente o abuso sexual na infância. Nos tempos
tribais, no caso de um casal de clãs diferentes com totens diferentes os filhos
herdarem o totem da mãe faz com que não seja possível manter relações sexuais
com a mãe ou irmã, sendo relações incestuosas e punidas com a morte. Assim é
que se inicia a exogamia. Todos nascidos dentro do mesmo totem são parentes consanguíneos,
portanto proibido as relações sexuais. A substituição do parentesco
consanguíneo pelo parentesco totêmico amplia a proibição do incesto, que
abrange não só aos parentes consanguíneos, mas a todos os que venham a fazer
parte do grupo consanguíneo e totêmico. Nos dias atuais é comum ver-se o
cunhado relacionar-se sexualmente com a irmã de sua esposa ou namorada, bem
como a cunhada relacionar-se sexualmente com o marido ou namorado de sua irmã.
Há casos de namoros de mãe e filha com o mesmo homem. A sociedade atual vê com
liberalidade.
Até o
nosso atual sistema de parentesco, muitas foram às formações de parentesco,
através de leis, que não a consanguínea, e dos primeiros sistemas de casamentos
em grupos. “O matrimônio
grupal precedeu, dessa maneira, o casamento individual” ( Freud, p.26). A exogamia, a estruturação das classes
matrimoniais contribuiu na prevenção do incesto influenciando o declínio da
influencia do totem, possibilitando
a transição para os sistemas religiosos, que incorporariam a proibição ao
incesto e na sequência a sociedade do Direito. A severidade dos costumes,
separando o menino da mãe e irmãs, afastando qualquer convivência possível, à
medida que cresce, principalmente da parte da mãe e da mesma forma o
afastamento das irmãs e irmãos significa “a penalidade para o
incesto com uma irmã a morte por enforcamento” (Freud, p. 29). Da mesma
forma entre cunhados e cunhadas e entre genro, nora e sogra e sogro. Todas as
medidas protetoras contra o incesto não foram e não são exequíveis no sentido
deste não acontecer. Há outras implicações que diz respeito à estrutura e
funcionamento psíquico do sujeito e suas experiências infantis que podem ser
determinantes.
Muitas
vezes os sentimentos cruéis, sádicos são substitutos de desejos proibidos, por
que as escolhas de objeto de amor são escolhas infantis proibidas, que não
foram simbolizadas. É a filha que escolhe a mãe ou o pai ou o irmão ou irmã. É
o filho que escolhe a mãe ou o pai ou a irmã ou irmão como objeto de desejo,
transitando entre a fantasia, o simbólico e uma passagem ao ato.
Inconscientemente essa é uma escolha que desencadeará conflitos e punições.
Assim objetos externos são escolhidos como substitutos, modelados, adequados,
de forma que a história genealógica de sua escolha não possa ser relembrada.
Esse deslocamento na idade adulta pode ocorrer primeiro pela sogra ou pelo sogro
antes dos destinos “finais”, dos pares que se formaram. Como é sempre um enigma
a escolha dos primeiros objetos sexuais, pois muitas são as contingências,
subjetividades, funções, e lugares ocupados, desejos simbolizados, sublimados
ou não, o que possibilita retornos e tudo que deriva, ou seja, conflitos,
fantasias, afastamento da realidade, sofrimentos. O fato é que o incesto não
está na ordem do Direito e sim de uma estrutura patológica, que por não
incorporar a lei, e ao romper com ela, rompe o equilíbrio psíquico já tão
fragilizado, gerando sofrimentos tortuosos, difíceis de serem acalentados.
Referências
FREUD, S. – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS
(1913 – 1914), Obras Completas de
Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.