27 de outubro de 2013

O incesto

Totem e Tabu – Prefácio à Tradução Hebraica
“Nenhum leitor [ da versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio a religião de seus pais – bem como a qualquer outra religião – e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘desde que abandonou todas essas características comuns a seus compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito grande e, provavelmente a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito científico” (Freud, 1930)

No IV Congresso Brasileiro de Psicanálise, que teve como tema: SER CONTEMPORÂNEO: Medo e Paixão realizado em setembro 2013 comemoraram-se os 100 anos da obra de Freud Totem e Tabu. Neste excelente escrito Freud discutiu sobre o horror ao incesto, ambivalência emocional em função do tabu e nesta questão o tratamento dos inimigos, o tabu relativo aos governantes, o tabu em relação aos mortos.  Lendo estudos arqueológicos falou sobre animismo, (princípio vital e pessoal, chamado de anima, o qual pode significar energia, espírito e alma) e na sequencia discutiu sobre  magia e a onipotência de pensamentos. Falou sobre a origem do totemismo ( nominalista, sociológico e psicológico) e sobre o retorno do totemismo na infância. No final relaciona a origem da exogamia com o totemismo. Um livro complexo, polêmico, tanto que justificou um prefácio primoroso a tradução hebraica. Dito isso faz necessário relembrar o termo “Tabu”: “Tabu’ é um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele, desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre os antigos romanos, cujo ‘sacer‘ era o mesmo que o ‘tabu’ polinésio. Também o ‘ayos’, dos gregos e o ‘kadesh’ dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‘tabu’ pelos polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África (Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central”(Freud, (1913-1914) p.37). Trazer para a contemporaneidade os temas abordados nesta obra não é tarefa fácil, mas necessária pelo alcance da mesma e por perceber o quão longe pensou Freud. Faremos esse percurso por etapas e com possíveis idas e vindas. Os mitos sempre habitaram e habitarão nossa existência, pois nossa percepção interior é enigmática, estimulando fantasias e ilusões. Quando pensamos em tabus, parece algo do passado, mas sempre existiu e sempre existirá entre nós, pois não deixa de referir-se a proibições, imperativos categóricos, leis, que não podem ser rompidas. Nossas instituições modernas passaram em outras épocas pela cultura do totemismo e seus resquícios permanecessem na sociedade que vivemos. Aproximar totem e tabu  é uma forma de tentar compreender a complexa realidade que vivemos aproximando-a de seus primórdios.

Desde os tempos primeiros o horror ao incesto esteve presente na vida do homem. Várias foram às formas criadas pelo homem para conviver com essa questão refletida em todas as formas de arte, religião, lendas, atitude para com a vida e dos modos de pensar que sobreviveram ao tempo e que fazem parte da sociedade que vivemos e de nossos costumes. Sendo os selvagens do passado, muito temos caminhado em nossa vida mental, mas cada sociedade com suas especificidades no planeta. Desde nosso passado primitivo, os seres humanos, estabelecem para si e seus grupos comunitários, clãs, as mais severas e escrupulosas leis no sentido de evitar as relações incestuosas. O totem é uma forma de expressão da espiritualidade de cada povo. “O que é um totem? Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã” (Freud, p. 21). O totem ocupa assim um espaço e uma forma de manifestação religiosa, sobrepondo a filiação e as relações consanguíneas, pois vigora com grande ênfase a lei contra o casamento e relações sexuais entre pessoas do mesmo totem.

A necessidade de se relacionar sexualmente com outro, fora do totem leva a hipótese de pesquisadores que aqui estaria a origem da exogamia, das relações sexuais e casamentos fora do clã. A violação dessas leis é punida com a perseguição, morte e tortura. Nos tempos atuais há um “ignorar por medo da exposição pública”, da cultura da liberalidade, com exceção dos casos que são abordados pelo Direito, principalmente o abuso sexual na infância. Nos tempos tribais, no caso de um casal de clãs diferentes com totens diferentes os filhos herdarem o totem da mãe faz com que não seja possível manter relações sexuais com a mãe ou irmã, sendo relações incestuosas e punidas com a morte. Assim é que se inicia a exogamia. Todos nascidos dentro do mesmo totem são parentes consanguíneos, portanto proibido as relações sexuais. A substituição do parentesco consanguíneo pelo parentesco totêmico amplia a proibição do incesto, que abrange não só aos parentes consanguíneos, mas a todos os que venham a fazer parte do grupo consanguíneo e totêmico. Nos dias atuais é comum ver-se o cunhado relacionar-se sexualmente com a irmã de sua esposa ou namorada, bem como a cunhada relacionar-se sexualmente com o marido ou namorado de sua irmã. Há casos de namoros de mãe e filha com o mesmo homem. A sociedade atual vê com liberalidade.

Até o nosso atual sistema de parentesco, muitas foram às formações de parentesco, através de leis, que não a consanguínea, e dos primeiros sistemas de casamentos em grupos. “O matrimônio grupal precedeu, dessa maneira, o casamento individual” ( Freud, p.26). A exogamia, a estruturação das classes matrimoniais contribuiu na prevenção do incesto influenciando o declínio da influencia do totem,  possibilitando a transição para os sistemas religiosos, que incorporariam a proibição ao incesto e na sequência a sociedade do Direito. A severidade dos costumes, separando o menino da mãe e irmãs, afastando qualquer convivência possível, à medida que cresce, principalmente da parte da mãe e da mesma forma o afastamento das irmãs e irmãos significa “a penalidade para o incesto com uma irmã a morte por enforcamento” (Freud, p. 29). Da mesma forma entre cunhados e cunhadas e entre genro, nora e sogra e sogro. Todas as medidas protetoras contra o incesto não foram e não são exequíveis no sentido deste não acontecer. Há outras implicações que diz respeito à estrutura e funcionamento psíquico do sujeito e suas experiências infantis que podem ser determinantes.

Muitas vezes os sentimentos cruéis, sádicos são substitutos de desejos proibidos, por que as escolhas de objeto de amor são escolhas infantis proibidas, que não foram simbolizadas. É a filha que escolhe a mãe ou o pai ou o irmão ou irmã. É o filho que escolhe a mãe ou o pai ou a irmã ou irmão como objeto de desejo, transitando entre a fantasia, o simbólico e uma passagem ao ato. Inconscientemente essa é uma escolha que desencadeará conflitos e punições. Assim objetos externos são escolhidos como substitutos, modelados, adequados, de forma que a história genealógica de sua escolha não possa ser relembrada. Esse deslocamento na idade adulta pode ocorrer primeiro pela sogra ou pelo sogro antes dos destinos “finais”, dos pares que se formaram. Como é sempre um enigma a escolha dos primeiros objetos sexuais, pois muitas são as contingências, subjetividades, funções, e lugares ocupados, desejos simbolizados, sublimados ou não, o que possibilita retornos e tudo que deriva, ou seja, conflitos, fantasias, afastamento da realidade, sofrimentos. O fato é que o incesto não está na ordem do Direito e sim de uma estrutura patológica, que por não incorporar a lei, e ao romper com ela, rompe o equilíbrio psíquico já tão fragilizado, gerando sofrimentos tortuosos, difíceis de serem acalentados.

Referências
FREUD, S.  – TOTEM E TATU E OUTROS TRABALHOS (1913 – 1914),  Obras Completas de Psicanálise - volume XIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

26 de outubro de 2013

O Psíquico - anotações

“o psíquico é em si mesmo inconsciente, e o inconsciente é o verdadeiro psíquico”.

Se o inconsciente se comunica por livre associação, isso quer dizer que ele está todo o tempo flutuando, buscando ligações com o que lhe é semelhante. A necessidade de conhecimento, de autoconhecimento, de ultrapassar os próprios limites, mudar os próprios juízos, procurar novas formas de ser, de existir, de pensar, se sentir, de raciocinar, de usar as emoções, os instintos, a razão, procurar novos olhares, pontos de vista, está disponível para inverter os conceitos, de considerar novas hipóteses é que impulsiona nossa evolução como seres humanos. Se pensássemos ainda como nossos ancestrais ou nossos mestres, repetindo igual a papagaios não teríamos amadurecido, criado, transformado o conhecimento e a nós mesmos.

Nossa viagem é longa, talvez nunca termine. Quando pensarmos que chegamos a um momento aceitável, o horizonte nos revelará que andamos muito pouco. Comparado com o tempo no universo, nosso tempo no planeta é muito pequeno. A psicanálise deu alguns passos para compreensão do enigmático e vasto mundo psíquico, principalmente no que se refere ao inconsciente. Mas é preciso sair das formulas, dos conceitos, dos “chavões”, de esconder-se atrás de palavras tais como “real”, “gozo”, “outro”, “corpo”, que nos afasta do psíquico, de  “nossas percepções, ideias, lembranças, sentimentos e atos volitivos”, memória, senso crítico, enfim tudo que fazem parte do psíquico e nos aproxima de sentimentos de egoísmo, arrogância, vaidade, e falar dos temas que estão em moda, para nos sentirmos mercadorias atualizadas. O que nos interessa é a "essência do psíquico”, e assim há que concluirmos, também, que essa deve ser a questão mais importante referente ao psiquismo, a qual ignoramos. Portanto tudo que dizermos sobre o funcionamento do sujeito estará apenas tangenciando o mesmo, a ser “salvo” pela “qualidade de ser consciente”.

O que influencia o psíquico, não é só a herança genética, mas, sobretudo aquilo pelo qual cada um é influenciado desde a concepção e que de certa forma, constitui sua essência  até então, ou seja, o momento intangível da mente pensante, que não é possível apreender. Em que momento na tessitura da vida o pensamento surge é um enigma que irá perdurar, quanto maior for nossa parte inconsciente.

Os atos psíquicos estão em tudo que fazemos: lapsos se escrita, verbais, leitura, audição, são os atos falhos que assim se expressa por ser inconsciente. São esses atos e os estados alterados de consciência que demonstram que o consciente não é a única condição do psíquico, que grande parte dele é inconsciente. O fato de desconhecer a si próprio, e das reais causas de seus atos, é que o sujeito tem que se haver, com as interrogações acerca dos ligamentos dos fatos de sua vida. Podemos pensar o funcionamento dos conteúdos conscientes e inconscientes como uma onda que vai e vem de acordo com alguma articulação mnêmica. A consciência é uma luz, influenciada pelo inconsciente, que ilumina o tortuoso caminho da vida mental.

Referência
FREUD, S.  - ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938]). Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.

19 de outubro de 2013

Saúde Mental e Direitos Humanos: “Holocausto Brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil”.


 "Neste livro-reportagem fundamental, lançado em junho de 2013, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade".
"Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças".
"Quando chegavam ao hospício, suas cabeças eram raspadas, suas roupas arrancadas e seus nomes descartados pelos funcionários, que os rebatizavam. Daniela Arbex devolve nome, história e identidade aos pacientes, verdadeiros sobreviventes de um holocausto, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, ou Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que, dos 34 anos de internação, ficou mudo durante 21 anos porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava. Os pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Pelo menos 30 bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Alguns morriam de frio, fome e doença. Morriam também de choque. Às vezes os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida".
"No início dos anos 60, depois de conhecer a Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, desabafou com o chefe: "Aquilo é um assassinato em massa". Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios que também visitou a Colônia, declarou numa coletiva de imprensa:" "Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa". 

16 de outubro de 2013

Obscuro Inconsciente

“Mas, e quanto ao valor prático desse estudo — já posso ouvir a pergunta — como meio de se chegar a uma compreensão da alma, a uma revelação das características ocultas de cada um? Acaso as moções inconscientes expressas pelos sonhos não têm o peso de forças reais na vida anímica? Será que se deve fazer pouco da significação ética dos desejos suprimidos — desejos que, assim como levam aos sonhos, podem um dia levar a outras coisas”? (Freud)

Essa reflexão de Freud sobre o inconsciente foi o “começo” de uma descoberta e a continuação de inúmeros estudos, que continuarão por muito tempo. Sabemos que o inconsciente é a base da vida psíquica e mais amplo do que o consciente. Há necessidade de ultrapassar juízos anteriores, procurar novos pontos de vista, que antes de serem postulados devem ser hipóteses. Embora o que ignoramos sobre o psiquismo seja a parte mais importante e revelador da existência humana, estamos longe de compreender a essência do psiquismo. Ao superar o impasse corpo-mente, reinsere-se psíquico na tessitura da vida na medida em que se admite ser os conteúdos conscientes ou inconscientes algo difícil de serem apreendidos pelo próprio sujeito. Por serem inconstantes, os conteúdos ora podem estar conscientes, ora inconscientes ou representados de forma enigmática. O estar consciente está muito mais ausente do que presente, portanto o psíquico é muito mais inconsciente do consciente. Se pensarmos nos lapsos de escrita, lapsos verbais, imagens referendadas, as leituras ou escutas “equivocadas”, desenhos aparentemente incompreensíveis, ou seja, todos os atos falhos, substituições, representações que falam muito mais do que podemos imaginar ou decifrar. Assim dilui-se a delimitação entre o que é inconsciente e consciente. O que revela as demandas do inconsciente são as resistências, que negam os impulsos inconscientes e as necessidades desse. Muitas têm sido as experiências de alteração da consciência para que o inconsciente assuma sem maiores reservas suas demandas. Deste a hipnose às históricas práticas religiosas, às substancias psicoativas na história da humanidade que alteram a consciência e eventos inexplicáveis que veem à tona. Assim “o psíquico é em si mesmo inconsciente e o inconsciente é o verdadeiro psíquico”. Mas a consciência traz à luz conteúdos importantes, que rememorados permite uma compreensão mais ampla, na medida em que preenche lacunas de uma história.

A mediação “pré-consciente” no que se refere aos conteúdos que transitam entre consciente e inconsciente é importante na compreensão dos processos mentais. É no pré-consciente que se supõe o inicio do recalque, do material que não deve vir ao consciente, isso não implica em um “espaço” localizacionista. Muitos pensamentos pré-conscientes são deslocados, acomodados pelo inconsciente, seja por repressão ou subtração. Esse auto manejo é possível porque a estrutura psíquica é móvel, flexível, resiliente. As representações, os pensamentos, as estruturas psíquicas, permeiam o sistema nervoso como um todo. Portanto “o que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos”(Freud). Em nosso psiquismo existem sistemas, que projetam a imagem, tanto assim que enxergamos as imagens invertidas e são internamente modificadas. Por maiores que sejam os comprometimentos da estrutura psíquica há sempre um feixe de luz de consciência, mesmo que não seja permanente. Assim os processos de pensamento mais complexos podem existir sem tornar-se consciente, sendo o tornar-se consciente um “resultado psíquico remoto do processo inconsciente” e poderia já estar consciente, mesmo sem ser percebido por si mesmo. Então temos aqui a consciência de si. Todas as forças da alma são “formas de expressão de moções que se encontram sob a pressão da resistência” e do esquecimento, que em determinadas situações por alteração da consciência, seja pelo sono ou realidades diversas, são reforçadas por “fontes de excitação situadas em camadas mais profundas” do psiquismo. A questão a compreender é que há conteúdos do inconsciente inadmissíveis a consciência, portanto transitam por uma pré-consciência, (como se fosse uma “tela”) depois de serem liberados por uma censura, pois o consciente avalia se aquele conteúdo pode transitar alcançar hierarquias, sem grandes estragos. Nossa atenção exerce papel importante, pois serve de “filtro” ao poder de motilidade desses conteúdos energizados. Se não há divisória entre passado, presente e futuro, é possível supor que “subconsciente” e “supraconsciente” é uma mera denominação. A questão que se coloca no sistema pré-consciente é da memória, que alguns denominam de curto prazo, pois esse sistema não possui a capacidade de retenção de memória de longo prazo.

As excitações internas ou externas, muitas vezes mescla-se, sendo difícil identificar o que pertence a uma ou a outra. Antes de ser uma sensação consciente os conteúdos são submetidos a revisões para que as sensações de prazer-desprazer possam penetrar na consciência. Ao discernir as sensações de prazer-desprazer o inconsciente através do superego, da censura, delimita os investimentos de energia, os deslocamentos, as quantidades e qualidades. Nessa dinâmica inconsciente-consciente o recalque inibe as lembranças inconscientes que possam trazer sofrimento. Um pensamento que possa causar sofrimento pode ser impedido de tornar-se consciente, pode ser recalcado, ou retirado da percepção pré-consciente e recalcado por razões que nem sempre se conhece.

Diz a metáfora que “pensamentos voam”. Se seguirmos a metáfora diremos que para voarem precisam adquirir qualidades e para isso eles se associam com as lembranças, onde os resíduos de qualidade são significativos, para que se constituam lembranças que possam tornar-se conscientes e retornar à memória com maiores investimentos. Na análise dos processos de pensamento a passagem de um estagio inconsciente ao pré-consciente e deste ao consciente é marcado por uma censura, que opera dentro de um limite qualitativo daquilo que retorna, seja em forma de fantasia ou não. Assim “as estruturas de pensamento de baixa intensidade lhe escapam”. Se há qualidade e quantidade de energia a censura opera. Se a qualidade e quantidade de energia são baixas, segue livre curso possibilitando os estados patológicos mais complexos.

A “realidade” psíquica “é uma forma de existência”, que em muitos aspectos pode diferir das ações no dia a dia. Aquilo no qual pode inferir sobre o caráter de alguém. Muitas ações são movidas por impulsos, são retidos ou reduzidos em suas ações, mas o inconsciente sabe o que será retido ou não. Um caráter humano está envolto em forças que necessita elaborar, dominar, e nem sempre as escolhas são fáceis. “O inconsciente é a única realidade psíquica”, no sentido de arquitetura psíquica, “em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais”(Freud). Assim podemos relembrar a obra de Freud sobre Totem e Tabu onde no prefácio nos chama atenção para o quanto nossa percepção interior é obscura seja no que diz respeito ao presente, passado, futuro a vida “além-mundo”.

Referências
FREUD, S.   ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938]) A NATUREZA DO PSÍQUICO,  Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996.
 FREUD, S.   F) O INCONSCIENTE E A CONSCIÊNCIA - REALIDADE,  Obras Completas de Psicanálise - volume V. Rio de Janeiro, Imago-1996.

14 de outubro de 2013

Vida e Valores


  "só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro.". Lou Andreas-Salomé

Lou Andreas-Salomé (1937)

A 5 de fevereiro deste ano, Frau Lou Andreas-Salomé faleceu pacificamente em sua casinha de Göttingen, com quase 76 anos de idade. Durante os últimos 25 anos de sua vida, essa notável mulher esteve ligada à psicanálise, à qual contribuiu com trabalhos valiosos e que também praticou. Não estarei dizendo demais se reconhecer que todos nós sentimos como uma honra quando ela se juntou às fileiras de nossos colaboradores e companheiros de armas, e, ao mesmo tempo, como uma nova garantia da verdade das teorias da análise.
Sabia-se que, quando moça, ela manteve intensa amizade com Friedrich Nietzsche, baseada em sua profunda compreensão das audazes ideias do filósofo. Esse relacionamento teve um fim abrupto quando ela recusou a proposta de casamento que ele lhe fez. Era bem sabido, também, que, muitos anos depois, ela atuou como Musa e mãe protetora para Rainer Maria Rilke, o grande poeta, que era um pouco desamparado em enfrentar a vida. Além disso, porém, sua personalidade permaneceu obscura. Sua modéstia e discrição eram mais do que comuns. Ela nunca falou de suas próprias obras poéticas e literárias. Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores da vida. Aqueles que lhe foram mais íntimos tiveram a mais forte impressão da genuinidade e da harmonia de sua natureza, e puderam descobrir com espanto que todas as fraquezas femininas e talvez a maioria das fraquezas humanas lhe eram estranhas ou tinham sido por ela vencidas no decorrer de sua vida.
Foi em Viena que, há muito tempo atrás, o mais comovente episódio de seu destino feminino fora representado. Em 1912, ela retornou a Viena, a fim de ser iniciada na psicanálise. Minha filha, que foi sua amiga íntima, ouviu-a um dia lamentar não ter conhecido a psicanálise em sua juventude. Mas, afinal, naqueles dias não existia tal coisa.
Sigm. Freud - Fevereiro de 1937.

Em um mundo onde falar de valores, caráter, parece algo estranho, ofensivo, antiquado, relembrar esta carta de Freud quando fala da morte de Lou Andreas Salomé, ressaltando valores tão importantes a todos os seres humanos: modéstia, discrição, harmonia, equilíbrio e firmeza para vencer as dificuldades da vida. “Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores da vida”.  Mostra-nos o avanço do materialismo na sociedade em que vivemos, como se tivéssemos caminhado para traz, apesar de todos os avanços científicos.
FREUD, S. - Breves Escritos (1937-1938) Obras Completas de Psicanálise - volume XXIII. Rio de Janeiro, Imago-1996. 

12 de outubro de 2013

Memória


Guardo em minha memória...
todo o tempo...
o tempo que existe sem passado, presente ou futuro...
simplesmente o tempo...
caminhos para voar...
ao navegar no tempo...
navego no espaço, um lugar, que não localizo no tempo...
as lembranças que vão se deslanchando...
como uma nascente de água...
vai preenchendo o tempo...
até chegar o instante...
em que estarei face a face...
você... doce...suave...forte...verdadeiro...
límpido... acolhedor... generoso...
assim veremos mais claramente os pensamentos meus e teus...

Myriam ‘aya

9 de outubro de 2013

“Fragmento por Fragmento"...

“A constelação – por que não, no sentido que dela falam os astrólogos? -, a constelação original que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino e quase diria à sua pré-história, a saber, as relações familiares fundamentais que estruturam a união de seus pais, mostra ter uma relação muito precisa, e talvez definível por uma fórmula de transformação, com o que aparece como o mais contingente, o mais fantasístico, o mais paradoxalmente mórbido de seu caso, a saber, o último estado de desenvolvimento de sua grande apreensão obsedante, roteiro imaginário a que chega como se fosse à solução da angústia ligada ao desencadeamento da crise”.
“A constelação do sujeito é formada na tradição familiar pelo relato de um certo número de traços que especificam a união dos pais”.
“Eis portanto como se apresenta a constelação familiar do sujeito. O relato dela vai saindo, fragmento por fragmento, durante a análise, sem que o sujeito estabeleça qualquer ligação com o que quer que seja que aconteça de atual” (p. 19-21). Jacques Lacan – O Mito Individual do Neurótico

Nesse trecho Lacan nos lembra que o universo do sujeito é muito mais complexo do que podemos imaginar e que as articulações, “constelações” que compõe sua existência não é possível de serem apreendidas pelo processo analítico de forma literal, linear, absolutas como se fosse possível uma narrativa onde passado, presente e futuro, estivesse em uma ordem lógica, acadêmica e seguindo o curso do relógio. São sim fragmento do passado, presente e futuro, cabendo ao analista a escuta “fina”, atenta a que tempo, circunstancia e vicissitude diz respeito aquele fragmento e que direção dar ao processo analítico no sentido do sujeito compor suas imagens e assim reescrever sua história.

2 de outubro de 2013

Patológico: entre as Leis e Máximas

Dos Princípios da Razão Pura Prática
1º - Definição
“Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação universal da vontade”.
“Admitindo-se que a razão pura pode encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas. Em uma vontade patologicamente afetada por um ser natural pode observar-se um conflitos das máximas diante das leis práticas conhecidas pelo mesmo. Ex. alguém pode adotar o axioma ( princípio ) de não suportar qualquer ofensa sem vinga-la, compreendendo, todavia que isso não constitui nenhuma lei prática, mas apenas a sua máxima( princípios subjetivos) e que, de modo inverso, como regra para a vontade de todo ser racional, idêntica máxima não pode concordar em si mesma. (imperativos # máximas)” - Kant

Esse trecho de Kant sobre os princípios da Razão Pura Prática nos traz a reflexão de que a razão realiza na prática, através de leis ou de máximas sua vontade. Se essa vontade, seus princípios subjetivos são permeados por aspectos patológicos, os conflitos entre as máximas e as leis são inevitáveis. Assim os imperativos categóricos estarão sempre confrontados pelas máximas e se estará no conflito com as leis, trilhando os caminhos da perversão, ignorando-as e fazendo de suas máximas “leis” ou da psicose, negando as leis e mergulhando no abismo da diluição.

Silêncio e Movimento


Falar pouco é o natural
Um redemoinho não dura uma manhã
Uma rajada de chuva não dura um dia
De onde provêm essas coisas?
Do céu e da terra
Se nem o céu e a terra podem produzir coisas duráveis
Quanto mais os seres humanos!
Por isso, quem segue e realiza através do Caminho adquire o Caminho
Quem se iguala à Virtude adquire a Virtude
Quem se iguala à perda, perde o Caminho
Convicção insuficiente leva à não convicção
TAO TE CHING - O Livro do Caminho e da Virtude - Lao Tse - Tradução do Mestre Wu Jyn Cherng